Fascinada pela visão, ela lá permaneceu, imóvel. Qualquer transeunte distraído a tomaria por uma bela estátua de olhos verde-oliva e cachos delineados que fora abandonada ali, no topo daquela colina, de tão estática que estava. Sua expressão permanecera a mesma por quase todo o tempo que ali esteve; olhos de admiração profunda e uma inveja quase imperceptível, uma inveja quase pura, quase santa. Queria tanto ser o objeto que admirava, tão livre e belo, tão austero, magnânimo e pleno. Vez ou outra ela deixava que o ar tomasse seus pulmões com mais força, soltando depois um suspiro leve de desilusão e tédio – não tédio pela contemplação, e sim o tédio odioso que sua vida era. Queria, com a força de seu coração selvagem, ser aquele ser que se move por onde bem entende, e brilha e ilumina e encanta. Mas tal qual ela própria, a Lua – invejada e bela – não era totalmente livre. Ambas estavam atadas a um campo gravitacional que nunca, sob qualquer circunstância, cederia. O astro era preso pela gravidade da Terra, girando ao seu redor sem cessar um só instante; ela se sentia presa à gravidade de seu pai, sua família, os costumes da época. Mas ao contrário da Lua, ela não girava de bom grado. Tinha correntes atadas aos pés e mãos, que a faziam girar, se submeter, servir. Ela queria ser a Lua, que gira, mas tem brilho, presa, mas fascinante, pequena, porém magnânima.
Sua atenção foi desviada pelo barulho de carruagens na estrada. Era um comboio, composto de quatro carruagens de luxo, negras, levadas por cavalos também negros. Ficou a imaginar quem, com tanto dinheiro para ter tais carruagens e cavalos, estaria fazendo naquele fim do mundo. Não havia nenhuma grande cidade por aqueles arredores, a não ser Londres, que ficava do lado contrário de onde as carruagens seguiam. Katherine – ou Kate como ela gostava de ser chamada – esperou que elas passassem e voltou para a estrada, tentando ver alguém do estranho comboio, tentando fisgar alguma dica do visitante inesperado.
As carruagens sumiram na curva sem que ela pudesse ver muita coisa. A noite já ia alta quando ela se deu conta; passara tempo demais no topo da coluna observando a Lua. O pio da coruja soou alto e agourento, bem perto dela, fazendo sua pele se arrepiar de medo. Ela virou-se rápido e lá estava a coruja, bem no meio da estrada, com os olhos grandes a lhe encararem. Era ridículo, ela sabia, mas ela estava com medo; algo dentro dela dizia que ela devia sair dali o mais rápido possível, que alguma coisa aconteceria. Mirou o animal que parava ali estranhamente e continuava a piar, girou sob seus pés e pôs-se a correr, sem muito saber o porque. Como se a coruja a seguisse, ela sentiu olhos a seguirem, fixamente; ela quase podia sentir na pele os olhos grudados nela, a seguindo.
O ar, de repente, se fez rarefeito; seus pulmões não conseguiam absorver tudo o que ela necessitava, por mais que ela inspirasse com todo vigor. Parou numa árvore grande à beira da estrada, absolutamente sem ar e tonta pelo esforço inesperado. Diabos, ela pensou, ela estava fugindo de uma coruja? Era por demais patética aquela cena.
Porém, se ela tivesse prestado atenção, ela veria que não eram apenas os olhos da coruja a lhe seguir.
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- Katherine! Onde você esteve?
Ela parou no degrau quando viu que seu pai a notou entrando e pensou em uma desculpa.
- Eu perdi a hora senhor, me desculpe.
- Desculpe? Isso são horas de uma moça de família ficar andando por aí?
- Não, não são horas, eu sei. Isso não vai acontecer de novo, senhor.
- Venha aqui, Katherine. – ela sabia o que viria quando ele falava naquele tom.
- Por favor, isso não vai acontecer de novo!
- Vai sim, sua perdida! Estou cansado de ouvir comentários sobre você na aldeia! Você joga o nome de nossa família na lama Katherine, e nem ao menos se importa com isso?
Engula, Kate. Você sabe o que acontece quando você responde, garota.
- Me desculpe senhor, me desculpe. – ela abaixou a cabeça, em sinal de falsa resignação.
- Desculpas não vão limpar nosso nome!
Ela o viu tirando o cinto das calças no momento que sua mãe entrava na sala. Lançou um olhar de apelo para ela, mas sabia que ela nada podia contra ele.
- Sammuel, por favor...
- Fique quieta, mulher! Esta garota anda precisando de corretivos.
No momento que seu pai partiu para cima dela, ela escutou a voz melodiosa de Claire a chamando no portão. Seu pai hesitou; por mais que honrasse o nome da família, não gostava de escândalos com os vizinhos. E além do mais, Claire seria logo da família, já que Kate estava noiva de seu irmão, Jack.
- Vá atendê-la. E volte logo para casa ajudar sua mãe com o jantar.
- Sim senhor.
Nunca ficara tão feliz de ver Claire em toda sua vida. Não que Kate não gostasse dela, pelo contrário; ela era muito doce e simpática, e elas se conheciam há anos. Mas havia algo nela que a irritava, amasiava. Uma placidez enjoativa, uma passividade tão absurda que ela tinha vontade de gritar com ela às vezes. Ela era tão conformada com a vida que tinha e tinha aspirações tão mesquinhas que elas simplesmente não pertenciam ao mesmo mundo. Na verdade, pensou Kate tristemente, ela própria não pertencia àquele mundo mesquinho e conformado.
- Katherine querida! – ela a abraçou com carinho.
- Claire, que surpresa! O que você faz aqui no rancho a uma hora dessas? Aconteceu alguma coisa com você? Jack?
- Não, não se preocupe! Jack ainda não voltou da conferência em Londres. Papai, mamãe e eu estamos bem. Vim aqui lhe contar a mais nova novidade da aldeia!
Ela detestava saber de mexericos de qualquer espécie, mas se fez de simpática:
- Ah! O que aconteceu?
- Temos um novo morador!
As carruagens! De repente Kate ficou interessada.
- Aqui em Harlow? Impossível! Você tem certeza?
- Absoluta. E sabe onde vai morar? No antigo castelo dos Ventrue, no alto da colina.
- Aquele castelo horrendo? Porque alguém seria imbecil o bastante para morar lá??
- Dizem que é herança. Ele é um lorde da Escócia, milionário, e que recebeu mais uma herança! Ah, se eu não fosse comprometida...
- Claire!
- Ora Kate, não se faça de puritana! Dizem que ele é belíssimo. Alto, loiro, olhos azuis...
Ela imaginou o forasteiro, mas não deu muita atenção para os mexericos da amiga. Ela com certeza estava exagerando.
- E o pior você não sabe! – disse Claire, com voz de mistério.
- O que? – ela disse, disfarçando o interesse enquanto mordiscava a unha da mão direita.
- Dizem que ele... ele é...
- O que?
- Um vampiro.
Kate caiu numa gargalhada gostosa e solta. Claire só podia estar fora de si. Vampiro?
- Por favor, Claire, você acreditou nessa bobagem?
- Não é bobagem! Dizem que ele até tinha um caixão na bagagem. E desde quando você viaja por essas estradas de noite? Vampiros não podem ficar na luz do sol, Kate.
- Isso não quer dizer nada. E eu aposto que o povo está exagerando.
- Dizem também que ele é muito branco, demais até para um nobre. E que...
- Katherine! Venha ajeitar a mesa! – disse sua mãe da cozinha
- Claire, eu vou ter que ir. – ela se sentiu aliviada por não ter que ouvir mais aquele absurdo. – Amanhã nos vemos.
- Tudo bem, Kate. Conto-lhe as novidades amanhã.
Elas se despediram e Kate entrou para ajudar sua mãe. O jantar foi silencioso e carregado de uma tensão pesada, quase palpável. Seu pai tinha um semblante carregado e comia com gestos agressivos; sua mãe nada dizia, e nem ousava. O ensopado com batatas, ralo e com pouco tempero, foi devorado em minutos. A segunda refeição do dia, como de praxe em dias de escassez, era muito apreciada e não se desperdiçava nenhum pedaço de pão.
Após ajeitar a cozinha, Kate se recolheu junto com seus pais. Tirou o vestido pesado, o espartilho, e ficou só de anáguas. Antes de se deitar ainda olhou a lua mais uma vez; plena e brilhante no céu. Não pode evitar suspirar mais uma vez. Ela não sabia bem o porque, mas ficava mais sensível nos dias de lua cheia, como se a lua pudesse lhe envolver com sua aura brilhante e lhe afetar de algum modo. Ela jurava para si que tudo ficava mais vivo; o sol mais brilhante, o vento mais forte, o cantar dos pássaros mais alto. Ela se sentia conectada à natureza de uma forma única, quase mágica.
Como que por coincidência – ou não – no momento em que ela pensava nisso, a coruja apareceu novamente, em um galho de uma árvore que ficava bem perto de sua janela. Ela ficou a encarando, estática. Era a mesma, Kate tinha certeza. Ela piou uma vez, um pio longo e agudo, que a fez estremecer novamente. Ela não sabia e não entendia o medo irrracional de um animal tão indefeso e pequeno. Um vento gelado soprou, fazendo sua pele arrepiar no mesmo instante. A atmosfera era de mistério – a lua, a coruja, o vento e o medo – mas tudo aquilo era insanidade.
Tinha que ser insanidade.
As palavras de Claire lhe vieram à mente – vampiro. Ela não era muito religiosa, também não muito racional, mas aquilo não fazia sentido. Vampiros eram seres de mitologias antigas, contos, fantasias, folclore popular... certo? Não havia explicação par a existência de tais seres. Sugadores de sangue, abdutores de mentes, assassinos da noite, sedutores de donzelas. Misticismo besta e infantil.
Um vulto passou no fundo do quintal, retirando-a de seus devaneios. Seu coração saltava aos pulos em seu peito; alguma coisa estava ali, alguém estava ali. A coruja havia desaparecido do galho. Truques da mente ela pensou, nervosa. Ia fechando a janela quando viu o vulto outra vez, bem mais perto dela. Ela congelou de medo, com as mãos segurando firme o parapeito da janela, como se aquilo fosse lhe ajudar de alguma maneira. O vento caprichoso soprou seu pescoço, frio e horripilante; ela sentia o sangue fluir pelo seu corpo com velocidade e força. O vulto passou outra vez, e ela podia jurar que ouviu sussurros. Quem está aí, ela sussurrou de volta, não tão certa de obter uma resposta.
O silêncio persistiu, inquieto e assustador. Ela não queria ouvir uma resposta, mas ela precisava. Quem está aí, ela repetiu, mais alto desta vez. As sombras pareciam brincar na sua frente, fazendo formas e sons. Afinal de contas, quem estava ali?
Ou pior, o que?
Sou aquele que lhe procura, Katherine. Sou aquele que você conhece sem saber, sou aquele que você vê sem olhar, sou aquele que você escuta dentro de si, sem mesmo ouvir.
Sou aquele que você quer.
Ela não ouvira som algum, mas ainda sim havia escutado aquilo. Em seguida, o vulto se aproximou mais e ela quase pode senti-lo. Viu dois olhos brilhantes, ou o que ela achava serem olhos. Seria tudo produto de sua mente fértil?
Ela não sabia bem se gostaria de descobrir.
