E é então que lhe ocorre, terrível, absurda, a verdade, e apesar de não sentir mais seu próprio corpo, e nem mesmo a própria mente, de alguma maneira Hiyori consegue fazer uma voz que não é mais a sua sair, por uma boca que não mais lhe pertence.
- Shin... Shinji... Me... Solte.
O universo se apaga e silencia, planetas explodem, estrelas colapsam, galáxias colidem. E o mundo chega ao fim.
A Segunda Máscara
Porque máscaras de osso servem apenas para tornar tudo ainda mais difícil
1. Do outro lado do espelho – parte I
Tudo acaba um dia, até o fim do mundo, e quando isso acontece ela olha para suas unhas e vê sangue, olha nos seus olhos e vê morte.
Ela se sente como se tivesse nascido naquele instante e, ao mesmo tempo, como se tivesse acabado de sair de uma batalha de milhões de anos, cansada e exaurida como se estivesse à beira da morte. Acima de tudo, ela sabe que a luz que finalmente vê depois de séculos de escuridão não existe de verdade, e que o reflexo encarando-a com um sorriso zombeteiro não é o seu, nunca, nem em um bilhão de anos.
Mas parece, isso parece, rosto branco pontilhado por uma constelação de sardas escuras, cabelo platinado caindo em desordem sobre ombros magros, olhos de pálpebras pesadas e cílios muito compridos cheios de desafio e petulância.
Ela dá uma risadinha, espada apoiada sobre um ombro, sol de mentira incendiando o universo por trás de seu corpo imaterial, olhos estranhos – âmbar sobre negro – brilhando com malevolência, voz cruel e zombeteira.
- Então, você acordou.
Ela não ia responder, nem em um milhão de anos. De jeito nenhum que Hiyori ia conversar com ela. Não. Pode desistir.
- Você esteve fora por bastante tempo.
Bastante tempo, boa piada. Tempo suficiente para o universo acabar e renascer dez vezes, isso sim. E de jeito nenhum que ela ia voltar para lá, onde quer que lá fosse. Pode esquecer.
- Eu não me diverti muito, para ser sincera. Alguma coisa andou prendendo meu corpo, o tempo todo. Bastante chato, se você quer saber.
Chato. Ela ia mostrar àquela... O que quer que ela fosse... O que era chato. Era chato ter o traseiro chutado um milhão de vezes consecutivas. Era chato passar um milhão de anos trancada numa cela escura, sem paredes, sem chão, sem teto e sem porcaria nenhuma para fazer. Era chato ser despedaçada em um milhão de pedaços infinitesimais, também.
- Você provavelmente vai querer lutar agora para recuperar o seu corpo, né? Eu ouvi os outros falando, foi isso que eles fizeram. Parece que todos conseguiram. Você é a última.
Ela não tinha a menor idéia do que aquela idiota estava falando, e também não estava nem um pouco interessada. O seu único interesse, no momento, era acabar com aquela maldita, de preferência de um jeito bem lento e doloroso. Se ao menos ela encontrasse a sua zanpakutou... Estava ali, em algum lugar, Hiyori podia senti-la. Ela podia agora, também, reconhecer perfeitamente o lugar onde estava, as ruas vazias de terra batida, os casebres abandonados em escombros, o vento frio e cortante que parecida vir do centro da Terra, carregado de veneno e zombaria. Um simulacro cruel das ruas do Rukongai onde ela crescera. O seu mundo interior.
- É engraçado, sabe. Estão todos preocupadíssimos. Eles acham que você não vai conseguir. Menos um. Ele passa o tempo todo ao nosso lado, dia e noite, noite e dia. Um tal de Shinji. Ele é bem patético, se você quer saber a minha opinião.
Ah, dane-se, ela não precisava de zanpakutou, ela ia estrangular aquela maldita com as próprias mãos. Sem aviso, Hiyori lançou-se sobre seu reflexo, que se desviou sem pressa, sem surpresa. A espada pousada sobre o ombro cortou o ar onde Hiyori estivera apenas alguns segundos antes, e a garota aterrissou graciosamente de seu pulo, apoiando-se no chão apenas por um segundo, buscando impulso para o próximo assalto.
Dessa vez seu chute acertou o alvo, e a oponente de Hiyori foi jogada ao chão, levantando-se rápida como um raio e lançando-se sobre a garota. O primeiro golpe de espada, ela foi capaz de parar com as duas mãos. O segundo fez um filete de sangue escorrer acima da sua sobrancelha esquerda. O terceiro atravessou o seu estômago e cravou-se na parede atrás dela, sublinhado pelo tilintar da risada maníaca do reflexo de Hiyori.
A garota segurou a lâmina com as duas mãos e usou toda a sua força para empurrá-la para fora de seu corpo, obrigando-se a pensar o tempo todo que não havia por que se preocupar, aquele som enjoativo de carne sendo cortada e esmigalhada não vinha de suas próprias vísceras, era apenas imaginário, simbólico, irreal.
Quando a espada se abateu sobre ela novamente, no entanto, sua cabeça estava tão tonta e seus movimentos tão lentos que ela mal conseguiu ver o golpe antes de sentir que, novamente, tudo escurecia e seu corpo espiritual era arrastado de volta à cela sombria do fim do mundo.
Foi só quando as portais imateriais trancaram-se ao seu redor e o escuro insondável abateu-se sobre ela que Hiyori finalmente entendeu o que a maldita mulher quisera dizer com toda aquela bobagem sobre lutas pelo corpo e os outros. Ela se lembrava, agora, de ter visto alguma coisa sobre o assunto num daqueles artigos monótonos e infindáveis que Kisuke vivia insistindo para que ela lesse. Era algo que todos tinham, um risco que todo mundo corria ao se tornar shinigami, e o motivo pelo qual a Academia exigia tanto preparo físico e mental de seus alunos antes de permitir-lhes iniciar a busca pela sua alma e sua zanpakutou. Era o mistério por trás dos desaparecimentos no Rukongai, o segredo que Kisuke tinha escondido por tanto tempo, a explicação para todos os movimentos e todas as ambições de Aizen.
A maldita idiota que a tinha trancado dentro de seu próprio mundo interior e esmagado na mais curta luta de sua vida não era ela própria, e muito menos o seu reflexo. Aquela garota de pele branca, rosto sardento, cabelo platinado e olhos de âmbar sobre preto era o seu hollow interior e, ou Hiyori estava muito enganada, ou seu corpo tinha sido literalmente possuído pelo demônio.
Um único pensamento martelava em sua mente, no entanto, mais importante do que qualquer outra porcaria sobre as traições de Aizen e Kisuke ou os riscos que ela própria corria.
Shinji estava vivo.
N.A:
Senhoras e senhores, eis o primeiro capítulo de "A Segunda Máscara".
Apesar de ser a continuação do conto sobre Shinji e Hiyori, e todos os que os rodeiam, essa história é bem diferente da original.
A estrutura de "A Primeira Máscara", todo mundo que lê fanfics em inglês sobre o Shinji e a Hiyori deve ter percebido, foi fortemente influenciada por "24 Chips of Bone to Make a Mask to Hide the Truth", de Tasogare-Taichou. Basicamente, "A Primeira" é uma espécie de coleção das primeiras vezes de Shinji e Hiyori, os momentos únicos e marcantes que definiram e estruturaram sua relação.
Se o papel de "A Primeira Máscara" foi criar as bases, o de "A Segunda" é bagunçá-las. Com demônios no peito e um novo mundo a descobrir, Shinji e Hiyori vão ter que reaprender quem são, o que querem e quem podem ser.
Nessa continuação eu estou mais ambiciosa. Infelizmente, no entanto, ando também mais ocupada e menos inspirada. Por isso, não esperem atualizações muito rápidas e capítulos geniais. Eu estou apenas experimentando e aprendendo a escrever – esperançosamente, com a ajuda dos seus comentários, críticas, elogios e sugestões.
Saudações,
Lady Macbeth
