0. Will the world remember you when you fall?

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ㅤㅤㅤㅤEstava empoleirado na base de um alto outdoor em particular. O grande anúncio, há muito intocado e castigado pelas forças da natureza, exibia a fotografia de um veículo destroçado de encontro a um poste. Também haviam alguns dizeres, algo que algum dia já fora um anúncio, um aviso camarada aos descuidados: Se dirigir, não beba. Após tantos anos, porém, parte do papel havia se desprendido da base superior, e agora pendia solto, escondendo algumas palavras, alterando o enunciado:

ㅤㅤㅤㅤ"Se dirㅤㅤㅤㅤ beba".

ㅤㅤㅤㅤIronicamente, Grantaire, que sequer havia se dado o trabalho de ler o imenso anúncio às suas costas, abriu a garrafa de cerveja que tinha em mãos e tomou um grande gole, mas não sem antes elevá-la ao ar, um hábito que vinha cultivando há algum tempo, por nenhuma razão justificável. Gostava de pensar que brindava a si mesmo, e, ao mesmo tempo, a ninguém em especial. Um brinde à sua liberdade, um brinde ao fato de mais um dia ter se passado e ele continuava às voltas pelas ruas, escapulindo com sucesso das autoridades e suas patrulhas sinistras.

ㅤㅤㅤㅤEra tarde, e por detrás dos prédios altos e encardidos, o sol se escondia lentamente, agraciando toda aquela imundície de cidade com a vivacidade de seus raios alaranjados. Aproveitando os últimos momentos de luz natural, Grantaire observava o movimento do bairro à sua frente num silêncio repleto de fascínio, apenas interrompido pelos eventuais gulps do som do álcool lhe descendo goela abaixo. Gostava de observar as coisas do alto. Sentia um prazer estranho em observar todas aquelas pessoas, à distância, mais assemelhando-se a formigas, sempre vestidas em cores neutras e tristes, como se o mundo tivesse feito um acordo silencioso de tentar se mesclar à paisagem urbana, com todos os seus entediantes tons de concreto. Uma palhaçada sem fim, ele dizia. E Grantaire vestia verde, em parte forma de um protesto singelo contra a monocromia que tanto odiava, grande parte apenas porque adorava a cor.

ㅤㅤㅤㅤAo longe, avistou uns oficiais fazendo suas rondas rotineiras, à procura de fugitivos da lei feito ele. Parado ali no alto, mesmo à meia luz, Grantaire era um alvo fácil a ser avistado, a cor de suas roupas destacando-o como um gafanhoto pousado num quadro negro. Ainda assim, imprudentemente, permitiu-se ficar ali por mais alguns minutos, até o sol desaparecer por completo. Estreitou os olhos e ficou a estudar os militantes, suas vestes azuis-marinho, os grandes coletes anti-balas sob o peito, as botas pesadas até os calcanhares, as intimidadoras armas que carregavam nas mãos. Não dava pra ver seus rostos àquela lonjura, tampouco seus cabelos sempre escondidos em quepes, mas, Grantaire notou, havia um leve volume no busto de alguns, denunciando a presença de mulheres dentre os bastardos. Uma pena, ele lamentava; não gostava de enfrentar mulheres. Sentia-se mal se tivesse de ferí-las, e encontros entre oficiais e fugitivos jamais acabavam em festas de chá.

ㅤㅤㅤㅤElevando o polegar e o indicador a altura da face, estreitou os olhos até enquadrar o grupo inimigo dentre o curto espaço entre os dedos. Imaginou-os naquela escala, pequenos como insetos em suas mãos, e então pressionou os dedos um no outro, esmagando suas projeções imaginárias, sorrindo divertido com a idéia de que pudesse segurar uma patrulha inteira em sua palma.

ㅤㅤㅤㅤ— Tentem me pegar agora, seus miseráveis!

ㅤㅤㅤㅤO conteúdo da garrafa em suas mãos quase chegava ao fim, e quanto mais próximo ao fim, mais e mais pensamentos ridículos emergiam em sua mente, meio imersos na euforia disfarçada de felicidade que o álcool lhe proporcionava. Não se deixava incomodar por eles. Bebia com tanta frequência, que já não mais se considerava um bêbado; seu aparente jeito embriagado havia se tornado parte de sua personalidade característica, sua marca registrada. Tinha poucos conhecidos dentre aqueles que fugiam da lei e seus chips amaldiçoados, mas mesmo dentre esses poucos, sua fama já se perpetuara.

ㅤㅤㅤㅤ— Olhem lá quem vem, se não é nosso bêbado favorito! — o velho Gerard exclamara certa vez. Gostavam dele. Grantaire, sempre com suas cores alegres e sorriso amistoso, piadista como só ele (mesmo que em noventa por cento do tempo o único ouvinte de seu humor, fosse ele próprio), parecia ter um dom natural para animar as pessoas. E em tempos difíceis como aquele, em que pessoas eram presas e mortas por apenas exercerem a liberdade que têm por direito, pessoas como Grantaire eram raras e preciosas. Um pequeno raio de luz na escuridão de um mundo tão hostil.

ㅤㅤㅤㅤA garrafa finalmente chegara ao fim, bem a tempo do cair da noite completa. Grantaire sacudiu o frasco vazio, observando as últimas gotas voarem do gargalo para o vazio à sua frente, e então afrouxou os dedos, sentindo o vidro frio deslizar dentre a dedos suados até que despencasse livremente. Um, dois, três... Apurou os ouvidos para melhor ouvir o som do vidro se espatifando lá embaixo, o som de um todo se dividindo em milhões de pequenos pedaços cortantes. Por um instante, pegou-se imaginando no lugar do frasco. O que aconteceria se caísse? Que barulho produziriam seus ossos de encontro ao chão? Qual seria a sensação de voar, nem que por três segundos, para a morte certa? Inclinou-se poucos centímetros a frente, e a vertigem da altura o atingiu como um banho de água fria. Afastou-se da borda, fechou os olhos com força, e cantou baixinho uma música de ninguém. Gostava de cantarolar.

ㅤㅤㅤㅤUma brisa fria começava a soprar agora no início da noite, e Grantaire viu no calafrio que sentiu um bom sinal. Reabriu os olhos para encontrar os pequenos pontos de luz nas janelas se acendendo a distância, a cidade despertando para a noite. Era uma vista bonita, ele pensava, mesmo com todos aquelas construções enferrujadas e caindo aos pedaços. Quantas outras pessoas tinham o privilégio que tinha? Aprisionadas em cantos escuros de fábricas sujas e nos pequenos cubículos mal cheirosos que chamavam de lar, muitas nem mesmo viam a luz do dia. Grantaire sentia pena delas, mas o que poderia fazer? Não era nenhum herói. Ainda assim, a vida continuava.

ㅤㅤㅤㅤSecou a umidade das mãos nas calças encardidas e apoiou-se firmemente na haste lateral do outdoor, o metal roído e enferrujado manchando suas mãos de vermelho. Achou uma posição consideravelmente segura, e começou sua lenta descida até o chão, apoiando os pés em parafusos protuberantes. A descida era sempre mais complicada que a subida; com o álcool fazendo sua visão dançar, era muito mais fácil errar um pé e ter um pequeno momento de pânico, pendurado no ar, debatendo-se como um boneco de pano ao tentar achar um novo ponto de equilíbrio. Nesses momentos de vida ou morte, Grantaire experimentava alguns segundos de uma fina sobriedade, como se seu sistema o agraciasse uns poucos segundos de clareza em seus instantes finais. Mas seja por habilidade, ou por alguma bendita sorte dos céus, Grantaire jamais caía.

ㅤㅤㅤㅤDesta vez, faltavam-lhe aproximados um metro até o chão quando saltou por contra própria, aterrissando com uma pirueta e um floreio para a platéia imaginária. A garrafa que jogara lá do alto estava há alguns metros dali, reduzida em sua maioria a pó. Grantaire ficou a observar os restos sem exergá-los de fato, enquanto pensava para onde iria. Não tinha uma casa para voltar, e os poucos amigos fugitivos que tinha , se possuíssem um pingo de prudência, deveriam estar muito bem escondidos àquela hora da noite, o horário de pico das patrulhas.

ㅤㅤㅤㅤPensou na pensão dos Thénardier ao extremo sul do subúrbio, que visitara algumas vezes quando de passagem. Era um estabelecimento pequeno e clandestino, meio enterrado no chão, tão sujo e repulsivo quanto seus proprietários aproveitadores. Mas ao menos era livre de autoridades, o que o tornava um abraço acolhedor para aqueles já cansados da fuga incessante. Era uma baita de uma caminhada até a pensão, mas Grantaire conhecia atalhos pelos becos escuros de Saint Michele. Decidiu-se que para lá iria passar a noite.

ㅤㅤㅤㅤDesceu a colina a passos rápidos, a terra seca fazendo seus pés deslizares aqui e acolá. Adentrou o primeiro caminho que avistou, um corredor escuro entre dois prédios de pequeno porte. Caminhou por alguns segundos acobertado pela escuridão silenciosa até chegar na bifurcação mais próxima. Esgueirou-se para espiar se ambos caminhos estavam limpos, e não avistando nenhum oficial, adentrou o corredor mais próximo, optando mais uma vez pelo conforto das sombras.

ㅤㅤㅤㅤHavia chegado numa esquina quando avistou um grupo armado caminhando não muito longe de onde estava. Mais do que rapidamente recostou-se à parede, e, prendendo a respiração, esperou que o grupo continuasse a frente sem notar sua presença ali. Permaneceu imóvel pelo que pareceram minutos, até que finalmente considerasse seguro sair das sombras. Checou o perímetro novamente. Nada viu. Havia acabado de pôr o pé no campo de luz de um poste próximo, porém, quando sentiu algo gelado em seu pescoço.

ㅤㅤㅤㅤ— Sem mais um passo — ordenou uma voz feminina firme, às suas costas. — Vire-se devagar.

ㅤㅤㅤㅤGrantaire obedeceu. Virou-se num giro devagar e ritmado, quase ensaiado, um sorriso cínico brincando em seu rosto.

ㅤㅤㅤㅤA mulher em questão não devia ter mais de vinte e cinco anos. Era robusta, e seu corpo preenchia muito bem o uniforme azul-escuro oficial. Alguns fios ruivos escapavam por sobre o quepe, e através da pele suada e encardida de sujeira, podia-se ver o sutil piscar vermelho do chip subcutâneo, na altura do pescoço. Sinal de que era uma Controlada, uma mera marionete do governo.

ㅤㅤㅤㅤNão que Grantaire estivesse prestando atenção nos pequenos detalhes. Sua visão se ocupava inteiramente da imagem do cano de metal apontado para seu pescoço. Os dedos da oficial já repousavam sobre o gatilho, só bastava um leve movimento...

ㅤㅤㅤㅤ— Olha, pra que violência, não é mesmo? — Grantaire soltou uma risadinha, e elevando as mãos em sinal de rendimento, acrescentou: — Vê? Desarmado. Apenas me prenda e faça o que quiser comigo. Não suje suas mãos com uma morte desnecessária.

ㅤㅤㅤㅤEla sacudiu o armamento nas mãos, e por um tenso segundo, continuou a apontá-lo ameaçadoramente. Então piscou, e, por um breve momento, Grantaire viu um flash de consciência retomar os olhos azuis da moça, uma rápida sombra de seu verdadeiro eu. Contudo, tão rápido e súbito como veio, a sombra se foi. A oficial tornou a fechar a expressão, completamente tomada pelo desejo de cumprir o dever da lei. Não abaixou a arma em nenhum momento, e ordenou com firmeza que Grantaire pusesse as mãos às costas. Grantaire obedeceu, e sentiu as mãos de uma segunda pessoa o acorrentarem por detrás. Revirou os olhos, entediado, quando um homem fardado com cara de poucos amigos surgiu no seu campo de visão e segurou seu rosto entre as mãos sem muita cerimônia. Seus rostos estavam tão próximos, que Grantaire teve de zombar:

ㅤㅤㅤㅤ— Ei! Se quiser um beijo, pague-me uma bebida primeiro — sorriu. O oficial sequer alterou a expressão, tal como um robô em modo stand-by. Quando finalmente percebeu o que iriam lhe fazer, já era tarde demais para protestos. A mulher já fincara a agulha de uma pequena seringa em seu pescoço, e, através da picada, Grantaire sentia o líquido transparente adentrando sua pele, queimando e trazendo uma desconfortável sensação de dormência, que em poucos segundos se espalhou por todo o seu corpo. Seus olhos começaram a pesar, suas pernas bambearam. Pouco antes de cair na inconsciência, ainda conseguiu escutar o comando da mulher:

ㅤㅤㅤㅤ— Leve-o para Javert.

ㅤㅤㅤㅤEntão desabou inconsciente nos braços do oficial.

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N/A: tldr: grantaire is a bb