Passava do final de julho, era final de verão. A grama verde farfalhava com um suave vento que refrescava aquele calor. Assim como todas as tardes, ele estava lá a sua espera. Sentado no assoalho de madeira da humilde residência a noroeste de Rukongai. Passava o dia observando o que acontecia ao seu redor. Conhecia cada detalhe daquelas imediações. Sabia qual flor havia desabrochado e qual havia murchado, até mesmo o número de botões de cada uma delas. Não gostava do verão, preferia muito mais o frio. De qualquer maneira, na vida miserável que tinha, era melhor que fizesse calor mesmo. Não possuía dinheiro para comprar bons agasalhos nem ao menos comer bem como exigia o rigoroso inverno que fazia. Toda aquela rotina parecia extremamente entediante a qualquer um, mas havia algo que ocorria naquele dia que o fazia ansiar. Sabia que ela viria. Mesmo rotineiro, não podia deixar de sentir o coração palpitar quando a hora se aproximava. Sempre por volta das quatro da tarde, podia ver a cena que se repetia metodicamente, e acontecia naquele momento novamente. Abriu um largo sorriso que rapidamente tratou de esconder, acanhado, ao ver a menina surgir. O cabelo preto trançado caído sobre o ombro direito, o rosto suave de traços finos e bem desenhados, os olhos tão negros quanto os cabelos. Ela caminhava rapidamente, quase que correndo. Carregava junto ao peito dois livros. Vestia o uniforme praticamente impecável, vermelho e branco, da academia. Fazia algum tempo já que ela a freqüentava. E mesmo que fosse contra a vontade dele, não podia negar que aquele traje a deixava linda. Apesar de parecer ter um corpo ainda não totalmente desenvolvido, ela tinha discretas curvas que considerava bastante insinuantes. Suas bochechas coraram assim que ela aproximou-se.
- Shiro-chan! – ela gritou.
- É Hitsugaya, Hinamori! – ele ralhou como de costume enquanto abocanhava uma fatia de melancia. Uma das várias que estavam cortadas em um prato.
- Tenho uma ótima notícia! – ela disse saltitante.
- Diga. – ele disse com a expressão de alguém que nem ligava para o que se passava.
- Queria que fosse o primeiro a saber! – exclamou.
- Diga logo!!! – sem paciência ele mordeu o último pedaço da fruta.
- Adivinhe! – brincou tomando-lhe as mãos entre seus punhos, fazendo-o ruborizar. – Passei no exame da academia! E fui chamada para um esquadrão!
Ele não sabia se estava entorpecido pelo rubor causado pela atitude dela ou pela realidade que agora lhe caia sobre a cabeça. Hinamori agora era uma shinigami. Uma sensação de felicidade por saber que sua amiga agora teria uma vida melhor preencheu seu coração, mas ao mesmo tempo, uma profunda tristeza e solidão lhe assolaram. Agora sim haveria uma barreira entre os dois. A barreira que separava Rukongai da Seireitei. Ainda atordoado, ela teve de sacudi-lo para trazê-lo a si novamente.
- Shiro-chan! Ei! Responda, Shiro-chan! Aconteceu alguma coisa?
- Ah?! Não, Não... Não seja boba! – ele esboçou um fraco, porém sincero sorriso. – Parabéns, Hinamori. Você se esforçou muito. – parabenizou-a, ainda sentindo as mãos finas dela acolhendo as suas.
- Shiro-chan, estou tão feliz! Mas ainda não sei em qual esquadrão vou entrar. Será que é daquele taichou que me salvou naquele treinamento aquela vez, o Aizen-taichou? Ah, seria tão bom, até parece que aconteceria. Talvez me chamem para o quarto esquadrão, afinal, eu me formei com as melhores notas em kidou, então... seria bom também ajudar as pessoas, não é?
Parecia que todas as palavras e a empolgação de Hinamori eram como uma forte correnteza que a levava para longe dele. Ele ouviu tudo o que ela tinha a dizer enquanto a dor de estar perdendo aquela que sempre esteve com ele dilacerava seu pequeno coraçãozinho. Uma sensação que ele não tinha experimentado antes. Doeu. Naquele dia ele decidiu: tornar-se-ia um shinigami. E ficaria ao seu lado.
A brisa suave soprava seus cabelos prateados que dançavam a mesma música nas cortinas que adornavam as janelas. Era final de tarde, e se alguém visse aquela cena, com certeza duvidaria do que seus olhos refletiam. Dormia profundamente sobre sua mesa. Um copo com chá esfriava ao seu lado. Alguns papéis serviam de travesseiro. E falando em papéis, mais eram trazidos por sua fukutaichou.
A loira exuberante trazia uma pilha deles. Mais documentos para que seu pobre taichou tivesse de carimbar e assinar. Não se sabia se era pela quantidade de papéis que trazia ou pelo volume de seios que a impedia de se locomover adequadamente, mas desastrada, ela seguiu derrubando metade das coisas que encontrava no caminho até chegar à mesa de seu taichou.
- Eeeeh, taichou! – largou a pilha de papéis enquanto se espreguiçava – é tudo o que tenho acumulado. Não sabia que era tanta coisa... – e continuou feito uma matraca até seus olhos baterem no menino. – Taichou?!
Sua surpresa não era à toa. Desde quando Hitsugatya Toushirou era visto assim, dormindo em meio ao expediente? O tão rígido capitão da 10° divisão.
- Eh, não acredito... – ela riu, admirando a expressão tranqüila dele. – Bem, já que o senhor está dormindo, acho que não vai se importar de eu sair um pouquinho mais cedo! – ela sussurrou, maldosa. – Vou poder beber com o Kira, o Shuu...
- Matsumoto!!! – ele gritou como de costume.
- Taichou! – ela gelou dos pés a cabeça. – Pensei que estivesse dormindo! – disfarçou.
- Nem pense em sair mais cedo daqui. Tem muito trabalho acumulado. – brigou com uma veia saltando da testa. – Está sempre pedindo dispensa. Tem muita coisa aqui para você averiguar. Já levamos bronca novamente do esquadrão 1.
- Não entendo porque toda essa parte burocrática fica com nosso esquadrão! Por que não poderíamos cuidar de gráficos como o esquadrão 9? Eu poderia ver coisas da moda sempre e...
- Chega! – ele gritou. – Tem tudo isso aqui para você preencher ainda. – ele retirou mais.
- Mais papéis?!
- Tem pelo menos mais duas resmas para você. E faça direitinho que eu vou conferir.
- Mas taichou, hoje é o dia do festival e eu tinha combinado com o pessoal e... – e como uma adolescente chateada porque não podia sair de casa ela começou a argumentar. Mas neste deslize que ela lembrou a ele do festival.
- Ah, o festival.
- Não lembrava? O Sr. Vai, não é? Afinal, todos vão! E a maioria dos taichous vai terminar o expediente mais cedo. Acredite, até o esquadrão 6.
Sabia que ela estava tentando seduzi-lo, mas ela acabara de ter uma grande idéia. Fazia tanto tempo que não ficava junto de Hinamori. Pensando bem, fazia vários dias que ela estava tão distante, parecendo até querer que ele notasse que ela estava se afastando aos poucos dele. Seria aquela a oportunidade perfeita? E se fosse a convidar?
- Ei, taichou! – ela o pegou novamente perdido em seus devaneios.
- Anh?! – piscou. – Ah, sim, pode sair às 5. E trate de não encher muito a cara, senão além de descontar do seu pagamento, eu vou atrás dos taichous de seus amiguinhos, hein?
- Yaaatta! – ela o abraçou, indiscretamente afundando a cabeça do rapaz no meio dos seios. – Yatta, taichou! Você é tão bom para mim, taichou!!!
E como num passe de mágica, ela saiu levando os papéis. Sentiu um alivio, pelo menos ela faria seu trabalho com gosto agora. Decidiu. Convidaria Hinamori para o festival. A oportunidade perfeita para os dois ficarem juntos e, quem sabe, a sós.
Passava das cinco da tarde, a maioria do esquadrão já havia deixado a área do esquadrão 10. Aquilo irritava um pouco a ele, afinal, se desse uma pequena dispensa, sabia que todos iriam sem hesitar. Também, com sua tenente dando tão exemplo.
Tomou um rápido banho, retirou o shihakushou preto e colocou algo mais folgado, mas não menos elegante. Um kimono azul marinho e um hakama da mesma cor, porém com um tom mais escuro. A faixa no meio a cintura era cinza, contrastando com o visual monocromático. Imaginou como estaria a sua pequena naquele momento. Trancou a porta de sua sala e de seus aposentos. Calçou as sandálias e seguiu seu caminho. Não era muito longe até o quinto esquadrão, passava por áreas bonitas, onde até colheu um pequeno lírio branco para levar a menina. Não seria vergonhoso, seria apenas uma maneira de agradá-la, não um galanteio, assim pensou para tomar coragem em levar o pequeno botão.
Ela estava banhada em suor. Não via a hora de terminar de conferir todos os relatórios que tinha em sua mesa. Precisava se apressar se quisesse ser pontual. Ainda teria de se arrumar. Droga! Por que tudo havia ficado para a última hora? Se o esquadrão 11 não demorasse tanto em trazer sua parte... Suspirou, irritada. Uma expressão nada usual naquele rostinho. Mas só de pensar que poderia perder a chance de ir ao festival, não se acanhava em fazer manha.
- Hinamori-kun, rápido! – gritava uma voz grossa, porém suave de uma sala ao lado.
- Já estou indo! – ela respondeu, deixando metade da papelada cair.
- Vamos nos... – a porta de correr se abriu e mostrou a ela seu taichou.
Suas bochechas pálidas enrubesceram automaticamente. Ele era um homem extremamente atraente e elegante. Estava sem seus óculos, o cabelo castanho claro penteado para trás, um kimono verde-escuro com algumas estampas mais claras, porém discretas. Os óculos degrossa armação estava pendurado sobre o decote do traje. Estava extremamente elegante.
- Aizen... Aizen-taichou, me desculpe! Eu ainda nem...
- Não se preocupe, eu a ajudo. – e com seu sorriso tenro e carinhoso ele se aproximou e se ajoelhou, pondo-se a recolher os papéis com a menina.
- Não, não faça isso! O senhor vai se suj...
E antes que pudesse completar a frase, estabanada e nervosa como estava, tentando catar os papéis, sua mão foi direto de encontro com a de Aizen. Aquilo pareceu um choque entre as duas peles. Ele sentiu a mão suave dela tocar na sua. Para a menina, parecia que tinha feito a maior imoralidade do mundo. Imoralidade? Ela tinha era sentido algo nunca antes passado por seu corpo. O calor da mão de seu taichou junto da sua. Os dois ergueram o rosto e seus olhares se cruzaram por um instante.
- Oe, Hinamori! – o rapaz gritou assim que abriu a mesma porta por onde Aizen entrara.
Os olhos dele demoraram a assimilar a cena. Os dois ao chão, juntos, as mãos uma por cima da outra. A garota pareceu extremamente desconsertada ao vê-lo a porta. Aizen recompôs-se imediatamente e pôs-se a sorrir amigavelmente ao rapaz. O gelo que ali havia se formado e feito a respiração de Hitsugaya dar uma pausa por um breve instante se quebrou quando ele o cumprimentou.
- Yo, Hitsugaya-kun! – Aizen acenou da maneira cordial costumeira.
- Ah... Aizen, yo! – meio que tonto ele respondeu, ainda com os olhos fixos em Hinamori.
Não era por Aizen, mas por Hinamori. Via que a menina estava totalmente perturbada por ele ter visto a cena. Aizen talvez não tivesse a intenção, mas sentia que Hinamori era completamente louca por ele. Não era impressão, sabia que o taichou do 5° esquadrão mexera com seus sentimentos desde que ela o viu pela primeira vez. Nunca se esqueceria de quando ela voltara daquele treinamento.
- Baka, podia ter se machucado! – ele brigou enquanto enfaixava a mão da menina.
- Shiro-chan, mais devagar... – reclamou enquanto apertava os olhos.
- Deviam ter seguido as ordens do líder de vocês.
- Mas, mas logo chegou um taichou que nos salvou.
- Um taichou?
- Sim, sim! Um homem de aparência muito elegante. E tinha seu tenente também, parece um pouco mais novo que ele. Ele tinha um sorriso muito carinhoso e calmo. Além de ser muito bonito... – ela suspirava enquanto dizia até que o garoto apertou o pulso machucado dela. – Ai!!!
- Pare de ficar falando feito boba aí! – ele estava nitidamente enciumado.
- Está enciumado, é? – ela riu.
- Cale a boca! – resmungou.
Era ele o homem dos olhos de Hinamori. Precisou que Aizen novamente se pronunciasse para que Hitsugaya saísse daquele mundo fechadio que criava para si.
- Vou deixá-los a sós. – ele anunciou enquanto saia. – Estou esperando. – meneou a cabeça para a menina que assentiu, ainda sem graça.
- Shiro-chan! Há quanto tempo! – ela sorriu. – Sente-se.
- Não. Vim apenas ver como estava... – ele disfarçou. Os dois estavam numa situação delicada.
- Aizen-taichou estava me ajudando... – tentou se explicar enquanto ajeitava os papéis no canto da mesa. – Mas fico feliz que tenha vindo. – sorriu.
- Eu vim perguntar se... não quer vir ao festival hoje... já está quase na hora... – desviando o olhar, acanhado, ele perguntou enquanto apertava o cabo da flor entre os dedos.
- Anh... Me desculpe, Shiro-chan... – ela baixou a cabeça, apertando os punhos. – Aizen-taichou me convidou, fiquei de ir com ele. Não posso recusar.
Era a hora dele engolir a seco novamente. Por que não havia mandado um recado? Uma jigoku-chou?! Qualquer coisa? Não. Tinha deixado para a última hora e olha o que acontecera! Na última hora ela estava convidada por Aizen.
- Mas, acho que ele não se importará se você ir... – ela tentou ser simpática.
- Não, não se incomode. Eu é que estou importunando você. Apresse-se logo.
- Me perdoe... – ela insistiu. – Me perdoe, eu não sabia...
- Você não tem que me pedir desculpas por nada. – ele sorriu forçado. – Pegue.
Ele estendeu o lírio, tão puro e casto como via a menina. Tão doce e frágil como tal. Ela aceitou com certo pesar. Sentioa como se o estivesse magoando, mas estava. Mas como negar que sempre queria ter a atenção de seu capitão?
- Arigatou, Shiro-chan! – ela sorriu.
Ele fez o mesmo, mas diferente do usual, ele não brigou com ela por tê-lo chamado de Shiro-chan. Ele apenas deu meia-volta e se retirou. Da mesma maneira de antes, ele passava a sua frente. Salvara Hinamori, levara Hinamori, fazia de Hinamori sua propriedade. Novamente ele sentiu a dor da rejeição. Ao sair, encontrou Aizen na saída do esquadrão. Ele o cumprimentou, mas pareceu não ouvi-lo.
A noite não estava perdida. Pensou. Talvez, ainda houvesse chance.
Decidiu ir ao festival.
