Palavras do Autor: " Dae pessoal! Essa fic é um presente pra minha querida esposa (embora não admita isso xD )Petit Ange! A verdade é que já tinha a idéia dela em mente, e quando tirei a Petit no sorteio saquei quase na hora que essa fic seria idela para ela. Um clima pesado e tenso com bastante suspense. É na realidade um conto de Sin City, o quadrinho de Frank Miller. Este conto eu dividi em duas partes. Bem, espero não decepcionar. Me esforcei para conter os elementos das outras histórias de Sin City. Espero que meus leitores gostesm, e principalmente a Petit! Claro! Beijão pra vc menina! xD
Sem mais delongas... Apresento-vos...
A última noite do Hospital Fletchfield
Parte I
"Basta ir ao beco certo e pode encontrar qualquer coisa em Sin City". Esta, provavelmente, é a única verdade que vai ouvir da boca de alguém em Basin City, conhecida como a Cidade do Pecado. Mesmo que você seja de longe, que se considere um cara certo, com princípios e moral, a Cidade do Pecado te contamina, te seduz, você não consegue escapar. E mesmo que escapasse ela acabaria dando um jeito de acabar com você. É assim que a máquina funciona.
John Fletchfield chegou à Basin City há mais de trinta anos. E foi de teimoso. Os amigos e parentes lhe alertaram sobre a podridão da cidade, a corrupção e os esquemas sujos. Mas o poder de sedução foi muito maior do que qualquer aviso. A proposta de emprego era ótima, irrecusável para um médico recém formado e desempregado.
Claro que John não se tornou um médico honrado e caridoso, comprometido com seu juramento e disposto a zelar pela saúde das pessoas. Afinal, se fosse esse o caso, sua história não estaria sendo contada aqui. Aliás, se fosse esse o caso, ele não estaria em Sin City
Mas pobre John, a culpa não é dele. Por algum tempo até trabalhou duro e limpo. Mas apenas por seis meses, o prazo de validade da honestidade de qualquer um na Cidade do Pecado. Entrou nos esquemas sujos por uma questão de sobrevivência. Ou seja, na verdade, foi culpa dele sim. Afinal é uma questão de escolha: aceite as regras do jogo e dê-se bem ou caia fora. Por necessidade John aceitou o jogo, foi uma escolha consciente, não fora forçado. Fora sim seduzido, mas aí é outra história.
John dera-se conta de que todos os ramos em Basin City já tinham sua máfia, inclusive a medicina. Falsificar exames, não entregar atestados a trabalhadores para que o patrão não indenize, pedir exames desnecessários para atender acordos com laboratórios, realizar cirurgias e procedimentos para ganhar dinheiro em cima de acordos com planos de saúde, só para citar um pouco do que se fazia por lá. E ao longo dos anos foi-se moldando uma índole em John que, anos mais tarde, o levaria à ruína e acabaria com sua própria vida em apenas uma noite...
John ficou mais conhecido como Dr. Fletchfield. Dono de uma fortuna, do maior hospital em Basin City e o médico dos poderosos da cidade. Ele próprio era um dos poderosos da cidade.
O prédio do Hospital Fletchfield hoje está abandonado. É um reduto de bêbados e drogados. Mas um dia foi um hospital suntuoso, referência em tratamento de saúde para ricos e poderosos. E somente para esses, pois, coitado do acidentado que for encaminhado para lá.
Fletchfield desprezava este tipo de paciente. E só os recebia por não ter opção, afinal seu hospital era o maior da região e o corpo de bombeiros sempre encaminhava as vítimas de acidentes para lá. Diziam que ele mandava deixar os acidentados à mercê da sorte na enfermaria. E quando questionado, respondia:
- Esses ignorantes enchem a cara de álcool e drogas e depois saem por aí dando tiros e enfiando os carros em postes! Aí querem que eu fique gastando com eles para receber aquela porcaria do plano de saúde público? Nem a pau! Se não tiver plano de saúde particular ou grana viva, vai morrer mesmo!
John tinha conquistado seu sucesso com muito custo. Suara para chegar aonde chegou. E suas pretensões eram de atender aos pacientes que melhor pudessem pagar por seu serviço de excelência em saúde. O serviço oferecido em seu hospital custa caro, e não era para o bico de Zé-ninguém sem lugar para cair morto. E se você não tem onde cair morto, caia longe do Hospital Fletchfield! Aquele lugar não é para você.
O que o indignava e lhe torrava a paciência era esse povo ignorante enchendo a cara de álcool e drogas, numa tentativa fútil e primitiva de esquecer os seus problemas suburbanos medíocres. Como se isso fosse resolver alguma coisa! Que ignorantes! Ao invés de levantarem a bunda do bar e irem trabalhar, ficam gastando a mixaria que eles têm com essas porcarias! Depois ficam alucinados, entram na frente dos carros, arrumam confusão, são baleados por aí... E ainda vai sobrar para o pobre John que sempre trabalhou duro e conseguiu seu lugar à sombra com muito esforço e suor?
Tão religiosos esses vagabundos. Chegam a pedir pelo amor de Deus que os ajudasse. Mas horas antes venderiam a alma ao diabo pra conseguir o pó que cheiraram. Se acreditam em Deus, esperem na enfermaria que Ele vá operá-los.
Em contraste à esse gênio difícil do John, também trabalhou nesta época no Hospital Fletchfield o Dr. Maynard, na época um residente, recém formado em medicina que dava duro em longos plantões. Assim como John quando tinha sua idade: um jovem cheio de planos e aspirações, ansiando por utilizar seu conhecimento para salvar vidas. E assim como John, a cada plantão que fazias seus ideais se consumiam pela dura e fria realidade.
Os acontecimentos que culminaram com o fim de John e de seu suntuoso hospital tiveram início com um telefonema recebido por Maynard.
- Estamos mandando o garoto para aí! – disse o bombeiro do outro lado da linha.
- Ele tem plano de saúde? – perguntou Maynard.
O bombeiro do outro lado riu antes de responder:
- Tá de brincadeira colega? Quando muito conseguimos tirar o moleque das ferragens. Não tem nem documento, muito menos uma carterinha de plano de saúde.
- Ah meu Deus... – exclamou Maynard, que já conhecia o tratamento dado à moribundos acidentados no hospital – E qual a situação do paciente?
- De mal a pior, meu camarada. Ele tem um pedaço de ferro enfiado na barriga, não nos arriscamos a tirar por que pode dar complicações sabe? O carro dele rolou um barranco e caiu dentro de um córrego... A ferida dele tá nojenta. Infecção das brabas. Não sei se sobrou alguma costela desse cara não viu... Hemorragia interna grave também.
- Ah! Ele precisa ser operado!
- Pode crer que precisa! Estamos chegando!
- Não! – pediu Maynard – Não tragam ele para cá! O Dr. Fletchfield vai deixá-lo na enfermaria pra morrer! Levem para outro lugar!
- Tá loco dotor? Não tem lugar nenhum aqui por perto. Até eu chegar no próximo hospital esse moleque já era! Além do mais meu turno já acabou faz três horas e não quero esse cara morrendo na minha ambulância! O senhor tem idéia da complicação que isso dá?
- Mas ele vai morrer aqui!
- É só operar, porra! – respondeu o bombeiro já perdendo a paciência. – Já disse: não quero esse moleque morrendo na minha ambulância. Eu levo aí e vocês se viram! Tô chegando dotor! Apronta tudo aí! – e desligou.
Maynard desligou o telefone pálido de preocupação. Sua testa gotejava suor frio e tenso.
O único cirurgião de plantão ali no hospital era o próprio Fletchfield. E ele não operaria aquele garoto, nem sequer iria vê-lo. E faria como sempre: deixaria o pobre moribundo à própria sorte, sangrando numa maca, quando muito com um soro no braço e algum analgésico, para não gritar a noite inteira. Um médico não poderia permitir isso! Maynard jurara fazer de tudo para salvar o próximo, zelaria pela saúde do outro como se fosse a sua própria. Como poderia deixar um jovem, com um mundo de caminhos e escolhas pela frente, se acabar desta forma tão humilhante em uma maca de enfermaria? Quantos planos e sonhos aquele jovem não teria? Não seria justo perder tudo por causa da frieza e descrença de um médico sádico e insensível.
Uma coisa que o próprio Maynard aprendeu com o exercício da medicina foi que a morte é de fato o fim da linha. Não há depois, é fim de jogo, a pupila dilata, a vista escurece e acabou. Daí pra frente em nada você é diferente de um pé de alface. Ricos e pobres, bons e maus, todos têm o mesmo caminho. Apodrecem, fedem, vêm os vermes e a terra os consome. E justamente por ter essa plena consciência o jovem médico aprendera que a vida deve ser valorizada, por que depois não há mais nada. Ele próprio era um jovem, que tinha planos para seu futuro e agora se imaginava na pele daquele rapaz acidentado, com todos os sonhos se desfazendo, se perdendo em uma hemorragia e sendo consumidos por uma dolorosa infecção.
Seria justo Maynard, alguém com o poder de mudar esta situação, ficar de braços cruzados e apenas observar uma vida cheia futuro se apagar?
Não, não era! Maynard haveria de fazer alguma coisa!
Ou ao menos tentaria...
Xx
Maynard tomou coragem e foi falar com o Dr. Fletchfield. Esperava por resposta após bater na porta de sua sala. Parecia não ter ninguém. Tentaria bater novamente, mas não foi necessário.
A porta abriu apenas uma fresta, e por ela a cara da enfermeira Lisa espichou para fora.
- Maynard? O que quer?
- Hã... – gaguejou um instante – Preciso falar com o Dr. Flectchfield. Tem um paciente importante aqui...
- Espera aí...
A enfermeira voltou pra dentro e fechou a porta. Passou alguns instantes esperando do lado de fora, até que a porta se abriu novamente e Lisa saiu.
- Pode entrar...! – disse ela aos resmungos antes de ir embora, com o nariz torcido.
Mais nervoso que achou estaria, Maynard entrou e fechou a porta atrás de si.
- Doutor... – disse ele sentando em frente à mesa do dono do hospital.
- Sim, residente Maynard? – respondeu ele com a voz rouca, fazendo questão de lembrá-lo qual a sua posição ali dentro: um mero residente.
John olhava feio para Maynard. Suas sobrancelhas grossas se arqueavam, e sua cara redonda de gorda e com a barba por fazer se torcia em uma careta mal-humorada.
- Eu... hã... Um garoto... Chegou um garoto. O corpo de bombeiros o trouxe e...
- Acidente? Briga? – indagou John antes que Maynard pudesse terminar, um comportamento típico.
- É... acidente, senhor. O carro do garoto capotou e caiu no córrego. Temos uma infecção séria e hemorragia interna. Precisamos operá-lo imediatamente. Nós já...
- Plano?
- ...perdão?
- O plano de saúde! Qual o plano de saúde desse moleque?
Maynard engoliu em seco. Esta pergunta pelo qual temia. Ensaiara dezenas de vezes mentalmente uma forma de articular com John e faze-lo relevar o fato do jovem não ter sequer documentos. Mas fora pego desprevenido, fora desarmado completamente.
- É... não possui, doutor.
John abaixou a cabeça e coçou as têmporas, mantendo-se num breve silêncio.
- Doutor Fletchfield, o garoto está sem documentação e...
- E por que acha que eu devo gastar meu tempo e recursos com um jovem moribundo? Um moleque alucinado cheio de drogas na cabeça dirigindo por aí sem prudência alguma? – explodiu o velho.
Ainda que ele falasse com veemência, quase que gritando, Maynard não recuou. Embora suasse frio o jovem médico se mantinha disposto a argumentar.
- Não... não pode julga-lo assim, doutor. O senhor não o...
- Não o conheço? Claro que conheço! Rapaz, o que você tem em idade eu tenho o dobro trabalhando em hospitais! Conheço esses moleques! É só fazer um exame de sangue... vai encontrar tudo quanto é porcaria lá!
Maynard foi então obrigado a recuar. O exame de sangue preliminar mostrava realmente diversas substâncias ilícitas.
- Quer salvar um moleque desses? Pra ele continuar a encher a cara e depois sair por aí? Quem sabe na próxima vez que ele enfiar o carro em algum lugar ele não passa antes por cima da sua namorada? Ou quando estiver alucinado, procurando briga, não seja no seu irmão que ele enfia uma faca?
- E o senhor por acaso é Deus para julgar as pessoas? – explodiu Maynard erguendo o tom de voz.
- Sin City é uma cidade esquecida por Deus! E se Ele realmente se importasse com aquele moribundo, não o teria mandado para mim...
Seguiu-se um breve e tenso silêncio. Fletchfield permaneceu ainda alguns instantes com o dedo em riste, apontando rigidamente para Maynard, que por sua vez, cabisbaixo, manteve-se em silêncio.
- A quem quer enganar, John...? – indagou o jovem quebrando o silêncio.
-...?
- Não está deixando o garoto morrer para puni-lo por seus pecados... Está fazendo isso por que fazer qualquer esforço por ele não vai te trazer nenhum tipo de ganho. Se o maior traficante do país batesse à sua porta lhe pagando por um tratamento, você o faria de bom grado. Trata-se de dinheiro, doutor, não é o caráter de divino juiz que o senhor traz para si.
E pela primeira vez Fletchfield sorriu. Um sorriso debochado e de escárnio.
- E é exatamente por isso que tenho o que tenho. E é por isso que ao final do trabalho posso degustar um vinho e fumar um bom charuto. Que aos feriados posso ir esquiar, ir à praia, torrar dinheiro na Europa. Deixar minha mulher se encher de ouro e diamante. Meu filho participar das festas mais loucas, dirigir os melhores carros e comer as meninas mais gostosas da cidade. É por fazer meu trabalho a quem pode pagá-lo que sou o que sou...
- Uma puta velha! – completou Maynard num rompante de indignação. Ao passo que John respondeu sem se alterar:
- Uma puta velha, rica e satisfeita. E não um bosta de um residente, cheio de ilusões infantis e ridículas. Um bosta que acha que pode salvar o mundo, mas não come direito, ganha um salário de merda que mal dá pra pagar o aluguel do seu quarto imundo nos fundos de uma pensão em algum esgoto do subúrbio de Basin City. Um médico pobre, cheio de tolas ilusões, fracassado e infeliz...
Maynard calou-se. Os olhos se enchiam de lágrimas e o rosto avermelhado se torcia em uma expressão de raiva. E John continuou:
- E não se atreva a chorar. Agora vá à enfermaria, aplique uma dose boa do sedativo mais porcaria que tiver e deixe aquele moleque por lá Isso se quiser manter esse seu empreguinho aqui e ainda ter chances em algum outro hospital.
O jovem assentiu pesaroso com a cabeça. Levantou-se em silêncio e foi à porta. Mas antes de sair ainda ouviu de John:
- Se você é novo por aqui, trate de aprender rápido as regras do jogo. Aqui é cada um por si e Deus por ninguém, meu chapa. Ou você entra no jogo ou sai fora...
