À sombra de um sorriso
Sombra, substantivo feminino.
1. Espaço sem luz, ou escurecido pela interposição dum corpo opaco.
O salão antigo de reuniões da sede da Ordem da Fênix estava mais escurecido do que o normal. Não chovia, mas era como se as nuvens tornassem-se opacas, tão densas que estavam a bloquear o Sol, a luz; da maneira mais cinzenta que ele já vira.
Já ouvira dizer sobre o Céu contribuir com a sensação soturna dos velórios. Uns diziam que era piedade dos anjos, mandar chuva e chorar junto com aqueles que ficaram sem alguém, e então, sem Sol. Outros diziam que era o Céu a zombar da tristeza, piorando as coisas e fazendo chover e escurecer.
Mas não chovia. Só estava… cinza, escuro.
Marlene diria que… e ele olhou para o lado a ver se ela realmente não o dissera, porque achou ter ouvido sua voz. Ela diria que o céu estava da cor dos olhos dele, e que esse era o lado bom.
2. Reprodução, numa superfície mais clara, do contorno duma figura que se interpõe entre esta e o foco luminoso.
Isso era zombaria. O único ser vivo capaz de iluminar até os dias na casa dos Black, a única mulher que ele amara. Aquela que o fizera pensar, pela primeira vez, em mudar o mundo, e construir um melhor para ela.
O tempo todo enxergava o rosto dela aos onze anos, adentrando a cabina que ele ocupava com James, e sentia em seu peito que fora naquele momento que escolhera lutar nessa guerra.
E exatamente isso a fez perdê-la.
Fechou os olhos e a dor e a raiva invadiram seu peito com violência. Mas isso acontecera tantas vezes nos últimos dias que já havia se acostumado. Pensava se um dia seria capaz de chorar, mas respondeu a si mesmo que não, pois nem mesmo tinha um coração, sem ela ali. Chegava a invejar Lilly ao lado do caixão, derramando lágrimas copiosas, os ombros abraçados por James.
Ele, James, viu-o e acenou, olhando-o tão intensamente preocupado que Sirius obrigou-se a se aproximar.
Arrependeu-se no instante seguinte, quando pôde ver o corpo de Marlene; ela dormia como um anjo.
Sentiu o sangue abandonar seu corpo, como se saísse junto com seu fôlego, e segurou com força o capacete, como se ele fosse um apoio. Fechara os olhos, mas sentiu James se aproximar e segurar seus ombros. Viu-o preocupado como talvez outras duas vezes na vida.
Ele não disse palavra. Nenhum dos dois. O que havia para ser dito, afinal?
A luz se apagara, o Sol escondia-se, sua jaqueta de couro de dragão não esquentava mais.
Voldemort se interpusera entre ele e Marlene. E toda vez que ele fechava os olhos, via o contorno do rosto dela…
3. Lugar não batido pelo Sol.
Lilly se aproximou também, e o abraçou. Ao contato morno do corpo dela, ele sentiu frio. Afagou os cabelos ruivos, fios mais grossos que os de Lenny. Largou-a e olhou o caixão. Tentava se controlar, não arrancar o corpo dela dali e fugir. Como quase fizera da primeira vez. James dissera que não adiantava, que Marlene não estava mais ali. Fechou os olhos para se concentrar.
E tudo, cada maldito lugar, este salão, outra mulher, os óculos de James ou suas próprias botas… tudo, cada pedaço de seu próprio corpo o fazia pensar nela. Como se lhe contassem, só agora, pela primeira vez, que ele e ela, Sirius e Marlene, não eram um só.
Olhou novamente seu corpo. Sentiu raiva por ela estar tão exposta, queria protegê-la. Não queria que fosse tarde demais.
Mas não se moveu. Marlene e sua mania de inaugurar reações nele. Pela primeira vez na vida, Sirius Black conseguiu resistir a um impulso. Um sorriso infeliz fez contorcer o canto de seus lábios, e ele pensou tê-la visto sorrir.
Deu mais um ou dois passos e, antes que pudesse evitar, estendeu a mão em direção ao rosto dela. Seus dedos tremiam como nunca, e era mortal para ele o modo como as feições de Marlene permaneciam perfeitas. Ele tocou seu rosto. Teve que fechar os olhos com força. Ela estava fria como num dia de neve em Hogsmeade, e era só começo de outono. Seu corpo todo tremeu, mas ele não a arrancou dali.
Estava tudo errado, como se ele tivesse fechado os olhos para sempre.
4. Escuridão, treva.
"Ele está bem?", ouviu alguém próximo a Prongs perguntar. Parecia a voz de Moony…
Seria Remus, o traidor entre eles?
Marlene diria que não.
Sentiu uma ânsia intensa e olhou para James. Ele conversava com Remus, e ambos o olhavam. Sirius fez um gesto qualquer para dizer "OK"; sua voz não sairia com a boca assim, tão seca.
Onde se enfiara Marlene que não lhe dava um beijo há tanto tempo?
Passou as mãos pelos cabelos, puxando-os com força. Fios grossos e negros, cabelos de Black, dia cinzento. Marlene o abandonara.
Provavelmente era Remus, o traidor.
E se o dia escurecesse mais dois tons, seria noite.
5. Mancha escura.
"Eu sinto muito, Black". Era a voz de Minerva McGonagall. Ele ergueu os olhos, cinza-escuros, para vê-la. Acenou em afirmação com o rosto, querendo agradecer o que fosse que ela havia dito.
Pensou na escola, que fugira de muitas aulas com Marlene. Que ela sorria pelos corredores escuros iluminando-os. Dentes, lábios, bochechas coradas, e a pontinha quase-nada-arrebitada do nariz; como num quadro, uma fotografia, o sorriso dela.
"Black soturnamente sombrio", ela sussurrava zombeteira para ele, brincando com os "s" e com fato de seu cabelo sumir em trevas. Estavam sentados em alguma passagem secreta escura, escondidos e foragidos de algum professor. E ela o fazia ver seu sorriso, com a luz inerente a ele; e lhe dizia que achava a coisa mais bonita, ter cabelos negros assim. Ele queria ter dito que o castanho dos cabelos dela era perfeito, e que doía só de lembrar da textura deles entre seus dedos.
Olhou-a dormindo entre aquela estrutura de madeira (e jamais chamaria de sepultura). Mesmo sem Sol, o castanho brilhava dourado, oposto à Sirius e à morte. E ele queria, mais do que podia suportar, levá-la embora dali.
"Saudade", seus lábios se moveram, mas a voz não sairia com a boca assim, tão seca. Queria os lábios dela. E a saudade manchava um número infinito de lembranças…
6. V. fantasma.
Arrancaram-na de seus braços, antes que pudesse dizer tudo, sentir tudo, fazê-la feliz. Antes que ele mudasse o mundo para ela. Como se tivessem dito, pela primeira vez, que ele e ela não eram um só.
Ela disse isso, não disse? Em alguma das milhões de brigas, durante algum dia chuvoso, mas quente. "Você tem que ir embora", ele teve certeza de ouvi-la repetir isso a seu lado e, na lembrança, ela o gritara. "Então me manda embora", ele dissera, também aos gritos, e ali no velório, num mover taciturno de lábios secos. E ela respondera, triste, baixinho, chorando do modo mais bonito que ele já vira, "se eu pudesse, mandaria. Tudo o que eu queria era ser capaz disso, de se me separar de você, Sirius. Mas não dá, simplesmente não dá".
E mais uma vez ela se entregara em seus braços, como se fosse tão sua quanto parte dele, como se fossem parte um do outro, e inteiramente pertencentes um ao outro.
Era isso, então, o que ela quis dizer, sobre não conseguir mandá-lo embora. Naquela ocasião, mal entendera. Nunca se preocupava muito com o que ela dissera, isso era fato. Bastava que ela fosse sua, sempre.
Ele daria mais que a própria vida para abraçá-la outra vez, e dizer que agora entendia. E que também era incapaz de mandá-la embora. E essas palavras, e tantas outras, ficariam presas em sua garganta, para sempre. E a única coisa que bastaria, era que ela fosse sua outra vez.
Tentou lembrar se alguma vez na vida acreditara em Céu e tudo o mais. Tudo o que encontrou na mente foi Marlene dizendo, num discurso da garota um pouco arrogante que ela era, "não seja tão obtuso, Sirius. Se existem fantasmas e eles escolheram ficar aqui, tem alguma coisa… do outro lado".
Ela estava mais pálida hoje, dormindo ali.
Ele queria tanto, tanto que fazia sangrar, dizer para ela que o esperasse, onde quer que fosse, porque eles eram, sim, um só. Porque ele não dissera "eu te amo" o suficiente, e porque ela se fora levando-o quase por completo. Porque talvez agora só restasse uma sombra dele mesmo, um fantasma do que fora. Sob a sombra do sorriso dela.
Saiu a passos largos do salão, quis respirar, e fugir da imagem inerte de Marlene.
Subiu em sua moto, pôs o capacete.
Achou ter sentido o peso morno dela a se aconchegar no lugar de trás. E preferiu assim.
Seria mais fácil viver com o fantasma dela a segui-lo. De qualquer forma, enlouqueceria antes de esquecê-la. Perder-se-ia no processo absurdo de tentar esquecer a própria alma, e o próprio coração.
"Parece uma tempestade sem chuva, a cor dos seus olhos", ela disse. Ela sorria para ele.
