876 DC
RAGNAR OG AELLA
Os dinamarqueses entraram sorrateiros em Aebbanduna, querendo arrombar seus tesouros e sua comida a fim de alimentar os exércitos que esperavam pouco abaixo das colinas, perto da praia, a meio dia de cavalgada dali. Aebbanduna era mais uma bela cidade que seria tomada como novo lar, porque aquelas bandas eram maravilhosamente prósperas para o cultivo da terra e de animais.
Os bosques pelos quais se esgueiravam eram por demais úteis porque serviam de escudo e esconderijo, já que lá vivia, como contavam as histórias dos saxões do oeste, uma feiticeira muito desprezada, mas tão poderosa que poderia transformar quem a mirasse em planta.
O homem mais importante era earl Ragnar, senhor de muitas posses e escravos, um homem tão alto quanto um gigante e tão forte quanto um touro, muito inteligente e austero. Seus fiéis seguidores eram dinamarqueses como ele, pagãos que assolaram todo o norte inglês e desejavam que a Inglaterra se ajoelhasse aos seus pés, porque acreditavam que os ingleses eram fracos e inúteis para a luta e muito mais inúteis e inábeis para trabalhar com a terra. Eu era um inglês, eu era Uhtred de Bebbanburg, mas tinha sido criado por earl Ragnar desde os oito anos, por isso tinha me tornado tão dinamarquês quanto qualquer outro. Eu era Uhtred Ragnarson e Ragnar me chamava de filho.
Estávamos na margem da floresta, onde os arbustos altos impediam de sermos vistos. Observávamos com cuidado e interesse uma grande propriedade, onde mulheres trabalhavam num jardim bem zelado. O objetivo era checar os tesouros da propriedade e se ela fosse próspera como a que observávamos a tomaríamos. No entanto, o que havia chamado a atenção de Ragnar não era a propriedade em si, porque rumávamos mais para oeste, onde encontraríamos os estábulos e a casa de armas, o que chamava a atenção dele era a voz de senhora da casa, que também estava no belo jardim.
Era a voz mais melodiosa que eu já ouvira e suponho ter sido a mais melodiosa que Ragnar tenha ouvido também. Possuía um tom quase angelical, se é que acreditássemos em anjos, mas poderia ser o som dos sussurros de deusas dinamarquesas quando colocavam seus filhos para dormir. Talvez fosse aquela interpretação de paraíso que o padre Beocca sempre quis que eu vislumbrasse para me deixar próximo de ser cristão: uma voz presente e onipotente, que acalmava até as feras mais bestiais.
Os olhos de Ragnar estavam vidrados na mulher, os longos cabelos dela, de um fascinante castanho, se movimentavam ao vento como um véu levíssimo. Fiquei com vontade de tomá-la para mim. Então um homem apareceu, um homem vestido de preto, rosnando e gesticulando contra todos os que lá estavam, em especial, contra a senhora. Pude ouvir muito bem as palavras dele e me senti revoltado.
— Como ousa utilizar tal língua em minha casa, mulher? Já não lhe adverti inúmeras vezes?
— Perdoe-me senhor, mas era apenas uma cantiga de criança...
Não adiantou que ela se explicasse, o homem desceu o braço e lhe acertou um bofete com muita força. Covarde, eu disse em dinamarquês e sem perceber, tinha a atenção de Ragnar voltada a mim.
— Bateu na mulher porque ela contava uma canção em outra língua para o menino ao lado. Aquele homem é um pastor - falei com gosto, sabendo que Ragnar iria trucidá-lo então.
Não contente, o homem agarrou a mulher pelos cabelos e a fez ajoelhar para pedir perdão a Deus. Enquanto isso, os serviçais se retiraram, porque era provável que aquela situação acontecesse com constância. Depois que ela começou a orar, o homem fez o sinal-da-cruz e caminhou para longe, na direção de uma construção de pedras, o que deveria ser a casa de armas, que podia ser vista por entre árvores, ao lado da propriedade. Quando o homem saiu da vista da mulher, esta se pôs de pé e alisou o vestido verde-água, para limpá-lo do capim seco que ficara grudado.
O soldado ao meu lado tossiu e Ragnar o mandou se calar. Mas a mulher já tinha se voltado para a nossa direção, postando-se a observar os limites do bosque, como que sabendo de nossa presença. Mantivemo-nos em extremo silêncio, mas a mulher continuava a mirar-nos. Foi quando uma menina chamou com vontade que a mulher se virou para a casa e adentrou o portal.
Seguimos, então, para a casa de armas, seria rápido e devastador, haviam três empregados mais o senhor da casa e os espetaríamos como se espetam pedaços de carne para irem ao fogo. O pastor, senhor conseguiu correr para dentro da casa, mesmo bastante ferido, e trancou a porta. Ragnar ordenou que alguns dos seus vigiassem as janelas e portas laterais enquanto ele, eu e mais três homens entrássemos.
E assim foi.
Pusemos a porta abaixo e encontramos o pastor na cozinha, junto a todos os outros serviçais e à mulher dos cabelos de véu. Ela estava no chão, acudindo seu senhor, mas quando as portas se abriram num estrondo e ela viu o gigante Ragnar e mais três de seus melhores homens, se pôs de pé e os encarou sem sequer piscar. Ela fitava Ragnar com olhos arregalados, surpresos, como se ele fosse uma aparição dos infernos. Ragnar, no entanto, assim como todos nós, a fitávamos com vislumbre e cobiça, os cabelos longos caíam sobre os ombros e fiapos deslizavam por sobre o decote do fino vestido. Ela tinha a pele alva e rosada, e olhos tão castanhos, brilhantes e belos quanto os cabelos. Tinha rosto harmonioso, boca pequena e lábios finos, sobrancelhas bem desenhadas e nariz reto. Era uma mulher alta, mulheres altas geralmente pareciam homens, mas ela era cheia de formas, muito bem evidenciadas pelo gracioso vestido. Era uma mulher diferente de todas as que eu já havia conhecido.
Nada mais víamos ao seu redor. Foi quando ela se aproveitou e atirou contra Ragnar a terrina de sopa quente, e enquanto os homens fitavam Ragnar se desconcertar, ela chutou um dos nossos no saco, agarrou a espada que jazia ao lado do marido e conseguiu fazer um corte no ombro de outro. Mas então Ragnar rosnou contra ela e suas espadas se chocaram. A que estivera nas mãos da mulher voou por sobre a cabeça dos empregados, mas aquela mulher, apesar de ter sentido dor e ter gritado alto, não se deteve, pulou para perto da mesa e a empurrou contra nós. Nesse ponto, Ragnar já gargalhava, e eu sabia que ele estava gostando do que acontecia. Ele era assim, um fanfarrão espalhafatoso, que se divertia com o ânimo e a firmeza de quem nada podia contra ele, mas que preferia lutar uma batalha perdida a morrer implorando pela vida.
— Matem todos - Ragnar falou entre as gargalhadas. A mulher estancou e gritou não em dinamarquês. Nós hesitamos e a fitamos com espanto.
— As crianças não - ela pediu, continuando a falar em nossa língua. - Este é um menino dinamarquês, e aquele é franco... - um jovem murmurou algo, eu sabia que era em latim apesar de não entender, e a mulher se voltou para ele, mandando-o se calar.
— Você é senhora de escravos?
— Não são escravos, mas eram até eu os libertar.
— E porque não os manda de volta a casa? - Ragnar pediu com certo desprezo.
Ela olhou para Ragnar com indignação e afronta, e eu entendi o porquê. E acredito que Ragnar também.
— Porque eu os amo e porque não alcançariam sozinhos nem o portão de saída de Aebbanduna.
Ragnar não era homem piedoso, eu sempre o vira brandir sua espada e repartir inúmeros ingleses, jovens ou velhos, mas agora ele hesitava. De repente ele riu alto. E todos nós rimos com ele, mesmo sem sabermos do que.
— Levem-na para fora, matem todos e queimem a casa!
— Não - a mulher gritou e correu para a outra sala, Ragnar a seguiu, e eu também. Ela havia parado diante de uma estante repleta de livros e passava a mão neles enquanto pedia, em inglês, que Ragnar permitisse que ela os levasse consigo. Traduzi o que a mulher pediu, mas Ragnar só fez rir. Depois disse:
— E para onde acha que pode levar essas coisas? Você é prisioneira agora. Será provavelmente a escrava de algum de nós...
Ela ergueu um olhar melancólico para Ragnar e entreabriu os lábios, mas as palavras não lhe vieram, ou se vieram, não saíram, porque era duro receber uma notícia como aquela. Então, os serviçais foram levados para fora e a mulher os seguiu com os olhos. Ficamos eu, a mulher e Ragnar apenas, e quando o som do metal tocando a carne fez sua música, a mulher começou a chorar. Mas não um choro alto ou estridente, descontrolado ou nauseante, um choro de lágrimas e voz, que mais parecia o canto suave de uma ave solitária.
Ragnar meneou a cabeça e eu saí do aposento. Mas sei o que houve, porque a mulher me contou, mas adiante, quando já tínhamos feito amizade. Ragnar se aproximou e a fitou de perto, era quase tão alta quanto ele e não desviou os olhos quando ele chegou bem próximo.
— Escolha o que lhe é mais precioso - disse Ragnar e ao percebeu um risco de sorriso a suavizar a tristeza dos olhos dela, também sorriu. Então, a mulher acariciou as capas de couro dos livros e parou num de tamanho médio e o puxou, trazendo-o para próximo ao peito. Ragnar o tirou das mãos dela e o folheou. Não entendeu palavra alguma, mas havia grafias e desenhos muito diferentes uns dos outros.
— Está escrito em seis línguas - ela murmurou ao tomá-lo de volta. - Foi meu avô quem o escreveu.
— Você consegue lê-lo?
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
— Fala todas essas línguas?
— Algumas melhor do que outras - suspirou como se fosse uma vergonha admitir. - Meu pai gostava que eu lesse para ele... Meu pai era mercador... de escravos.
— E você salvava-os do mundo.
Ela fitou a janela, depois baixou a cabeça e balançou a cabeça afirmativamente.
— Eu tentava.
Quando Ragnar e a mulher vieram para fora já tínhamos os cavalos e armas que viéramos buscar, e duas carroças cheias de mantimentos. Mas então um inglês saltou detrás dos arbustos e urrou contra nós. Os três homens de Ragnar correram até ele e o enfrentaram enquanto olhávamos a disputa. Parecia que o inglês estava por vencer, era forte e alto, mas os três dinamarqueses eram mestres da espada.
Então soltei uma exclamação e Ragnar se voltou para onde eu olhava: a mulher tinha corrido para dentro do bosque. Ragnar sorriu, desafivelou o cinto onde prendia as armas e correu para aquela direção. Eu corri até um cavalo e até me ajeitar nele os perdi de vista. Mas segui mesmo assim para dentro do bosque. Encontrei-os pouco depois de uma pequena clareira, a mulher estava caída, correr com o pesado e tão precioso livro nas mãos não tinha lhe rendido vantagem alguma. Ainda sentada no chão, ela decidia se ajuntava o livro a dois passos de si ou se corria para longe de Ragnar, que se aproximava rapidamente. Ela não pegou o livro e tão pouco correu. Permaneceu no chão sujo até Ragnar lhe estender a mão. Aceitou a mão dele e ficou de pé, tentando novamente limpar o vestido, mas a sujeira molhada já havia se impregnado no tecido.
— Tome seu livro, mulher, e não tente outra burrice dessas ou nãoserie tão condescendente - disse ele, e a arrastou de volta ao grupo.
