Postagem 1. Beleza Americana

(American Beauty, 1999, EUA)

"Queria ser uma ecologista de sonhos...

Ser capaz de fazer nascer sonhos, vê-los crescer, vê-los dar belos frutos, acompanhá-los envelhecer e, finalmente, vê-los morrer... e depois, a partir de suas mortes, vislumbrar a suavidade do hálito que os movia ser capaz de abençoar o nascer de novos sonhos: renascimento! Ecologia pura! O ciclo completo de Vida, sempre Vida... Ciclo tão perfeito que irmana até mesmo as águas que pairam nos céus, as que fluem pelo sangue em minhas veias, e as que dormem revoltas nas mais secretas profundezas dos oceanos, sempre milagrosamente sendo as mesmas águas em tempos estranhos uns aos outros...

Eu queria era mesmo ser uma ecologista de sonhos... e para quê? Para que eu pudesse jamais deixar morrer - sem imediatamente vê-lo renascer, transmutado! - o meu maior sonho:

Viver de verdade!

Mas não sou uma ecologista... estou mais para uma degradadora ambiental filha da puta, que intoxica, polui e destrói tudo o que toca... estou com 19 anos, e me sinto absurdamente velha, acabada, vazia... Por quê?

Sei lá... Não achei uma resposta convincente pra isso... Não sei mesmo... Aliás, cada vez mais percebo que sei menos... devem ser os sinais da minha senilidade precoce, tipo: Mal de Alzheimer? Para os desavisados, estou sendo sarcástica, ok?... Um pouco do venenoso ácido destrutivo que amaldiçoa minhas veias...

Sarcasmo... revolta... raiva, muita raiva... minha nau no oceano da tristeza...

Por que estou assim? Arrisco uma resposta, mas decerto está errada, como em tudo na minha vida nos últimos anos: estou vazia e velha porque não sei viver... porque desisti de viver... porque acho que a única coisa que sei fazer bem é sobreviver...

Sobreviver... como isso é cansativo! Estou esgotada... sinto minhas forças se acabando... sobreviver é tão difícil... às vezes parece tão... impossível... quero descansar... quero desistir... quero morrer..."

Me deu um arrepio horroroso quando eu li isto que havia escrito há tantos longos meses atrás! Nossa, parece que eu tava possuída pelo que havia de pior na face do Sistema Solar!

Olhei a data em que eu postei aquilo no meu velho blog... Poucos dias antes de ter conhecido Hélène, Leilene e... ele! Que sorte que eu não me matei dum jeito burro justo naqueles últimos três dias, fazendo acrobacias na minha moto, naquelas madrugadas... Escapei muito menos por juízo e muito, muito mais mesmo, por pura sorte!

Deletei esta postagem!

Joguei-a de onde ele nunca devia ter saído: lixeira!

Crash! Som de papel sendo amassado, devorado pelos bits do meu tablet!

Meu blog agora será completamente novo!

Nova vida, novo blog!

Sim, sim!

Bom... er... hãm...

Tá... eu já decidi que vou postar coisas novas aqui... mas como eu começo?

E por onde eu começo?

Putz... o que e como eu começo a contar aqui as coisas pra você ler?

Hum... hum...

Tá! Já resolvi!

Já que não sei mesmo como começar a te contar esta história, afinal eu não passo "duma pirralha de dezenove anos que não sabe nada!" – como já ouvi, é mole?! – vou iniciar te contando a história do meu nome...

Selene.

Até eu conhecer ele, o "carinha misterioso", o meu nome era a única coisa boa que eu acreditava existir na minha vida... meu nome era a única coisa que eu gostava naquela catástrofe de novela mexicana em que eu vivia...

Quem sugeriu meu nome foi minha vó: Selene era uma dentre as suas três sugestões, todas muito especiais...

Ah, minha querida e saudosa vó Rachel... pois minha mãe era incapaz de me dar um nome elegante desses, um nome tão profundo e cheio de significados!

Se meu nome fosse dado por minha mãe? Certamente ela me daria o nome da primeira técnica de enfermagem que cruzasse o caminho dela após o meu parto, só pra ela não ter o trabalho de pensar!

"Selene" era o nome da Antiga Deusa grega da Lua! E como eu amo a Lua de paixão, sempre a amei, eu adorava meu nome!

Como eu sempre fui uma "ratinha de biblioteca" ou uma "besoura de livros", eu pesquisei sobre o significado do meu nome e desta Deusa. Meu nome vinha do grego "selas" que significava "luz" ou "radiância".

A deusa da Lua, Selene, era filha do titã Hipérion e era também irmã do Deus-Sol, Hélios, e era a deusa padroeira dos magos e feiticeiros! Esse detalhe me deixava mega feliz, porque eu sempre amei coisas místicas!

Continuando minhas pesquisas, descobri que a deusa Selene, no período Helenístico, após as conquistas de Alexandre Magno, fundiu-se com Ártemis, e os romanos passaram a chamá-la de Luna.

Sim, eu faço pesquisas: posso ser de tudo, mas uma coisa eu não sou, te garanto: burra!

Sem falar que "Selene" também era o nome de uma personagem de um filme que eu adorava, "Underworld": uma vampira morena e de olhos azuis que caçava lobisomens, werewolfes!

Que show! Era uma personagem muito mega mesmo! Mas esse detalhe eu acho que minha vó nunca soube, porque Rachel não gostava de filmes que tinham cenas de violência e tal... pobre Rachel: não sabia o que tava perdendo!

Como eu falei do filme Underworld, você já deve tá suspeitando, né?

Bom, uma coisa que você vai notar é que eu sou louca por cinema, e raciocino muito baseada em filmes, animações, quadrinhos... em horas de lazer, baixo tudo que é filme antigo da net, desde os em preto e branco e mudos aos novíssimos 5D... pois é... é o meu jeito de ser... sim, eu sou uma nerd mesmo, sua suspeita tava certa!

Paciência, fazer o quê?! Melhor contar duma vez ao invés de me esconder no armário... Você ia acabar descobrindo mesmo...

Bem, eu citei a minha mãe, né? Então vou falar um pouco dela...

Blá, blá, blá... de novo, aquele velho papinho: "e após os comerciais, a história da sua vida! Aguardem!"

Que coisa mais... clichê! É um saco fazer isso... queria era falar direto dele!

Mas acho que se eu não falar um pouco de mim, vai ficar complicado de entender porque as coisas aconteceram como aconteceram, né?

Paciência, então... Let's go!

Minha mãe não era uma mulher que fazia o "tipo maternal"...

Acho que ela tinha uns treze anos quando engravidou de mim. Ela teve complicações no meu parto e nunca mais pode engravidar.

Cresci ouvindo ela dando "graças a Deus" por isso... E eu, conforme crescia, também agradecia a Deus por não ter irmãos... ficava feliz por saber que eles nunca iam passar pelo o que eu passei...

Minha mãe dizia, toda vez que tinha oportunidade, que quando eu nasci, eu "desgracei a vida dela"... que "Ela perdeu toda a juventude dela por minha causa"... etc., etc. ...

Mas era papo furado dela! Quem me criou foi minha querida vó, a mãe dela. Rachel me criou como pode, até os meus dezenove anos, quando a Vida levou ela pro Plano Astral... finalmente Rachel pode, então, descansar...

Resumindo: minha mãe era uma trintona que adorava quatro coisas na vida:

1°) "Machos";

2°) Baladas na noite;

3°) Bebida;

4°) Cocaína...

Não necessariamente nessa ordem...

Daí nasceu minha idéia de lhe dar o codinome mais amoroso que eu lhe poderia compor:

Pink Pig.

Pink? Porque ela babava, nas vitrines das lojas chiques, por roupas com tons de rosa...

Pig? Preciso explicar?!

Meu pai? Nunca o conheci... Nem sabia quem era... Pink Pig tinha tantos homens, tantos "machos", que sei lá de qual deles veio o sêmen do qual eu nasci...

Vovó... Ah, Rachel era uma mulher forte, mas muito triste por dentro. Nunca conheci o marido dela, meu vô. Ele havia morrido, baleado. Foi durante um assalto ao mercado dele, enquanto trabalhava, pouco antes de eu nascer. Uma vida inteira, honrada, tornou-se apenas mais uma nota de rodapé na página policial dum jornal vagabundo, The Happy Harbor Daily:

"Assalto: o comerciante Abraham Stern, 45 anos, foi baleado durante assalto em sua loja comercial, na Rodovia Norte 290, em Happy Harbor. A vítima morreu no local. Os bandidos fugiram. A polícia investiga o caso."

Incrível o enorme poder místico da mídia: descrever tão perfeitamente e tão detalhadamente uma vida inteira em três linhas... Só Alta Magia, uma verdadeira Teurgia, pra conseguir tal façanha!

Mas, na real, aquilo era só rotina... uma "rotina" que destruiu a vida da nossa família. Gosto de imaginar que talvez alguém dos Direitos Humanos tenha ido lá em casa consolar de alguma forma minha vó e Pink Pig grávida de mim, naqueles dias. Afinal, elas também eram humanas, logo deveriam ter algum direito, não?... Imaginar isso me reconforta...

Será que foram? Eu nem havia nascido ainda pra saber...

Depois daquilo, Pink Pig certa vez me contou que Rachel nunca mais teve aquela sua famosa alegria brilhando nela...

O mercado do vô fechou: nossa prosperidade acabou... Pouco depois, eu já era nascida – mas não lembro direito o que aconteceu – Rachel acabou tendo que vender nossa casa e nos mudamos pra uma casa alugada num bairro mais sossegado... Mal me lembro da mudança. Minhas memórias começam mesmo é naquela nova casa.

Adorava aquele lugar!

Lamy Village nem parecia fazer parte da sufocante e esfumaçada Happy Harbor! Cresci no meio de uma imensa Natureza!

Morava em Lamy Village e estudava na escola pública do bairro vizinho, New Bethlehen. Parte Sul de Happy Harbor.

Bom, a partir daí, as memórias me fluem mais fáceis!

Eu era uma guria mega estranha... Sempre fui muito calada e mega tímida. Tinha dificuldades enormes pra falar em público. Aliás, eu tinha dificuldade enorme pra falar com qualquer pessoa... Por que será?

Talvez tenha sido por isso:

Quando eu tinha seis anos... começaram a acontecer coisas... e... er... hã... arf...

Não dá!

Não consigo falar! Não dá!

Tô suando frio...

Trauma?

É...

Putz grila! Desde meus seis anos, lidando com isso... Será que isso me fez "amadurecer" mais rápido? Amadurecer ou... apodrecer direto? Não sei...

Pois é... era tudo mega complicado pra mim... Rachel fazia o que podia... mas ela também não podia me ajudar muito, pois eu me fechava cada vez mais como uma ostra em sua concha...

Até que, aos meus treze anos, eu finalmente consegui bloquear o meu "dom" – só não sei como!

Aos treze anos consegui me fechar pra esse mundo tão estranho, que ninguém mais ao meu redor sentia como eu...

Chega, não dá mais!

Tô começando a tremer...

Me entenda: preciso mesmo mudar o rumo dessa prosa...

Mais tarde eu te conto... prometo!

Promessa de dedinho juradinho! Juro mesmo!

Arfff...

Bom, eu finalmente passei a tentar ter uma vida normal... mas uma vida normal pra mim sempre foi algo utópico, impossível!

Eu nunca tive nada de "normal" em mim... desde o meu corpo até as roupas que eu gostava de vestir...

Vestir? Saí da infância, saltei pra adolescência.

Na adolescência eu passei a cultuar a morte!

Sei lá... a vida era tão complicada e difícil pra mim... a morte parecia tão bonita, tão atraente... parecia um descanso, eu sentia que a morte nunca era o fim, mas sim um retorno pra casa... porque eu nunca me senti em casa em toda a minha vida!

Como eu queria me sentir em casa!

Mas esse sentimento nunca tomou meu coração, por mais que eu o desejasse...

Assim, quando eu consegui bloquear meu dom/maldição, e "essas coisas" começaram a sumir da minha vida, eu passei a frequentá-los:

Cemitérios!

Sempre em busca de Paz... sempre em busca dum lugar em que eu pudesse me sentir em casa...

Aos treze anos, tomei alguma coragem!

Coloquei toda a minha revolta pra fora, de um jeito mega visível: no modo de me vestir... A gótica/dark que eu era, finalmente, saiu do armário!

Andava sempre de preto, da cabeça aos pés... comprei meu primeiro par de botas pretas longas e pro inverno, meu famoso sobretudo negro de couro! Minha marca registrada!

Ah, esse sobretudo!

Sempre que precisava sair de casa, o usava direto, fosse inverno, fosse verão! E quando ficava meio feio, eu mesma o reformava e pintava... Como eu sabia costurar, fiz muitas inovações nele, ele era único: havia virado meu "copyright"" onde quer que eu fosse!

Quando eu o vestia, eu me sentia mais protegida de todo aquele lixo que as pessoas emanavam... sei lá, como se eu tivesse usando uma armadura, tipo a do "Batman, the Dark Knight"!

Meu sobretudo: o manto da noite em mim, consagrada em couro negro, me ocultando!

E embaixo do meu sobretudo? Putz, aí tava meu corpo... Arfff...

Melhor era mesmo usar um sobretudo: sobre tudo, tapar tudo!

Corpo... er... cof, cof... acho que também não tinha nada de "normal". Acho que eu não era bem o tipo de guria gostosa, repleta de farturas, e bronzeada, que os guris queriam...

Baixinha e magrinha, acho que não tinha muito a oferecer com meus 1,55 m... O que um tipo mignon pode ofertar?

Minha pele era mega branca... e eu odiava tomar Sol... odiava praia... odiava aquela multidão toda... Desde quando eu era foca pra ficar me torrando na praia?!

Focas? Não! Meu negócio era outro... corvos, corujas e morcegos, hahaha!

Ao menos eu achava mega legal os meus cabelos pretos... eu os cortava um pouco abaixo da altura do maxilar...

E eu mesma os cortava, pois sempre achei dependência da boa vontade – leia-se: má vontade! - dos outros um saco, começando com a de uma cabeleireira!

Eu gostava de usar cabelos curtos porque isso fazia eu me sentir mais... protegida... Sei lá... Com os cabelos curtos, eu não tinha aquela sensação horrível de que alguém fosse chegar por trás de mim e arrancar os meus cabelos, puxando-os, e me espancar... uma sensação horrível que eu sempre sentia quando eu os deixava crescer...

Bom, pelo menos eu achava mega legal o contraste que havia entre os meus cabelos – lisos e negros como o ônix lapidado – e a minha pele cor de neve! Contraste show!

Já meus olhos... estes eram de uma cor mega esquisita, pareciam o de uma Alien: violetas... um azulão mega escuro e raro... Por que eu não nasci com os olhos verdes como da minha vó, heim? Eram mega lindos! Culpa da Pink Pig, lógico, que escolheu o cara errado pra me fabricar!

E, pra complicar ainda mais as coisas pra mim... eu havia nascido com uma manchinha no meu pescoço, no lado esquerdo...

Talvez até se poderia dizer que seria uma marquinha charmosa...

Ela era de um tom levemente diferente da minha pele... e tinha a forma de uma Meia Lua ou de uma delicada Espada Curva... Quase uma tatuagem natural, em local estratégico!

Rachel havia me dito que, quando eu nasci e ela viu a marquinha, teve três idéias: se interpretasse a marquinha como uma Meia Lua, me dar o nome da Antiga Deusa grega da Lua – Selene – ou da Antiga Deusa guarani da Lua: Jacy... ou se interpretasse a marquinha como uma Espada Feminina, me dar o nome da Antiga Deusa africana dos Rios, que portava uma Espada Feminina: Pandá, uma qualidade de Oxum...

Pink Pig? Odiou os nomes Jacy e Pandá: disse que esses eram nomes de gente pobre, feia e suja! Assim sendo, meu nome acabou sendo o da Antiga Deusa grega da Lua...

A marquinha?

Bom... a complicação é que, na escola... arfff... essa marquinha havia me trazido problemas com as outras crianças... mas isso é uma memória muito ruim, e eu não quero mais falar dela...

De jeito nenhum! Eu quero é esquecer isso, pra sempre!

Além disso... eu também raramente sorria... rir, nem pensar!

Minha vida não era exatamente o que se poderia classificar, num site de vídeos e filmes pra download, de um vídeo risível...

Logo: eu era mega fechada, sempre na minha, mega quieta...

Pronto, terminei!

Acabei de encerrar minha reza mântrica no famoso Muro das Lamentações, até mimetizando um pouco os judeus ortodoxos: genuflexão, batendo a cabeça, orando: "sou uma medíocre: feia e desengonçada!", o poderoso mantra que eu orava sempre que eu adentrava no sagrado templo oracular chamado... espelho!

Agora chega, chega, chega!

Então... dá pra notar que eu tava bem desencaixada dos padrões ISO 9000 que o mercado sentimental exigia, né?...

Então eu sempre fiquei sozinha...

Sexo?

Já provei... mas prefiro não comentar...

Sempre me impressionei com a crueldade com que alguns homens, quando tem um mínimo de poder, são capazes de fazer... o sadismo com que alguns seres de cromossomos xy conseguem, criativamente, gerar sobre aqueles que tem cromossomos xx...

Letras perigosas: xy... xx... pois no final terminamos é nos ferrando com KY©...

Poder.

Crueldade com ele. Em tanta parte. Poder subindo à cabeça: nas duas cabeças...

Poder. Abuso de. Abuso.

No paletó e gravata: cargos de chefia em empresas...

Na força muscular: campus universitários mais ermos...

Nos jalecos brancos de... Hospitais Psiquiátricos...

Chega! Chega de falar em maçãs podres!

Maçãs fétidas que fazem com que a gente pense que o barril inteiro apodreceu!

Decomposição...

Ah, mas quer saber? Eu nem ligo em tá solteira, e principalmente, sozinha!

Enchi o saco dessa porcaria toda!

Não ligo mais mesmo!

Ou será que ligo?

Ter alguém...?

Deixa pra lá... melhor mudar o rumo dessa prosa...

Aos dezoito anos eu arrumei meu primeiro emprego com direitos trabalhistas! Uma loja completa de produtos dark/góticos, no Centro Histórico de Happy Harbor, no Beach Street Shopping.

Eu sempre trabalhei por conta, fazendo bicos... Mas então surgiu o emprego na Loja Shadow's!

Como eu era uma especialista nesses produtos, já que eu adorava tudo do gênero, das pontas das botas aos lápis pretos nos olhos, do cinema, música até a literatura gótica, eu era a melhor vendedora da loja, mesmo sendo mega tímida! Parecia que ali a minha timidez sumia! Tanto que a dona da loja, Yrypa, logo me promoveu a gerente, pode?!

Era apenas na Shadow's, na casa de Rachel e no cemitério os únicos lugares que mais me faziam lembrar a sensação de "voltar para casa"...

E na escola?

Saco... escola!

Mas tenho que falar disso, senão não posso falar da Ayaan!

Minha vida na escola, desde a 1° série, sempre foi um inferninho... Sobre a escola? Só uma palavra: bullyng...

Contarei só as partes mais leves.

As pesadas?

Deletei!

Leves:

Como aos treze anos eu passei a me vestir toda de preto – e nunca sorria – os outros adolescentes começaram a me apelidar de "Vandinha": a menina da Família Adams...

Inferno! Como eu odiava aquele apelido!

Se alguém queria me deixar furiosa e me machucar, era só me chamar assim!

Mas o que mais me irritava é que eu sempre fui uma covarde: nunca tive coragem de revidar às chacotas e agressões verbais... eu ouvia o "Vandinha" e ficava em silêncio...

Que ódio! Por que eu nunca reagi?

Por que eu sempre fui tão covarde?

Ao menos, nem sempre o bullyng era calúnia...

Por exemplo, quando as coleguinhas me chamavam de filha da puta. Bem... Fato: eu era filha da Pink Pig... Fato verídico, que dispensa qualquer análise sociológica mais profunda...

Pra minha vergonha: fato até mesmo jornalístico... Sabe aquele jornalzinho de bairro, feito pelas jornalistas do salão de beleza, pelas editoras manicures, pelas redatoras cabeleireiras?

Ouvir a verdade? Ler nos jornais, na hora do café da manhã, que Pink Pig era igual à maçaneta de porta: local onde todo mundo põe a mão?

Sim, doía. Mas quem disse que fatos jornalísticos são sempre adocicados ou digeríveis?

Imprensa: o Quarto Poder das grandes Democracias Ocidentais... O que seria de nós sem ela?

Consequência: passei a odiar as redações de jornais... O típico fedor das grandes salas de redação da imprensa – shampoos e condicionadores especiais, esmaltes, químicos pros cabelos, e sobretudo o odor cáustico da língua das redatoras – somado ao som das máquinas de escrever: secadores de cabelo! – me embrulhavam o estômago!

Arrepiante!

Mas foi na escola, ainda na alfabetização, que conheci a Ayaan!

Só por isso falei em "escola": lá conheci minha melhor e única amiga!

Ela era, junto comigo, a melhor aluna da escola! Éramos consideradas as "geniozinhas", mas diferente do que acontecia comigo, as outras crianças respeitavam Ayaan!

Parecia que dela emanava uma energia de autoridade, uma "aura" que fazia com que ela fosse respeitável.

E também Ayaan tinha uma personalidade mega forte... e ela era bem ágil: até os meninos tinham medo do soco forte de direita que ela podia dar! Claro: ela praticava Kung Fu e era muito boa nisso!

Foi Ayaan quem me mostrou os primeiros passos no Caminho da Bruxaria. Ayaan, desde criança, era mega mística, pois a mãe dela era uma Bruxa, e bem especial: era a Grã Mestra do Espaço Sopro da Deusa, um coven de Bruxas... além de Templo, era ao mesmo tempo um espaço onde também vendia-se produtos esotéricos e serviços neopagãos... Então, logicamente, Ayaan foi sempre uma bruxinha desde criança.

Aos treze anos, a convite de Ayaan, entrei pro coven.

Rachel? Não disse nada a respeito: eu achei que ela reclamaria ou me xingaria, pelo fato de ela ter me convidado tantas vezes pra que eu participasse da corrente de médiuns da terreira do Pai Xapanã – a terreira em que ela era a Yalorixá! – e eu nunca ter aceitado, e Ayaan ter me convidado uma única vez e eu ter imediatamente correspondido...

Rachel era realmente muito especial! Nunca me xingou, nunca me destratou, nunca fez o que Pink Pig fazia sempre que podia: apontar o dedo pra mim e dizer que eu era própria encarnação do erro, da imperfeição, uma deformidade ambulante a perambular pela Terra...

Cheguei até a perguntar pra Rachel:

"Você não se ofendeu por eu ter aceito o convite de Ayaan?"

Rachel? Sorriu!

Ela tava sentada naquela sua famosa cadeira de palha... e tinha um toquinho de madeira de eucalipto ao seu lado... Rachel disse que o preto-velho dela – que trabalhava muito com o Pai Xapanã e o Pai Omulu – tava ali, sentado comodamente ao lado da cadeira de palha dela, bem naquele toco... bem tranquilo, pitando seu cachimbo.

Era Pai Joaquim de Angola!

Rachel, uma baita médium – inclusive auditiva! – me disse que Pai Joaquim tava me dando essa mensagem:

- A fia nasceu livre, é livre e sempre vai ser livre pra tomar as decisão dela... Quando se sabe o que procurar, a prova tá por toda a parte... porque sempre que o discípulo tá pronto, o mestre aparece, ô se aparece!

Eu? Graças à Deusa não vi nada nem ouvi nada! Minha maldição já tava contida naqueles dias, ufa!

Quando eu fiz meus quinze anos, Ayaan me deu de presente um colar negro com uma Cruz Ankh e um Pentagrama, de prata!

Eu os adorei, e nem precisaria dizer que nunca mais os havia retirado do pescoço, nem mesmo para tomar banho ou dormir!

Foi a partir de então que sempre que eu sentia medo ou dúvida, eu me grudava na minha Ankh e no meu Pentagrama, os segurava com força e chamava pelas Divindades, pedindo auxílio, socorro, amparo, orientação...

Quando eu fiz dezoito anos, Rachel me deu de presente, raspando todas as suas economias, uma moto! Ela disse que era "para você ir para o serviço e para a escola à noite, em maior segurança".

Rachel temia muito que eu fosse assaltada ou abusada numa parada de ônibus deserta durante a noite.

Nem precisaria dizer que foi o presente mais lindo e mais repleto de amor que eu já havia recebido!

Minha moto era uma Honda© toda negra, misteriosa como a noite, linda! Por sugestão de Ayaan, eu passei a chamá-la de "Luna", hehehe.

Vovó sabia mesmo que preto era a cor que me fazia tremer!

Rachel era a pessoa mais incrível que eu já havia conhecido! Mesmo com todos os desgostos que Pink Pig lhe dava, mesmo viúva há anos, mesmo passando por tantas porcarias em sua vida, ela sempre tentava ver o lado bons das coisas...

Que mulher incrível! Ela tinha um sorriso que encantava e um carisma que cativava as pessoas! Não era à toa que ela tinha tantas amizades, mesmo sendo uma pessoa triste por dentro e sofrendo tanto preconceito por sua fé – pois Happy Harbor não era moleza não...

O coração dela era de uma pureza, de uma bondade sem limites! E quanta fé ela tinha... como ela possuía uma fé intensa nos Antigos Deuses afro-ameríndios: uma fé sem medidas na Natureza e na Vida!

Quer saber? Eu a invejava! Ela amava tanto a Vida, mesmo a Vida sendo tão ingrata pra ela... e eu amava tanto a Morte...

Quer saber, mesmo? Lá no fundo eu queria era ter a fé e o amor à Vida que Rachel tinha... mas eu não conseguia... Acho que eu era fraca demais pra isso e minha vó, ela era tão... forte! Firme!

Quando eu fiz dezenove anos, Rachel me deu de presente um delicado colar dourado com um belo coração de cristal, e me disse exatamente essas palavras, que nunca esqueci:

"Sei que você não compartilha a minha fé... mas aconteça o que acontecer, lembre-se de olhar para este colar e chame a sua Mãe: Oxum Pandá! Sinta-a no meio do seu peito e no alto de sua cabeça! Aconteça o que acontecer, com Oxum Pandá você nunca estará sozinha!"

Eu não ia retrucar com a pessoa que eu mais amava nesse mundo... mas é que minha praia era a cultura Celta, minha Mãe era a Deusa Tríplice e não nenhuma Oxum Pandá ou qualquer outra coisa assim... Mas não retruquei: apenas dei-lhe um beijo, um forte abraço, e coloquei o coração de cristal no meu pescoço, junto com minha cruz Ankh e meu Pentagrama. E nunca mais o tirei do pescoço!

Apenas uma coisa que Rachel disse me incomodou no dia do meu niver:

"Aconteça o que acontecer".

Como assim, "aconteça o que acontecer"? O que ela queria dizer com isso?

Pouco tempo após meu aniversário de dezenove anos eu descobri o que ela queria dizer...

Quando cheguei em casa, vinda da Shadow's, descobri que Rachel havia sido internada às pressas no hospital... Foi então que ela me contou que iria partir em breve... me contou que Seu Pai Xapanã lhe havia aparecido em sonho alguns meses atrás e lhe dito que "sua hora de partir estava próxima, assim prepare tudo o que julgar necessário"... ela tinha muito pouco tempo... e realmente, sete dias depois que ela foi internada, o coração dela não mais bateu... Vovó finalmente parou de sofrer...

A pessoa que eu mais amava no mundo havia partido... eu me senti completamente desamparada...

E bem nessa época:

Crise Econômica Mundial amplificada... o mundo tornara-se muito pequeno e globalizado... A Grande Depressão Mundial da Economia chegou pra não ir mais embora...

Globalização a Ferro e Fogo, grana e cultura: Wall Street and Broadway...

Não só a Economia tava homogênea, mas também a cultura planetária tava cada vez mais pasteurizada... o processo de homogenia da cultura anglo-saxônica já havia tomado proporções tão gigantescas que uma imensidão de cidades do mundo inteiro já haviam até trocado completamente seus nomes pra nomenclaturas análogas, em língua inglesa...

Antes da Globalização a Ferro e Fogo, no século XX, se pensava que apenas o Comunismo poderia transformar os nomes de cidades: São Petersburgo em Leningrado... como todos tavam enganados!

Nunca duvide do poder do make money a qualquer custo!

Assim, o século XXI foi o século do apogeu daquilo que o grandes biólogos lá do século XX, defensores da biodiversidade das espécies, profetizaram como "impoverishment": não apenas o empobrecimento das espécies vivas, mas igualmente um empobrecimento da Diversidade Cultural em imensa escala global...

E, com um mundo cada vez mais monolítico, cada vez mais sem diversidade, cada vez mais homogêneo, as novas pressões das mudanças climáticas no planeta arrasaram muito mais facilmente a Economia Mundial...

Caímos na Gigantesca Depressão... a crise de 1929, dos livros de História, foi um grão de areia perto deste Meteoro de Yucatán: seria o fim dos dinossauros?

Não sei... só sei que Yrypa, a dona da Shadow's, não suportou o Meteoro econômico: além do Impacto, um incêndio durante uma Manifestação de famintos e desempregados fechou o seu negócio... Extinção...

Dívidas impagáveis aos bancos: todos os funcionários haviam sido demitidos, e é lógico, eu inclusive...

O mais incrível é que antes de Vó Rachel partir, sem eu saber de nada, ela havia preparado tudo: havia convencido Pink Pig a me deixar ficar no quintal da casa dela...

Havia encomendado a um filho de santo dela, Mr. Jandyr, pedreiro, que construísse pra mim um quartinho com banheiro nos fundos da casa de Pink Pig... tudo pra que eu não ficasse sem ter um teto pra me abrigar, pois a casa em que vovó e eu morávamos em Lamy Village era alugada...

E ela sabia que sem a pensão da aposentadoria dela, só com o que eu ganhava na Shadow's – quando eu ainda tava empregada – não ia dar nem pra pagar a sombra do dedão do pé do aluguel mais despesas...

Eu iria ter que morar com Pink Pig no Norte de Happy Harbor, em White Wing, próximo à Rodovia Norte 290.

E fui.

Demorei muitos dias pra trocar de escola...

Pensei seriamente em abandonar os estudos...

Fiquei muitos dias sem ir à escola em New Bethlehen, no extremo Sul de Happy Harbor... Eu tinha que providenciar minha transferência pra uma escola perto da casa de Pink Pig... mas tava sem cabeça pra isso... sentia muita falta da minha vó...

Dor? A falta dela era lancinante!

Fiquei muito tempo indo quase todos os dias, de moto, do extremo Norte de Happy Harbor até o extremo Sul... sempre ao cemitério de New Bethlehen, visitar o túmulo de Rachel...

Eu sempre acendia uma vela pra ela e conversava com ela... me sentava sobre o túmulo...

Por vezes, quando ninguém tava por perto, até me deitava sobre ele pelo tempo que eu pudesse, encolhida como um filhote de gato implorando por algum carinho...

Contraste: a brancura invernal do túmulo de vovó e a enorme mancha negra, retraída como uma gota, pousada sobre ele, buscando avidamente sentir alguma paz e carinho... Puro contraste!

Lá eu podia ficar até bem tarde, até mesmo depois que o cemitério fechava, pois o vigia, Mr. George, era velho amigo meu e de Rachel...

Um velho legal... meio ranzinza, eu sei, mas muito legal!

Acho que ele sabia que Rachel tava fazendo uma falta tremenda na minha vida... que a passagem dela, daquele jeito tão abrupto, havia aberto um rombo no meu peito... rombo que só aliviava quando eu ia no túmulo dela, e ficava lá por horas... sem comer ou beber nada...

Não tinha fome nem sede lá. Passaram-se alguns meses... minha dor, minha saudade, começou a ficar sob algum controle...

Mas eu permanecia fielmente indo ao túmulo de Rachel sempre que havia grana pra gasolina da Luna. Sempre!

E foi justamente numa dessas visitas ao cemitério de New Bethlehen que eu o vi pela primeira vez... ele!