N/A:
Essa fic é a bem antiga e foi relida, revisada e reescrita para o Projeto mais foda ever (até o Kanye West concorda) da sessão Puppy Love do fórum 6v: Like A Brother My Ass - 4ª edição.
O tema é Universo Alternativo, portanto dia adeus à magia da saga HP. A fic se passa em outra época, ok? E o Universo que eu escolhi foi "Investigação" com a situação "Se conhecendo".
Agradecimentos super hiper ultra mega master blaster especiais a moça que betou essa fic na primeira vez que ela foi publicada. Nyym. Onde quer que esteja, querida. Te adoro muito. ;D
Espero que gostem.
Insight
por Doomina
Capítulo I – I Feel You
I feel you, your precious soul and I am whole
I feel you, your rising sun, my kingdom comes
I feel you, each move you make
I feel you, each breath you take
A aristocracia reinava e eles seguiam muito bem esse padrão de vida. Desfrutando da boa posição social, com base no trabalho escravo mais bem organizado na Londres da época. E mesmo que a escravatura não fosse vista com bons olhos, os maus jamais cruzaram o seu caminho. Influentes na política e na religião local, dizia-se ser a família mais respeitada dali. E também a mais antiga. Se pudesse defini-los em apenas uma palavra, eu o faria, mas necessitavam de duas para descrevê-los com clareza. Manipuladores e intocáveis. E extremamente interessantes.
"Uma moeda por seus pensamentos", Dora me libertou dos devaneios num tom leve e curioso.
Virei o rosto para ela, sentada no lado oposto da carruagem. Os cabelos loiros encaracolados estavam levemente amassados pela pressão que fazia no ombro de Ted, e os olhos claros brilhavam mesmo na escuridão. Nunca soube distinguir se isso ocorria somente quando estavam direcionados para mim. Ela sorriu antes de minha resposta, meiga e cativante. Dora era uma garota excepcionalmente singular. Sua sede por conhecimento era quase um mistério em comparação às outras de sua idade e o modo como entendia e conhecia o mundo a sua volta era surpreendente.
"Você não estava dormindo?" Um breve silêncio, ela desencostou a cabeça do ombro e fitou-me graciosamente.
"Papai disse que eu deveria", ela lançou um olhar de pena à Ted, que cochilava ao seu lado. "Não quer me ver bocejando durante o jantar."
"Talvez você devesse ouvi-lo então", sugeri, mas ela deu de ombros.
"Eu obedeci, até certo ponto, mas você ainda não me disse no que estava pensando", ela sorriu novamente, ao que eu acompanhei desviando o olhar para a cortina sobre a janela da carruagem.
"Eu não estava pensando em algo que queira ouvir."
"Por que não?", indagou, levantando e sentando-se ao meu lado. "É sobre ontem à noite?"
Paralisei, fingindo uma calma que simplesmente não estava lá. Voltei a encará-la na penumbra e percebi o quanto ela ansiava uma resposta para aquela pergunta. Não era a primeira vez que a fizera e certamente não seria a última. Eu não poderia responder com sinceridade, mas mentir se tornara inútil desde seus cinco anos. Ela quase poderia ler minha mente, mesmo que esta fosse indecifrável para alguns. Como Ted, que jamais me questionou. Cofiei a ele meu segredo e algum tempo depois, prometeu me ajudar com as desculpas que usava para distrair Dora. Fitei a lua cheia através da cortina, sentindo um aperto no peito. Havia tomado meu remédio e esperava ser o suficiente para aquela noite.
"Moony?"
Um apelido que ela inventou pelo decorrer das noites de lua cheia em que eu me ausentava do chalé onde morávamos. Ela nunca soube que eu não ia longe, que me trancava em uma casa abandonada próximo a orla da floresta. Ela nunca imaginou que eu me transformava em um monstro e retalhava todos e qualquer um que cruzasse meu caminho naquelas noites. Ela também não sabia que eu usava várias ervas do jardim para preparar um medicamento que melhorara meu estado há alguns meses. E que o mesmo não me permitia arriscar a vida deles permanecendo no chalé durante o período de lua cheia. Nunca soube, e mesmo assim... Aquele apelido parecia me definir de tantas formas que eu julgava se suas preposições haviam se concretizado.
"Contarei o que faço noites afora quando me revelar seu nome completo.", desviei o assunto e vi-a encostar a cabeça no meu ombro, suspirando de leve.
"Você vai me dar uma boneca nova este ano, Remus?", uma nova pergunta, com uma resposta obvia.
Franzi o cenho. Ela sabia que sempre ganhava uma boneca todos os anos, mediante ao pesar que eu sentia pelo que acontecia com a anterior. Dora adorava colorir os cabelos de suas bonecas. Eles permaneciam intactos nas primeiras semanas de brincadeiras inocentes e arruinados, após alguns meses de experiências que seu pai julgava educativas. Isto era algo mais a ser observado no estranho comportamento dela. Suas experiências. Magenta, musgo, azul e outras cores chamativas. Jamais o convencional negro ou marfim. Dizia que de loiras e morenas já bastava ela e suas amigas. Nunca entendi onde queria chegar com tantas bonecas desperdiçadas, mas presenteá-la com uma nova era um hábito que eu julgava impossível de largar.
"Para quê? Se você vai deixá-la careca em algumas semanas", tentei parecer aborrecido. "Sabe, a maioria das garotas penteiam os cabelos das bonecas ao invés de colorir suas madeixas, Dora."
"Meu pai gosta das minhas experiências", ela replicou, cruzando os braços e fingindo estar ofendida. "Acha divertido a maneira como eu consigo colorir os fios usando apenas as ervas que recolho no jardim dos fundos."
"Sim, eu concordo que é algo a se admirar", concordei, "Mas o que espera dessas experiências, afinal?"
"Um dia, os cabelos vão parar de desprender da raiz, Moony, e quando isto acontecer", ela fechou os olhos, ajeitando-se ao meu lado, "Vou lhe contar meu segredo."
A carruagem tremia conforme a estrada de pedra ordenava, a silhueta levemente inquieta de Ted acompanhando os movimentos sem escolha. Impulsionou o corpo para cima, as costas ereta e olhar cansado pelo cochilo interrompido. Encarou-me na penumbra, a pouca luz que invadia o espaço através das cortinas esverdeadas iluminaram seus olhos claros, como os da filha. Fitou-a um momento e ergueu uma sobrancelha para mim, numa pergunta silenciosa a que eu assenti com uma resposta afirmativa e mentirosa. Ele tirou um lenço do bolso interno das vestes e enxugou a testa suada, antes de dizer.
"Verão insuportável, não acha?"
"Definitivamente", respondi desanimado.
O calor poderia ser quase intolerável, mas eu não o absorvia como os demais. O excesso do líquido prateado que tomei pouco antes de entrar naquela carruagem parecia congelar meu sangue, fazendo com que não reagisse às mudanças de clima. Meu estômago gelado afundava cada vez mais, e eu não tinha certeza se era devido às minhas condições ou a ansiedade que se pondera cada vez mais. Desejava assiduamente que fosse a segunda opção. A carruagem parou bruscamente, interrompendo a minha linha de pensamentos nada agradáveis.
Dora acordou ao meu lado, reclamando para o pai o porquê se incomodava em dormir se quase desmaiou com a parada tão brusca. Alguém abriu a porta da carruagem, fazendo uma pequena reverência enquanto aguardava nossa saída. Fui o primeiro e, assim que coloquei os olhos na escadaria, percebi que minhas informações estavam corretas. Manipuladores e intocáveis. Assim como sua mansão. O Largo Grimmauld.
Paredes altas e negras, coberta por camadas e mais camadas de tinta prateada, como se tentando passar por uma construção miraculosa. As janelas quase tão longas quanto às portas, suas vidraças retiniam cores mórbidas entre o pérola e cinza pouco acentuado pelo negro imponente. Gárgulas enfeitavam os largos parapeitos e as curvas do telhado, mais pareciam monstros refletindo a tonalidade avermelhada da lua cheia do verão sufocante. A mansão se destacava no quarteirão, e parecia indestrutível. Talvez fosse. Uma vez que nem mesmo a guerra fora páreo para sua arquitetura resistente, que se acreditava ser enfeitiçada por magia negra... Assim o sangue e nome dos que a habitavam.
A família Black.
"Impressionado?", ouvi a voz de Ted atrás de mim, ajudando a filha a descer da carruagem.
"Certamente", respondi, ainda estupefato pela beleza sombria do lugar.
Ted foi à frente, os braços da filha entrelaçados aos seus. Uma mulher estava parada a entrada do salão, cabelos presos num coque apertado e um vestido negro que indicava luto. Reconheci-a quase que de imediato, o rosto mais novo nas imagens de meus livros não era muito diferente daquele que eu agora fitava, olhos claros e pele lívida. A Sra. Black, escoltada por um jovem senhor de cabelos negros e olhos da mesma cor. Ele fez um reverência a Ted quando este cumprimentou a mulher, beijando-lhe a mão enluvada.
"Ted Tonks", anunciou um criado, consultando um pergaminho seguro nas mãos.
"É um prazer, Sra. Black", Ted falou, a mão livre sobre os ombros da filha. "Está é minha filha Dora Tonks."
Dora fez uma pequena reverência, fitando o rapaz da mesma maneira que fitava o ambiente, uma curiosidade contida pela etiqueta.
"Encantada." A Sra. Black manteve o olhar preso em Ted, como se ele apenas fosse digno de atenção. "E quem é o jovem que o acompanha?"
"Detetive Remus Lupin", eu me apresentei, segurando-lhe a mão. "Auxiliar do Sr. Tonks em sua investigação sobre Orion Black."
"Oh, sim", ela fingiu surpresa numa expressão leviana, "Os detetives... Sinceramente, não creio que tenham muito a fazer aqui, o caso já foi encerrado."
"Uma suposta confissão, fomos informados", Ted falou hesitante.
"Posso assegurar-lhe que a criada teve motivos para cometer o crime, e seria pega cedo ou tarde com as pistas que deixou."
"Cabe a nós julgarmos se foi uma cilada ou não, senhora." conclui, num sorriso fraco.
Não soube dizer se havia dito algo errado, mas o olhar que a senhora me lançou foi de profundo desprezo. Ela recolheu a mão, e forçou um sorriso para Ted antes de ordenar ao rapaz ao seu lado que nos acompanhasse até o salão de festas. Ele o fez, e seguimos para dentro onde vislumbrei um belíssimo salão iluminado com archotes e velas, em contraste aos vestidos escuros e os fraques negros dos convidados. Alguns casais valsavam ao som de cordas proferido pelos músicos presentes, enquanto outros bebiam em taças finas, rindo ou cochichando algo em particular.
"Os senhores possuem uma bela mansão, Sr. Black", Ted comentou e o jovem se virou bruscamente.
"Adoraria mostrar-lhe o restante dela, mas por hora devo voltar à entrada para auxiliar minha mãe com os convidados", fitou-me estranhamente e fez uma mínima reverência em direção à Dora. "Por favor, minha casa é vossa casa."
"Obrigado", Ted pôde dizer antes que ele sumisse entre os demais convidados.
"Papai, papai?", a garota segurava as vestes dele, puxando-as para baixo.
"Dora!" Ele a reprimiu calmamente. "Modos, minha querida", ela soltou suas vestes. "O que foi?"
"Dança comigo, papai?" Ela pediu hesitante.
"Sinto muito, filha, tenho assuntos a tratar com antecedência" Ela desviou o olhar para mim, ainda esperançosa. "Terá que esperar um convite, princesa, Remus precisa me acompanhar"
"Mas, papai..."
"Com licença", uma quarta voz a interrompeu. Esta pertencia à um garoto com feições de homem, os cabelos castanhos presos à um laço negro como as vestes elegantes. "Pode me dar a honra de valsar com esta donzela, senhor?"
"Ela tem apenas treze anos", Ted sussurrou entre dentes.
"Perdão, permita-me que me apresente", ele segurou a mão de Dora e a beijou. "Sou Rabastan Lestrange, ao seu dispor." A garota sorriu encantada e desviou o olhar para o pai, os olhos brilhando de expectativa.
Um silêncio desconfortável pairou entre a resposta negativa que Ted daria e a positiva que Dora desejava. O rapaz não deveria ter nem dezesseis anos e parecia cobiçar com um olhar a pouca elevação no vestido simples de Dora, mesmo que ela realmente parecesse mais velha naquele vestido apertado. O rapaz endireitou a coluna e acenou com a cabeça antes de se retirar. Mas antes que pudesse, Dora segurou seu braço.
"Espere!", pediu. "Não vai querer que eu fique sem escolta enquanto o senhor e Lupin resolvem seus negócios, não é, papai?" Ted crispou os lábios e sorriu em seguida.
"É claro que não, filha", ele respondeu, vendo o rapaz tomar a mão de Dora gentilmente e conduzi-la pelo salão até a pista de dança.
"Os Lestrange são parentes dos Black, Ted", coloquei a mão sobre seu ombro, tentando tranqüilizá-lo. Ele realmente tinha muito receio quando se tratava de sua princesa, como costumava chamá-la. "Que assunto temos a tratar agora?"
"Acho que ela vai ficar bem", comentou, ainda fitando o casal entre os demais, e virou-se para mim. "Preciso que me ajude a localizar Cygnus Black", ele falou.
"Já o localizei", repliquei, abrindo espaço para uma divisória do salão, onde senhores fumavam charutos enquanto apreciavam um bom vinho tinto. "Venha comigo"
Ted me acompanhou, seguindo à frente ao meu comando. Isso era algo que eu apreciava em minha condição. A incrível capacidade de percepção instantânea. Um sexto sentido talvez, ou algum dos outros cinco mutantemente aguçado. Poderia farejar o sangue nobre à distância, e o sangue Black, em específico o de Cygnus, já transpassara ao meu radar. Uma virtude, Ted costumava dizer. Uma maldição, eu sentenciava. Não podendo negar que me favorecia na maioria das vezes. Inclusive aquela noite, eu saberia mais tarde.
"Oh, o que temos aqui, Alphard?", Cygnus falou, os bigodes negros, exatamente como nas fotografias, abafavam levemente a voz grossa. "É Ted Tonks, um cortesão afinal."
"O garoto que comandava os cavalos?", pediu o velho, a mão segurando uma taça de absinto precariamente.
"E o gado, sim, senhor." Ted fez uma breve, quase imperceptível reverência aos senhores sentados em volta de Cygnus. "Gostaria de falar-lhe a sós. Senhor?"
"E do que se trata?", o irmão mais velho da Sra. Black parecia relutante a se mover, as sobrancelhas arqueadas de desconfiança.
"É um assunto particular, Sr. Black."
"Neste caso, posso oferecer-lhe uma bebida em meu escritório?" Levantou-se e fez um sinal para que os demais permanecessem em seus lugares. "Voltarei brevemente, senhores." Aproximou-se de nós, e indicou uma porta ao longe, "Acompanha-nos, Sr...?"
"Lupin" Ted interpôs, sussurrando em meu ouvido "Vá vigiar Dora, por favor."
"Tem certeza?" Ele afirmou com um aceno. "Agradeço, Sr. Black, mas acho que vou desfrutar apenas seu vinho por enquanto."
"Como queira", ele saiu na frente, com Ted aos seus calcanhares.
Apanhei uma taça de vinho e senti o odor nauseante do álcool que definitivamente não me agradava. Sempre tive baixa resistência para aquele tipo de bebida, preferia algo mais doce... Meu paladar acostumado àquela maldita condição. Balancei a cabeça tentando afastar o odor de sangue que pairou alguns minutos naquele salão, mas fui incapaz de fazê-lo. Parecia que algo forte se aproximava, meus sentidos aguçados sentindo cada fragmento de pura nobreza denominada Black. Corri os olhos pelo salão e pousei-os sobre uma escadaria deserta, oculta por um corredor escuro momentaneamente.
Dois orbes, enegrecidos e ao mesmo tempo brilhantes surgiram ali. Um archote acendeu a entrada da escadaria, e um homem subiu as escadas. Os cabelos negros e longos ocultavam parte do rosto lívido e a íris negra identificava o herdeiro de Walburga e Orion. Sirius Black. Ele era exatamente como eu me lembrava ter visto nas fotografias. Confesso que perdi minutos desnecessários fitando aquele rosto belo. O porte de cavalheiro imponente por sobre as vestes vermelho sangue, sua cor favorita. Sim, eu sabia cada detalhe que ele permitira ser exposto em livros da história dos Black. E conhecê-lo se tornara uma pequena obsessão para mim, adormecida pelos boatos de que não costumava comparecer a eventos como este em questão. Uma festa de noivado.
Fixei o olhar em seu rosto pálido, quase doentio. Uma leve melancolia parecia ter tomado toda a expressão em seu rosto, até pousá-la em minha pessoa. Subiu o restante dos degraus vagarosamente, enquanto eu afundava em perguntas sobre tamanha admiração com uma simples, porém majestosa, entrada, que apenas eu parecia apreciar em detalhes. Não saberia dizer se fora sorte ou curiosidade que o fez caminhar até mim, parando e fazendo a costumeira reverência antes de se apresentar.
"Boa noite, senhor", ergueu os olhos, as pupilas turvas analisando-me cuidadosamente. "Sirius Black, o senhor desta mansão."
"De-detetive Remus... Lupin", gaguejei estupidamente, sentindo minhas entranhas revirarem desconfortáveis. "É um prazer conhecê-lo Sr. Black."
"Está aqui acompanhando Ted Tonks, creio eu", ele sorriu, apertando minha mão em um novo cumprimento.
Senti o calor de sua palma e tentei negar a possibilidade de meu remédio estar perdendo o efeito. Não poderia acontecer, não agora. Calculei que talvez fosse ele. A presença que ele estabelecia no salão, como se absorvesse todas as conversas fúteis e objetos delicados com um simples olhar. Voltei a sua pergunta, antes que me perdesse em novos detalhes sobre seus olhos penetrantes. Como poderia saber quem eu acompanhava? Não poderia ter tirado essa informação de um livro como eu fizera com ele. Foi quando percebi. Com a morte de seu pai, ele provavelmente era um dos responsáveis pela ocasião e convites costumam passar pelo anfitrião antes de serem distribuídos. Ou minha mente apenas criou essa ilusão para evitar mais devaneios de minha parte.
"Correto", respondi, a voz um pouco mais confiante.
"Alegra-me que esteja aqui", ele apanhou duas taças de vinho quando um criado se aproximou com uma bandeja. "Não tivemos um segundo de descanso desde a trágica morte de meu pai." De certa maneira, algo me fez pensar que ele não lamentava o ocorrido.
"Soube que foi o primeiro suspeito nas investigações locais", tentei parecer profissional, mesmo que meus olhos fitassem um ponto perdido no reflexo da lareira em sua taça.
"E ainda sim, aqui estou", ele abriu os braços sem esticá-los muito, "livre e recebendo convidados." Não suprimi um risinho, ao qual ele me acompanhou. "Para recordar o quão imprestável foram as tais investigações, mas... Que tal discutir assuntos sérios pela manhã? Um bom vinho como esse não deve ser desperdiçado."
"Tem toda razão", ergui minha taça, e tomei um gole da mesma, sentindo minha garganta queimar como não fazia há muito tempo.
"Temos suco, se desejar." Ele pareceu ler minha mente ao proferir aquelas palavras, em tom quase doce. O mesmo que Dora costumava usar.
Desviei o olhar, percebendo que nos encontrávamos ao centro do salão. E mesmo que alguns olhares curiosos cruzassem conosco, ninguém parecia se importar que estivéssemos bloqueando parcialmente a circulação. Sirius caminhou lentamente, fazendo sinal para que eu o acompanhasse. Obedeci, e chegando até um enorme balcão comprido, Sirius sussurrou algo para o criado que foi abafado pelo som de cordas vindo do outro lado da divisória. Aceitei a taça oferecida à mim e reconheci suco de uva deslizando pela garganta ao primeiro gole.
"Obrigado", ele assentiu uma resposta num sorriso, que por algum motivo desconhecido para mim fez com que meu rosto queimasse, ruborizado. "O senhores possuem uma bela mansão."
"Adoraria mostrar-lhe o restante dela, mas creio que o jantar será servido dentre poucos minutos"
"Claro, o jantar." Corri os olhos pelo salão novamente, lembrando-me que Dora ainda valsava com Lestrange e talvez fosse tempo de obedecer Ted e vigiá-la. "Acompanha-me até a pista de dança, Sr Black?"
"Vai me convidar para a valsa?", ele zombou, num tom de seriedade.
"Não acho que seria prudente, quem sabe quando tocarem tango", ele riu, eu acompanhei com um leve sorriso enquanto caminhava localizando Dora instantemente. "Devo vigiar a filha de Ted, senhor. Ele está um tanto preocupado com ela." Apontei-a discretamente.
"Pois deveria", ele sussurrou, os orbes negros fixos no casal "O rapaz com quem ela dança não é o que posso chamar de cavalheiro."
"Pensei ter se apresentado como Lestrange"
"E isso aplica-se como...?"
"Um rapaz de nobre sangue, cavalheiro por assim dizer", ele franziu o cenho, descrente. "Assim como os Black."
"Com a breca, senhor, cometeram notícias falsas. Além do mais, disseram inverdades. Em segundo lugar, são caluniadores. Sexto e último, difamaram um jovem senhor; terceiramente, verificaram algumas injustiças. E para concluir: são sujeitos mentirosos." Ele declamou, num tom baixo e de ironia.
"Shakespeare." Ri-me, recordando de um texto que lera e relera várias vezes quando criança. "Muito barulho por nada, Ato V, cena I."
"Vejo que aprecia uma boa leitura. Sr. Lupin."
"Sem dúvida, uma excelente leitura", levei a taça de volta aos lábios, e um novo gole umedeceu minha garganta seca. "Não compreendi a colocação apenas."
Ele sorriu, segurando a taça de vinho e tomando um novo gole antes de se aproximar. Uma mínima distância nos permitia ouvir um ao outro agora, pude enxergar cada detalhe em seu rosto e percebi que os olhos não eram completamente negros, mas continham certo brilho prateado e angustiante. Presenteou-me com uma pequena confirmação ao sussurrar.
"Nem todos são o que aparentam meu amigo, os Black escondem muita sujeira sob suas roupas elegantes e rostos lívidos", senti seu hálito quente e tentei ignorar um leve calafrio que pareceu subir minhas costas até a nuca, o que foi impossível quando ele escorregou para o meu lado e ficou atrás de mim, pressionando o peito levemente em meu casaco. "Está vendo aquele casal próximo às poltronas de camurça", acenei positivamente, pois tive a desconfortável sensação de que meus lábios estavam colados um no outro. "Conheça a futura Sra. Lestrange, minha prima Bellatrix Black", o sussurro que veio a seguir não contribuiu para meu nervosismo repentino. "Ela abortou um herdeiro porque o próprio Sr. Lestrange prometeu desposá-la sem a possibilidade de filhos."
"Infame..." consegui desengasgar e senti-o pressionar seu corpo em minhas costas mais firmemente, os lábios quase encostados em minha orelha.
"O casal próximo a eles, olhos claros, cabelos idênticos", assenti que já os localizara. "Narcisa e Lucius Malfoy, ele comanda quase 80% do comércio ilegal de escravos em toda a Inglaterra."
"Os Malfoys...?"
"Uma família de respeito", ele completou, afastando-se, para meu alívio, e ficando novamente defronte para mim. "E, ainda sim, tiranos influentes."
"Eu jamais os julgaria desta forma", anotei, e tive pena daqueles olhos melancólicos. Sirius provavelmente estava preso a este lugar como eu estava à minha condição, pelo sangue. Não poderia negar o que era, mesmo que aquele não fosse ele de fato.
"Se me permite, creio que não estão hospedados em Londres ainda, estou certo?" Eu neguei, os olhos focalizados em Dora.
"Ted comentou algo sobre alugar um quarto na pensão local", forcei a memória inutilmente. "Não recordo o nome."
"Pois não necessitará de fazê-lo, sugiro que fiquem aqui pelo menos esta noite." Ele me encarou, um estranho brilho nos olhos turvos. "Gostaria muito que conhecesse nossa biblioteca, Sr. Lupin", aquele convite mais me pareceu uma intimação.
"Eu... Não sei", recolhi-me, fingindo interesse nas mangas de minhas vestes. "Terei de consultar o Sr. Tonks"
"Não deverá ser muito trabalhoso", julgou, os dedos deslizando devagar na taça de vinho. "Precisará investigar o local do crime, e quanto mais tempo passar aqui, melhor", lançou-me um olhar jovial, que não tive tempo de decifrar antes de sentir alguém puxando as mangas das vestes que eu fitava há alguns segundos.
"Moony, Moony", Dora soltou-me quando ambos olhares pousaram em seu rosto. "Dora Tonks, senhor", ela cumprimentou Sirius com graciosidade, algo parecia diferente em seu olhar.
"Srta. Tonks, eu suponho.", ele inclinou a cabeça para frente, a fim de beijar a mão dela. "Encantado."
"Lupin?", ela recolheu a mão rapidamente e voltou-se para mim. "Dança comigo?"
Hesitei um momento, mas Sirius assentiu que eu aceitasse o convite num sorriso cortês.
"Não vejo porque negar seu convite, senhorita", tomei sua mão e conduzi-a pelo salão fitando seus olhos claros e enigmáticos.
"Sobre o que conversavam Remus?", ela indagou após alguns segundos.
"O Sr. Black sugeriu que nos hospedemos aqui."
"No Largo Grimmauld?"
"Acha que seu pai vai se opor?", repliquei, preocupado.
"Talvez eu o faça", disse e procurando alguém em volta.
"E por que faria isso?", indaguei sem entender.
"Esse lugar me assusta um pouco", fitei-a incrédulo, "Aquelas gárgulas horrendas vão me fazer sonhar coisas feias."
"Dora, não diga bobagens", brinquei, e sussurrei para que apenas ela pudesse me ouvir. "Eu protejo você, princesa."
"Você promete?", desviei o olhar dela para cruzar diretamente com o de Sirius, que nos observava encostado à lareira. O copo de vinho sobre o mármore e as mãos livres a esmo do lado do tronco. Seus olhos negros pareciam fuzilar um ponto que eu não consegui enxergar, mas ao mesmo tempo ele mantinha os olhos presos a nós. Penetrantes, melancólicos. "Moony, você jura?", ela reforçou, a voz nada doce me fez fitá-la.
"Eu juro", respondi rapidamente, sem me dar conta do que dizia. Quase reconheci a expressão nos olhos claros de Dora. Ciúmes. Ou talvez eu tivesse enlouquecido completamente.
"Remus, Dora", Ted nos interrompeu, sibilando e fazendo sinais para que nos aproximássemos dele. "O jantar será servido em alguns minutos, os criados avisaram para nos dirigirmos à sala de jantar."
"Você está bem, Ted?", perguntei, ao notar certa intensidade em sua voz. "O que houve com Cygnus?"
"Falaremos disso depois, Remus" e conduziu Dora à frente.
As flores murchavam nos vasos com a chegada do verão e o calor era insuportável. Até mesmo para a frieza dos convidados naquela noite. Um jantar formal, era tradição. E estas jamais são relevantes quando se vive uma rotina padronizada. Eu fitava aqueles olhos negros embaçados e distantes dali, mas ninguém mais notava sua melancolia. Uma longa mesa de madeira mogno reinava naquele cômodo, instável e constante, com mais assentos do que eu poderia contar, contornando-a. Bocas pintadas engoliam bifes mal passados e olhos cobiçavam a carne meticulosa sobrepondo-se nos decotes dos vestidos.
Conversas paralelas e murmúrios oscilavam pela extensão da mesa assim como as taças de vinho e de absinto. Dora estava sentada ao meu lado direito e Ted ao esquerdo. Sirius e seu irmão Regulus nos fitavam à frente. A Sra. Black ocupava o único lugar da ponta, de onde o retângulo estendia-se até quase alcançar a entrada da sala. Discutiam algo sobre religião, mas eu quase não escutava as vozes embargadas pelo excesso de álcool no sangue nobre. Eu fitava Sirius longamente e sem retribuição. Ele observava todos com desprezo, uma calma genuína que disfarçava sua imensa vontade de gritar. Eu quase podia sentir sua angustia em meu próprio peito, imaginando se tal fixação era apenas ilusão em meu íntimo.
"Então, Sr. Lupin..." a voz de Walburga surgiu mais alta do que meus próprios pensamentos. "Ted informou sobre sua paixão pela literatura londrina."
"Eu a estimo assiduamente, senhora", comentei, concentrando meus olhos no prato quase intacto.
"Um detetive do seu porte deve se interessar muito pela escrita culta, não?" Franzi o cenho, imaginando se aquele comentário deveria me ofender.
"De fato, querida mãe", Sirius se interpôs. "Convidei os senhores detetives e a garota para se hospedarem aqui no Largo Grimmauld", seu sorriso poderia parecer gentil, mas eu conseguia enxergar cada nota de cinismo na voz.
"Esse meu filho", a Sra. Black riu de leve. "Não sei qual é o seu propósito em convidar jovens senhores para dormir em nossa casa, Sirius", ela comentou, sem tirar os olhos dele. "O que deveria fazer é pôr uma donzela em seu leito e acabar de vez com essa onda de boatos ridículos sobre sua verdadeira vocação." Um breve e desconfortável silêncio pairou sobre o comentário.
"Você nunca fez objeção à Orion quando ele costumava convidar homens a se hospedar em nossa casa, querida mãe", um gole de vinho, Walburga pareceu fuzilar o comentário "Inclusive, até mesmo a Sra. convidou meu tio Cygnus a pernoitar no Largo na noite do assassinato de Orion."
Qualquer comentário a seguir foi interrompido por um urro que proferiu de minha garganta. Senti imediatamente que o efeito de meu medicamento estava se esgotando e minha única saída seria correr para fora da mansão. Pressionei meu estômago com força, procurando o frasco freneticamente nos bolsos internos do casaco. Os convidados mais próximos se levantaram e me observavam com receio, Ted segurava meus ombros enquanto sussurrava continuamente em meu ouvido.
"Remus, o que há?", me desesperei ao notar que o frasco não se encontrava em minhas vestes, imaginando se escapara do mesmo após a brecada da carruagem quando chegamos.
"Sr. Tonks! O que houve?" Sirius gritava, abafando meus ruídos. "O Sr. Lupin está bem?"
"Eu...", gemi, algo parecia assentar eu meu peito. "Estou bem, só...", endireitei a coluna, notando que todos me encaravam com pavor, inclusive Dora que estava encolhida na própria cadeira. "Sinto muito, eu...", não consegui pensar em absolutamente nada para explicar o ocorrido, então fingi um desmaio.
Ouvi Ted mencionar algo sobre me manter deitado, e logo senti quatro braços me arrastando para fora do salão, os archotes ainda iluminavam minhas pálpebras seladas, mas tudo escureceu dali alguns segundos. Arrisquei espiar e notei a entrada do mesmo corredor escuro onde vira Sirius pela primeira vez. Ele e Ted seguravam meus ombros e um criado seguia na frente, uma vela acesa no castiçal que segurava.
Centenas de quadros pendurados nas paredes pareciam nos encarar, os rostos lívidos indicavam prováveis gerações da família Black, mas não tive tempo de compará-los com as fotografias, pois atingimos o final do corredor. Uma única porta o selava, e esta foi empurrada pelo criado abrindo espaço para adentrarmos o cômodo. Um clarão invadiu minhas pupilas, o luar através das janelas refletia as paredes imaculadas e a cama, com lençóis quase tão brancos quanto às paredes, era imensa. Deitaram-me ali, Sirius tirou meu casaco e correu as cortinas pardas em volta da cama. De certa forma, isso me tranqüilizou. A claridade intensa daquele quarto parecia me incomodar, mesmo com os olhos fechados.
"Pode fazer a gentileza de dizer que Lupin encontra-se indisposto, Sr. Tonks?", Sirius perguntou, ao que Ted respondeu num leve aceno enquanto me fitava preocupado através da cortina.
"Certamente", falou por fim, e fez menção de sair.
Sirius ordenou que o criado o acompanhasse, e sussurrou algo mais para ele que inclinou a cabeça numa reverência e sinal de entendimento antes de acompanhar Ted para fora do quarto. Senti novamente o estômago revirar e urrei, Sirius correu em minha direção e abriu a cortina. Fechei os olhos com força, ajoelhando-me sobre o colchão conforme as convulsões em meu peito ordenavam. Eu precisava do meu medicamento, e novo senhor Black seria assassinato se eu não o conseguisse com urgência.
"Diminua as luzes, por favor", consegui dizer entre dentes, a voz já mais grossa do que o normal.
Ele trancou as janelas rapidamente e a luz prateada da lua cheia que iluminava o carpete cinzento desapareceu completamente. Meu estômago assentou momentaneamente, permitindo que eu me deitasse mais calmo. A única luz presente clareava meu rosto à medida que Sirius se aproximava dele, a vela acesa nas mãos. Encarei-o pela fresta da cortina, os orbes negros aparentavam preocupação.
"Está seguro aqui, Sr. Lupin", ele falou. "Diga-me, sentiu algo diferente em sua bebida?"
"Eu...", franzi o cenho, confuso. "Preciso de um frasco prateado, está na carruagem que chegamos" balbuciei.
"Não sei onde..."
"Rápido, por favor", gemi, uma nova onda de tensão em minha têmpora.
"O colchoeiro deve saber qual é a sua carruagem", ele correu para a porta.
"Obrigado", consegui dizer, a voz fraca, quase inaudível.
"Eu que agradeço, Moony", um ligeiro clarão, meu corpo pareceu ceder à espera pelo medicamento.
Então sucumbi, na imensidão enegrecida das trevas. Pertencia a ela, para sempre.
Capítulo II vem no meio da semana.
