31 de Outubro de 1981, Godric Hollow
Eu havia de ter noção do que estava fazendo. Não é? Havia de saber, ao menos uma pequena dose desse veneno doce que era o saber, que o que faria era errado. Não havia? De certa forma eu sabia. Sempre soube. Mas naquele momento, com aquele homem, aquele animal, aquele traidor, eu não distinguia o certo do errado. Não queria. Não precisava. Apenas ri. E meu riso, tenho certeza disso, ecoou nas mentes de todos os bruxos do mundo. Dos puros, dos maus, daqueles que tinham medo, daqueles que eram corajosos. E, em especial, daqueles que seriam mortos. Esses sim, eu podia ter absoluta certeza, escutaram minha risada em suas mentes. Tão fria, tão rouca, tão irônica, tão... Inimaginavelmente cheia de medo.
Mas ninguém precisava saber desse medo oculto enquanto vagava pela noite fria, sem poder ao menos distinguir o que era escuro de claro, o que era noite de véu, o que era aquilo que estava sentindo. Pânico? Ardor? Ansiedade? Medo. Medo. Medo. Não! Eu não estava com medo. Não poderia estar. Lorde Voldemort não sentia medo. E Tom Riddle? Ele poderia sentir medo, não é? Era apenas um garoto, mal sabia o que estava fazendo... Não, não, e não. Tom Riddle fora esquecido em meio às páginas do passado. Eternizado apenas nas memórias dos fracos. E eu não era fraco.
Vaguei por horas. Horas interminavelmente longas, que poderia descrever em uma única palavra: Escuras. Usaria outras, se me fosse permitido uma delonga maior. Frias, tristes, silenciosas, aterrorizantes, inexistentes. Mas tudo o que eu via, era o escuro. E não me importava com isso. Gostava. Eu era a própria escuridão. E na escuridão havia medo. Não! Eu não estava com medo. Medo era para os fracos. Lorde Voldemort não tinha medo. Mas aquele maldito subconsciente, que fazia questão de acordar nas horas mais inapropriadas, gritava em minha cabeça com a mais ínfima voz possível: Você está com medo. O medo te levará para baixo, ninguém se lembrará mais de você. Será um mito. Você irá cair. Não me importava cair, se pudesse me levantar outra vez.
Cheguei e o medo, e o medo, e o medo, e o medo não me fez parar. A casa era branca. Branca com tábuas de madeira clara na varanda. Não havia portão. Ah... Pobrezinhos. Acharam mesmo que o maldito feitiço fosse protegê-los para sempre. O pra sempre, sempre acaba. Retirei a varinha de dentro das vestes, sentindo-a estremecer em minhas mãos. Aquele pequeno cilindro envernizado lançava tanta energia para meu corpo que sorri. Não que sorrir continuasse a ser um ato bonito e venerável como costumava ser aos meus quinze anos. A falta de lábios proporcionava a alteração notável, assim como a pele esbranquiçada, os olhos de cobra... Cobra. Sim, sim, Nagini. Como gostaria de vê-la naquele momento. Talvez pudéssemos comemorar meu triunfo após tê-lo feito. Você vai fracassar. Maldito subconsciente.
A porta se abriu com um único toque, como se agradecendo minha visita. A casa estava escura, mas eu não tinha mais medo do escuro. "Pequeno Potter..." sussurrei o mais baixo possível, sentindo a voz cortar minha garganta enquanto passava lentamente pelas minhas cordas vocais pouco utilizadas "Venha aqui, pequeno Potter. Eu não vou lhe fazer mal..." ri. Rir parecia ser a melhor coisa a se fazer. Já sentia-me feliz, se é que ainda sabia o que era felicidade, antes de acabar meu trabalho. "Não vai doer nem um pouquinho, pequeno Potter. Você foi meu escolhido... Venha pra mim."
Mas não foi meu pequeno Potter que apareceu descendo as escadas que rangiam. Era um homem já adulto, com uma barba mal feita e de aparência suja, os cabelos bagunçados, e óculos tortos no rosto. Não! Não era ele quem eu queria. Como aquele ser horrível ousava entrar em meu caminho? Pois bem. Precisava sair. Não levou mais de um segundo. Tive apenas de erguer a varinha e o jato verde luminoso atingiu seu peito. Ele estava aos meus pés. Ri. A morte tinha um gosto delicioso.
Continuei subindo enquanto chamava por meu querido bebê. Sentia sua presença em minha pele, e aquilo não era nem de longe agradável. Aquela sensação precisava sumir. Havia uma porta no final do corredor, e a luz bruxuleante que passava por baixo dela chamou minha atenção. E o medo, e o medo, e o medo... Você irá fracassar. Encostei meus dedos na maçaneta fria e abri a porta branca sem dificuldades.
Uma mulher ruiva estava de costas para mim, agachada ao lado de um berço azulado. Seus enormes olhos verdes encontraram minha figura alta e esguia quando se virou, as lágrimas pingando de seu rosto magro. Era bonita, mas aquilo não me importava. Estava atrás daquele pequeno ser que, sentado calmamente no berço, me fitava com os mesmos olhos verdes de sua mãe.
- Olá, pequeno Potter. – disse sorrindo para a criança que nada entendia. Dei-lhe um sorriso, que pareceu o acordar para a realidade, e as lágrimas começaram a rolar também de seus grandes olhos – Eu vim atrás de você...
- Saia de perto dele!
A mão pequena daquela mulher fora colocada em cima do peito do bebê. Como ela ousava pôr-se a frente do próprio Lorde Voldemort? Que se sentisse honrada por receber o segundo jato de luz verde do dia. Suas últimas palavras? "Seja forte, Harry." Patético. Escutava meu riso. Mas não sabia por que estava rindo. Doía-me rir. Todo meu corpo doía. Minha alma. Ainda a tinha? Meu coração. Não fora a séculos quebrado e nunca mais reconstruído? Então por que a dor? Voltei a mirar aqueles olhos tristes e cheios de medo. E o medo, e o medo, e o medo! Eu iria fracassar.
- Não! – Voltei a rir com vontade, usufruindo da dor que eu não queria aceitar. - Adeus pequeno Potter.
Ergui a varinha pela terceira vez na noite. O mesmo jato luminoso... E eu fracassei. Voltei a encontrar seus olhos. Como eram belos, aqueles olhos! Eles refletiam tanta dor, tanto medo, tanta perda... Refletiam a mim mesmo. No que me tornara? Um assassino cheio de arrependimento. Tinha um futuro brilhante. Era isso o que me diziam quando novo. Grande merda, esse tal de futuro brilhante.
Foi naquelas lágrimas que vi estampado meu fracasso. Morria milhões de vezes naquelas malditas lágrimas. Elas jogavam meu próprio raio em mim diversas vezes. E eu morria, e morria, e morria. Havia sido derrotado por um bebê. Que futuro grandioso. Eu iria voltar! Iria voltar para ver novamente aqueles olhos cheios de medo.
Eu ria, ainda ria. Ria de minha própria desgraça. Como doía! Maldita dor! Era tudo escuro. Tão escuro, tanta dor, tanto sofrimento, tantas lágrimas que escorriam de olhos verdes, tantos reflexos de mim mesmo que eu não reconhecia. Tantas partes de um espelho que agora cortava-me o corpo em outros milhões de pedaços. Tanto medo. Tanto medo. Tanto medo.
Seria eu um mito? Uma lenda? Um esquecido? Não podia responder. Eu apenas estava com medo.
