Olá meninas e meninos!

Enfim, finalmente, já não era mais hora, antes tarde do que nunca e brincadeiras mil, Estrela Silenciosa começou a ser atualizada! Não muito da forma como eu gostaria, mas...Bem, melhor começar a postar logo, ou o tempo passará, e a fic nunca sairá das profundezas do meu notebook!

Não vou me estender muito aqui. Apenas tenho que dizer que todo esse processo com Estrela Silenciosa era necessário. A história, os personagens, eu, todos nós amadurecemos, e então a idéia e a oportunidade de reescrever tudo surgiu. E felizmente de idéia foi para processo e realização. E vocês não tem idéia de como eu estou gostando disso!

Tudo e mais um pouco que quero falar, vou deixar para falar no blog que mantenho como diário de Estrela Silenciosa. (O link está no meu perfil!) Apesar disso, adicionei aqui, no final do texto, algumas notas e observações pertinentes ao texto e à obra de Tolkien.

Porém tenho que agradecer às amizades formidáveis que tenho no Tolkien_Group do qual tenho o privilégio de fazer parte. Sem essas amizades certamente não estaria aqui. E tenho que agradecer em especial à minha querida mellon e mestra Sadie, por suas palavras e eterno incentivo, e à igualmente querida e mestra Myri, que se dispõe em momentos preciosos, quando possíveis hihihihihi, a compartilhar sua visão e seu conhecimento para ajudar no progresso de Estrela Silenciosa. Meu mais sincero obrigado a vocês!

E chega de yadda yadda e vamos curtir a nova versão de Estrela Silenciosa!

Ah sim! Obviamente que todo o universo apresentado aqui, como os personagens pertencem a J.R., exceto aqueles poucos criados por mim. ;)


Estrela Silenciosa

Capítulo I - Para Onde é Preciso Partir... Parte I

Ano 3021 da Terceira Era. Imladris – A Última Casa Amiga Antes do Oeste.

Aquela cena já acontecera uma vez antes naquele mesmo salão em Imladris. Diferenciavam-se apenas pela ausência de espectadores na primeira ocasião.

Concentrada, a elfa observava o oponente à sua frente, pronto para atacar.

Seu adversário empunhava uma espada longa e curva, cuja lâmina clara era extraordinariamente fina. Nem por isso duvidava que fosse poderosa, e mais ainda seu dono.

A elfa começava a sentir o esforço de manter a postura. Não desejava de maneira alguma expor seu cansaço, embora soubesse ser difícil ocultar seu estado diante dos observadores atentos naquele salão, incluindo o elfo à sua frente. O lado do corpo com que manejava mais frequentemente a espada queimava e reclamava na altura das costelas nos momentos em que o impacto de um ataque era mais forte. Quando se deu conta, mordia o lábio como sempre fazia ao se deparar com uma situação que estava exigindo mais do que esperava.

Embora as mãos alvas permanecessem firmes envolvendo o cabo da espada, os braços tremiam levemente. Tentando manter a respiração ritmada e calma, a elfa checou a guarda da espada que emitia o brilho suave da madrepérola. Por um momento perdeu-se admirando aquela delicada luz. Poder-se-ia dizer que fulgurava regozijando com seu retorno às lutas e confrontos.

- Está perdendo a concentração elfa! – Glorfindel chamou-lhe a atenção mais uma vez, atento a cada movimento da jovem à sua frente, como fizera desde o início daquele confronto. – Gostaria de encerrar este desafio? Já mostrou seu valor, e eu o aceito com muito respeito. – Além da arma afiada, o elfo, extraordinariamente experiente, usava de outras armas também, como as provocações que oferecia tanto aos seus adversários, e inimigos quanto aos seus pupilos.

Glorfindel estava certo. Como sempre. Estava mesmo perdendo a concentração. Engoliu o suspiro que quase escapuliu de seus lábios, e esforçou-se para não transparecer que concordava com a óbvia constatação. Não desistiria naquele momento. Teimosa como era, não daria o braço a torcer.

Deveria manter a atenção em seu oponente e somente nele, ignorando seus observadores atentos, as dificuldades de seu próprio corpo e os detalhes que em outro momento a encantariam, junto às histórias antigas de seu povo. Muito menos deveria dar atenção ao falatório de Glorfindel. Balançou a cabeça com suavidade, o suficiente para afastar seus devaneios, e retomou o foco.

Infelizmente fora lenta demais. Percebendo a desatenção da oponente, Glorfindel avançou.

Espadas se chocaram e, com o primeiro golpe, o poderoso e louro capitão de Imladris, foi capaz de forçar mais um recuo da jovem adversária. As lâminas se tocaram ressoando alto, causando arrepios e provocando faíscas. Uma espada curvava-se perigosamente sob a força da outra. Para fugir daquele golpe que poderia ser o último, a elfa deu um passo para o lado e girou veloz sua arma, forçando consigo a espada do elfo. Com sucesso e alívio, interrompeu o ataque.

Ainda assim tinha que ser mais rápida.

- Desta maneira é melhor, Senhora. – Observou Glorfindel antes de girar o punho e colocar a espada em riste, evitando que um golpe na diagonal se aproximasse de seu rosto. – Volta a atingir as minhas mais altas expectativas. – A elfa não sabia dizer se aquelas palavras eram provocações ou verdadeiros elogios vindos do também Mestre de Armas de Imladris. – Mas está cansada. Deveria se poupar. – O elfo murmurou seu conselho ao observar a íris pálida e acinzentada do olhar de Gil. Lembrava-lhe mithril envelhecido e desgastado. – Podemos encerrar esta saudável disputa e nenhum julgamento indevido lhe será feito, eu prometo. – Glorfindel enxergava o visível esforço de sua oponente.

- Ainda não. Meu Senhor. – Respondeu a pupila com a voz igualmente baixa. Porém exibia um sorriso elegante e provocador, oposto ao seu olhar fatigado. Fazia valer as lições que havia aprendido com Glorfindel.

Recebendo a recusa da elfa à sua oferta, o Senhor lhe deu vantagem e espaço para um novo ataque. A elfa deslizou trazendo o pé de apoio para o lado, e gingou o corpo esbelto, manejando velozmente a espada de cima para baixo. O alvo, a outra espada, girou igualmente rápida, parando na horizontal, para receber o golpe. O Matador de Balrogs ficou satisfeito com aqueles movimentos, mas nada disse. Mesmo a elfos experientes ainda era capaz de ensinar valiosas lições. Havia mais algumas boas lições que Gíl-Dínen deveria aprender, pensou. E agora a oportunidade era sua. A chance de atacar lhe era favorável.

Logo que se distanciaram por poucos passos, Glorfindel girou parcialmente o corpo e deixou sua espada em riste, paralela a seu corpo. Pesou a idéia se deveria colocar mais força naquele ataque. Respirou fundo. Analisava a postura de sua oponente, se seria capaz de recebê-lo sem ameaçá-la perigosamente em função de seu cansaço. O desenho delicado e feminino do bordado de sua túnica subia e descia mostrando a respiração acelerada. As mãos seguravam com exagerada força a espada, evidenciando os nós brancos de seus dedos. Um leve tremor corria-lhe as pernas. Glorfindel sorriu um pouco inconformado. Em determinados momentos aquela elfinha tinha o mesmo comportamento que um de seus melhores pupilos. E seus olhos acinzentados e normalmente brilhantes eram tão parecidos com os de Elrohir. Difíceis de serem lidos, principalmente quando fixos em sua espada, aguardando o ataque que viria.

Glorfindel respirou fundo. Não lhe agradava a leitura feita, porém escolheu prosseguir. Gíl-Dínen estava se esforçando e enquanto desejasse continuar, Glorfindel também continuaria. Achava justo com sua oponente. Atacou com força e rapidez. Golpeou rapidamente a espada da elfa, tentando romper e roubar a eficácia de sua defesa, até as lâminas se cruzarem. Foi quando o choque trouxe um som arranhado aos ouvidos de todos no salão. Parecia um uivo, um silvo desagradável que outrora trouxera medo a muitos habitantes da Terra Média. Então o elfo viu sua oponente desmoronar à sua frente. Sua resistência havia cedido. Seu corpo submeteu-se surpreendentemente àquele golpe indo ao chão. O elfo louro não esperava aquela resposta e seus olhos se alargaram com o resultado que via.

Com rapidez os expectadores daquele inocente confronto se aproximaram.

- Gíl-Dínen! – Ouviram-se as vozes simultâneas de Elrohir e Elladan que vieram rápido conferir por si próprios a elfa, que estava ajoelhada diante de Glorfindel. A espada jazia largada ao seu lado. Sua respiração estava acelerada enquanto os olhos fechavam-se lentamente. Um dos braços mantinha-se esticado, oferecendo apoio ao corpo contra o chão, enquanto o outro abraçava o corpo, revelando sua fragilidade.

– Mellon nín, tíro nín. (Minha amiga, olhe para mim.) – chamou Elladan, fazendo uso de seus conhecimentos como curador e conseguindo, com relativo sucesso, a atenção da elfa.

Junto a Elladan estava Legolas, quieto e observador como sempre. Glorfindel mantinha-se próximo também. Seus olhos claros procuravam urgentes algum ferimento que pudesse ter causado com seu ataque. Respirou aliviado ao constatar que não havia atingido a jovem elfa. Fora meticuloso ao aplicar aquele golpe, colocando mais força em seus movimentos, mas se controlando para não causar danos à sua oponente. - Não está ferida. – disse mais para si mesmo do que para os que estavam ali.

- Não, Glorfindel. Não se preocupe meu amigo. Ela está bem. – respondeu Elladan com tranqüilidade ao avaliar o estado da elfa. – Está exausta, mas acho que bem.

- Apenas exausta? Esta não é a primeira vez que lutamos e que testo suas habilidades, mesmo estando cansada, Elladan. Sempre respondeu prontamente. – respondeu Glorfindel entregando as espadas, a sua e a de Gíl-Dínen, a Legolas que se adiantara a seu lado e lhe tomara as espadas para depositá-las longe dali. – Obrigado, Legolas.

- Sim, Glorfindel. Apenas exausta. – respondeu Elladan com um suave sorriso diante do questionamento do amigo, e repetindo a rápida avaliação que fizera. Com tranqüilidade o jovem curador tomava o pulso da elfa para contar sua pulsação. – Antes de começar essa luta, diga-se de passagem, que deveriam ter sidos todos mais sensatos e a adiado, já estava cansada e seu esforço apenas contribuiu para o esgotamento de suas forças.

- Eu avisei que estava cansada. Viajamos dias quase sem descanso para chegarmos logo em Imladris. – respondeu Elrohir enquanto acariciava delicadamente o rosto da elfa, trazendo-a contra seu corpo para prover um apoio mais confortável. Sem resistir, Gíl-Dínen aceitou o conforto que o corpo de Elrohir oferecia e assim, achegou-se apoiando o rosto no ombro do elfo. Sem precisar falar, admitia que estava cansada.

Na companhia de alguns elfos, Gíl-Dínen e Elrohir haviam feito uma viagem dos Portos Cinzentos a Imladris em menos dias do que o normal. – Ficamos ansiosos para retornar quando soubemos que Glorfindel e Legolas haviam regressado da viagem a Gondor. Principalmente, queríamos notícias de Minas Tirith. E quando chegamos insisti para adiar essa luta tola, Glorfindel. Mas teimosa como é, não me deu ouvidos. Disse-me que era um desafio a ser cumprido assim que os dois retornassem das respectivas viagens.

- Suponho certamente que teimosia é mais uma característica que vocês dois compartilham, Elrohir. – Glorfindel retrucou sem dar atenção ao riso disfarçado que causavam em alguns ali.

- Elfa tola. – chamou Elrohir voltando-se para Gíl-Dínen sem se ater à repreensão inoportuna de Glorfindel. Aquelas palavras logo que ouvidas fizeram com que aqueles olhos se abrissem lentamente, encarando-o com um brilho fraco e arredio, mas pouco capaz de retrucar. Havia aquela provocação que Gíl-Dínen odiava ouvir, especialmente vinda de Elrohir. Aborrecia-se quando ele a chamava de elfa tola, pois se sentia de fato tola, enquanto lembranças sombrias ganhavam vida, mesmo que por alguns segundos. Mas antes que pudesse protestar, o cansaço lhe tomou finalmente a mente, proporcionando-lhe alternadamente imagens, e uma escuridão agora não tão ameaçadora como há de muitos meses atrás...

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Ano 3018 da Terceira Era do Sol. Lindon – Litoral Oeste da Terra Média.

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...O som do mar rugia no final da tarde. Era início de outono*1 e o frio avançava trazendo temperaturas mais amenas às praias no norte do golfo de Lûn*2, litoral de Eriador. O sol se punha forçando a luz a se curvar às sombras da noite ainda de poucas estrelas no céu.

Aos olhos dos filhos mais novos de Iluvatar – os Homens – não passava de mais um dia que simplesmente acabou e, mais uma noite para descansar. O ano logo se encerraria e a grande maioria teria sobrevivido e resistido às ameaças incertas do Leste e ao pessimismo que continuava pairando no ar.

Alguns homens desconversavam e diziam que talvez fosse o frio crescente e as sombras que se alongavam, entretanto outros, mais velhos e sábios, sentiam que no ar pairavam dúvida e receio também.

Outros ainda, com a percepção mais apurada, depreendiam calados e preocupados a movimentação na floresta. Esta se tornava mais e mais quieta na maior parte do tempo. Caçadas eram deixadas de lado, canções na bela língua tornavam-se escassas e murmuradas e, ocasionalmente, apenas o som da forja ressoava ao longe.

Os elfos estavam partindo, diziam.

Estavam certos.

Não interessava mais ao belo povo permanecer naquele lugar. Alguns agora ouviam ao constante canto do mar e logo partiriam para o Oeste, onde ficava Valinor. A terra abençoada onde viviam Valar*8 e elfos.

Para isso deveriam viajar para os Portos Cinzentos*³, a cidade portuária fundada por Círdan nos primeiros dias da Segunda Era e que servia como última passagem dos elfos para o Oeste.

Entretanto havia entre eles quem resistisse ao encanto das histórias sobre a Terra Além-Mar e desejasse permanecer. Ainda havia tempo e desejo para ficar na Terra Média. Ainda havia muito a ser feito como pensavam os elfos mais jovens, por certo.

Alguns pretendiam se unir à comunidade liderada por Círdan, o Armador de Barcos, confiando em sua sabedoria e experiência, depois de sobreviver aos terrores e dificuldades da Primeira Era, como haviam ouvido em tantas histórias. Inspirados em seu Senhor protegeriam os Portos.

Outros, dentre os que permaneceriam na Terra-Média, se uniriam à comitiva que viajaria para o destino oposto: para o Leste. Naquela direção nem tudo ainda era coberto pelas sombras. Algumas regiões resistiam forte e bravamente: Imladris governada pelo Senhor Elrond, Lórien governada pelos sábios, o Senhor Celeborn e a Senhora Galadriel, e um pouco mais distante no norte, Mirkwood, a Floresta das Trevas, governada pelo Rei Thranduil

No entanto todos se sentiam receosos, pois, apoiados em suas escolhas, definiriam como os próximos séculos seriam vividos. Portanto, não deixavam de se digladiar com as possibilidades.

Observar as vagas cinzentas que lutavam entre si no mar escuro tampouco ajudava. Era inútil, pensou a elfa. Ciente disso ainda permanecia sozinha, observando, da borda da floresta, o mar à sua frente. Supunha que nem mesmo Ulmo*4 se disporia a aventurar-se no mar revolto de Ossë*5 nesse momento, para dar um sinal do que deveria ou poderia ser feito. Por fim, por que motivo o Vala lhe daria um sinal, questionou.

Um simples sinal. Era o que a elfa desejava naquele momento. Algo que lhe guiasse e a ajudasse a tomar a decisão sobre para onde deveria partir. Havia alguns bons, mas, poucos motivos para partir para o Oeste com o que restava de sua família. Em contrapartida, a idéia de partir para o Leste a despertava para inúmeras vontades. Desejava partir para o leste e rever a família do Senhor da Última Casa Amiga Antes do Oeste. A Casa do Senhor Elrond, tão famoso por sua indiscutível habilidade como guerreiro quanto por seu trabalho como exímio curador. Também queria alcançar as terras além da Colina das Torres e o Condado para onde não ia desde o tempo em que participava de patrulhas que rondavam as bordas daquelas terras. Mas o mais importante era a necessidade substancial de seguir não só os passos de seu adar*6, Aegnor, mas também as idéias de lutar contra a Sombra, ajudar quando preciso, que os dois haviam partilhado há tantos anos.

Escurecia. O céu era um gradiente de azuis e cinzas, ora claros, ora escuros. A pouca luz era provida pelas estrelas, e pelas lamparinas que serviam para iluminar o caminho do pequeno reduto élfico até a praia.

Uma pequena lamparina, cristalina e de luz fria, pendurada em galho do arvoredo baixo próximo iluminava a elfa que permanecia imóvel.

Seus cabelos escuros e longos estavam presos em delicadas tranças que escorriam pelos ombros e perdiam-se na capa macia de lã azul acinzentado. Sobrepunham-se ao trabalho confeccionado pelas mãos hábeis e antigas de sua avó. Com os braços enlaçava tecido e corpo, tentando manter o calor reconfortante. Seu corpo estremecia à força do vento. Os olhos eram um espelho do mar acinzentado, do qual só se diferenciavam pelo reflexo, pelo brilho e pela dúvida que continham.

Permanecera naquele lugar durante horas. Ora caminhando por algum tempo e sem rumo, ora sentada na areia. Buscara silêncio e isolamento para pensar e ponderar as questões que implicavam na sua escolha: Partir para Valinor ou permanecer na Terra-Média.

Então deu as costas para a paisagem escurecida e procurou um tronco velho caído para sentar e continuar sua observação insistente, porém infrutífera. Mas também para dar espaço à recém-chegada que se aproximara e desejava conversar.

Logo a outra elfa, com os mesmos delicados e suaves traços achegou-se. Seus olhos eram tão escuros quanto seu cabelo, preso em uma única e larga trança adornada por finos fios de prata.

- Chegou a alguma decisão, hên-nín? (criança minha)

A elfa mais jovem sorriu um pouco sem graça. – Ainda não estou certa, nana. Tenho algumas respostas, porém não são suficientes para completar o quebra-cabeças que envolve minha decisão. A única coisa que sei neste momento é que não tardaria para que uma das duas viesse me procurar. – provocou com leveza a recém-chegada.

- Eu sei a sua resposta hên-nín. – respondeu a outra elfa usando do mesmo tom provocativo que a neta. - Eu sabia muito antes do dia em que você nasceu. Também sei por que a conheço melhor do que imagina. Você não é como as outras elfas... – Disse Laêth, pois este era seu nome, e afagou os longos cabelos negros da neta para depois prendê-los dentro de uma nesga de tecido. – Você não se agrada pelos afazeres comuns como a maioria de nós, como eu e sua mãe. O sangue de seu adar, sangue noldo, que corre em você, é mais forte que o nosso, sindar. Está sempre disposta a fazer algo a mais, algo que seja significativo não só para você, mas para todos que estejam ao seu redor. Você partirá conosco amanhã. Mas para Valinor você irá só daqui a muitos anos.

- Gostaria de ter a mesma certeza que a senhora, nana. – respondeu a outra enquanto tomava um graveto e desfazia, sem o menor interesse, um montículo de areia. Porém logo o abandonou e voltou-se para sua companhia. – Como pode ter essa certeza? – indagou vencida pela curiosidade e perplexidade que sentia diante da firme constatação da avó.

- Não deveria ter dito, mas já o fiz e não posso pedir que esqueça o que ouviu. Não se precipite, nem se impressione tanto com o que lhe digo, minha querida. Você tomará a decisão, a melhor, no momento certo. – apenas complementou Laêth observando o olhar inquisitivo e escuro que a neta lhe lançava. Na consequência daquele olhar, certamente Gíl-Dínen lhe dirigiria algum questionamento difícil de responder. – Você sabe. Vivi centenas de anos a mais que você, hên nín. Sou da Era em que aprendemos a olhar e avaliar fatos vindouros. – Respondeu altiva. - Mas também sou de uma Era onde éramos nobres, extremamente orgulhosos, e arrojados. Tínhamos a Terra Média aos nossos pés e não perdoávamos aqueles que cruzavam o nosso caminho. – Laêth suspirou como sempre fazia quando aquelas palavras lhe visitavam. – Por isso muitos de nós vivemos de amargas lembranças, à sombra do passado ou lutando para manter nossas tradições vivas. –as lembranças do passado com a qual aprendera a conviver haviam despertado e retornado para assombrá-la junto com as incertezas dos novos dias. – Acho que vou sentir falta deste lugar, mesmo tendo a praia branca ou os penhascos vertiginosos de Valinor para admirar. - rapidamente emendou em outro assunto desconversando do anterior, sem permitir que se instalasse um desagradável silêncio.

- Imagino que sejam muito bonitos, mas sentirá falta de mim... – provocou mais uma vez a outra, apesar do sorriso triste que tinha. Então recostou em um galho retorcido do tronco que servia como assento.

- Hên-nín, com isso eu já conto desde que soube que você não tomaria o mesmo barco que nós. – Laêth mentalmente se recriminou por voltar àquele assunto. – Sentirei sua falta. – completou com um longo suspiro. - Assim como sei que sentirei falta da música da praia. Mas desta já sinto falta nesses últimos tempos. Partia-me o coração ver o Menestrel vagando pelas praias cantando tristes melodias na antiga língua dos nossos antepassados, e agora me parte o coração não ouvi-lo. E ainda pior, desconhecer seu paradeiro. Aquele elfo pode estar em qualquer lugar do litoral da Terra Média.

- Não acha que ele finalmente partiu da nossa costa?

- Não. Acho que não, a menos que tenha partido em segredo, mas Maglor, e este é o nome do elfo que muitos hoje chamam apenas de Menestrel por desconhecer sua história, necessitaria muito mais do que um navio para alcançar Valinor. E não o conseguiria com o que pudéssemos fazer para ajudar, hên-nín. – antecipou-se a elfa em esclarecer o olhar inquisitivo que a neta já lhe lançava. – Maglor teria que abandonar o anonimato em que vive. E há séculos permanece distante do contato com qualquer raça. Algo muito forte o prende ainda nesta terra. Prende-o a seu corpo, sem deixar que definhe e sem se transformar em um espírito errante, é o que quero dizer minha querida. – disse percebendo a transformação no olhar da neta. Agora havia um pouco de incompreensão.

- No entanto não irá fazer isso, partir. Acho. Para tanto teria que também abandonar o pouco orgulho que ainda tem. E o que impede de fazer isso, é que Maglor é um alto-elfo noldo exilado de Valinor, que vive desde sempre e para sempre caminhando por nossas praias, pois recusou a oferta de restituir aos Valar as Silmarili*7, pedras tão preciosas que influenciaram o destino da nossa raça. – explicou Laêth quando interrompeu o assunto abruptamente. Sabia que Gíl-Dínen se interessava muito pelas histórias da Primeira Era e que se dependesse dela, as duas permaneceriam por horas conversando sobre o assunto. – E antes que me faça mais perguntas ou me deixe recontar a Primeira Era inteira, acho que devemos retornar para casa. Esta será a última noite que passaremos na região, e deve se lembrar de que nos reuniremos para celebrar a nossa partida. Não queira causar mais uma insatisfação à sua mãe. Por favor.

- Eu irei, mas gostaria de permanecer um pouco mais. – respondeu a elfa, voltando-se para o horizonte já envolvido pela noite. Queria organizar suas idéias. As palavras de Laêth ecoavam afirmativas em sua mente. Percebia que, ao poucos, a balança pendia para a sua permanência no continente.

- Que assim seja hên-nín. – respondeu a elfa, levantando-se. Antes de partir, voltou-se para a neta e beijou-lhe a testa. Preocupava-se com aquela criança, mas sabia que logo ela estaria em boas mãos e que seus caminhos, demorariam, mas se cruzariam mais uma vez. De uma maneira ou outra era o que sabia. Apenas não desejava que isso ocorresse nas Mansões de Mandos. Ai, que Elbereth Gilthoníel protegesse sua criança, até que ela estivesse a salvo em Valinor.

~.~.~.~.~.~.~

O cheiro da água salgada misturava-se ao cheiro da chuva agora mais calma, após a tempestade. Seu corpo pesava sobre a areia molhada e as ondas, pequenas e teimosas, atravessavam suas vestes e tocavam-lhe a pele, reavivando seus sentidos.

Respirava fundo e buscava um pouco de paz. Queria acalmar o coração que batia descompassado. Estava cheia de dúvidas, angustiada, incerta se estava no caminho certo.

Permanecia com os olhos fechados, envolvendo-se confortavelmente na combinação de cheiros, do som das ondas quebrando e da chuva que se afastava lentamente. Havia também a algazarra das gaivotas, atrevidas, saindo de seus ninhos escondidos nos rochedos adiante. Ainda assim, foi capaz de perceber uma nota a mais na cacofonia naturalmente orquestrada que ouvia. Não só uma, como várias notas, belas, que compunham uma crescente e triste melodia.

Estava certa de que até então permanecia sozinha na praia. Quem mais, pelos Valar, teria se atrevido a vir à praia com a recente tempestade que caíra? E de onde vinha aquela melodia? Seria possível aquela música fazer parte da canção dos Ainur*8? Era tão bela... Pouquíssimos tocavam com tanta maestria.

Então a música silenciou, frustrando a elfa que abraçava o próprio corpo com delicadeza. – Não... Não agora. – Achava que naquela música seria capaz de encontrar um pouco de paz.

Diante da ausência de música, abriu os olhos. O cenário continuava o mesmo. Escuro. Pesado. Tempestuoso. Então encarou o presente a seu lado. O elfo tinha traços suaves, porém castigados pelo tempo. Os olhos, acinzentados, continham um brilho triste e distante, e seus cabelos, sem tranças nem adornos, eram de um castanho acobreado muito escuro.

Em seus braços estava aninhada uma pequena harpa, entalhada em madeira branca e de curvas graciosas, porém simples, e cordas prateadas.

- Está tudo bem hên-nín? – indagou o desconhecido recém-chegado. Ele observava a aparente fragilidade da elfa, e reconhecia o brilho fraco e cheio de dúvidas em seu olhar.

- Sim... – Foi tudo o que a elfa conseguiu dizer. O tom de sua voz confirmava seu olhar. Ainda estava um pouco confusa diante daquele cenário desconcertante. Deveria estar sonhando. Então se levantou limpando a areia grudada em sua túnica. A roupa toda estava molhada, depois de tomar boa parte da chuva que havia sido trazida pela tempestade.

- Tem certeza? – O elfo tentou, gentilmente, mais uma vez.

- Sim. Obrigada. Tenho certeza. – ouviu-se dizer. – Era você que estava tocando a canção que ouvi? – perguntou inocentemente. Como resposta recebeu um leve aceno do elfo. – Pareceu-me vinda dos Valar... Embora fosse triste.

- Os Valar são capazes de compor músicas que lhe parecerão tristes. Mas acredite, a maior parte é originalmente alegre e vigorosa. Você pode perceber que são assim quando vê tudo ao seu redor, hên-nín. – Sua voz, embora fosse límpida e encantadora, continha muita saudade e amargura.

- Meu Senhor... – O olhar da elfa cresceu e ganhou mais vida quando se deu conta de quem era o elfo. Ouvira de sua avó que aquele ao seu lado há muito tempo havia abandonado aquelas praias, vagando ou ao norte ou ao sul. Na verdade havia abandonado a região e a vista de qualquer um que andasse por aquela paisagem. Mas como ele poderia estar logo ali? Como havia chegado, e naquele momento? Por um momento até questionou se aquele era quem pensava ser. Se não era uma peça que sua mente lhe pregava.

- Deve me chamar apenas de Maglor. – respondeu o elda, alumiando a dúvida que a elfa tinha. E em um ligeiro momento sua voz recuperou a autoridade usada no passado. - Há Eras não sou digno de tal tratamento da parte dos eldar. Não sou Senhor de nada nem ninguém. Nem de mim mesmo. – terminou retomando a entonação apagada, porém gentil.

Gil-Dínen com seus olhos perscrutadores investigava cada detalhe mínimo do elfo ao seu lado. Não conseguia evitar. Nunca o vira antes, e sua imagem fora construída mentalmente a partir dos relatos de Laêth. O rosto de Maglor, iluminado pela suave luz do entardecer, lhe passava perseverança e altivez, e ao mesmo tempo uma triste sabedoria adquirida a duras penas.

- Perdoe-me Maglor, mas... – Gíl-Dínen se sentia um pouco atrapalhada. Chamá-lo apenas de Maglor lhe soava rude demais. – Não acho que sou capaz de deixar de tratá-lo com o respeito que merece, Senhor. E... Já não se passaram Eras suficientes para que fosse perdoado pelos Valar, e assim lhe fosse permitido partir para Valinor? – questionou pensativa diante do comportamento do elfo a seu lado.

- O perdão dos Valar já não anseio mais ter... Embora aos olhos deles, talvez, já tenha sido suficientemente punido por tomar parte no juramento*9 de meu pai. Todos que me eram caros já partiram. Não obstante aqui permaneço, vagando, sozinho procurando a sabedoria que um dia me escapou deixando-me somente a arrogância como conselheira. O juramento que fiz com meus irmãos, por amor e lealdade a meu pai, trouxe dor, morte, sangue e tristeza a muitos elfos. E entres esses elfos, há aqueles que ainda permanecem na Terra Média. E a memória do passado continua viva, acompanhando-os. Seria mais um erro de minha parte partir para a boa aventurança de Valinor e deixar o passado assombrando os que permanecem aqui. A eles não devo ser merecedor de perdão. – Ouvir aquela revelação causou arrepios em Gíl-Dínen. O elfo havia desistido então do perdão dos Valar?

Maglor suspirou ruidosamente. - Estou sentenciado a percorrer errante os caminhos desta praia sem fim, até me tornar um fantasma que habita a mente dos filhos mais novos de Erú Iluvatar. - Uma nota de sua harpa soou ao toque das mãos de Maglor. Lembrava de seu pai. Fëanor. Um dos elfos mais poderosos que caminhara sobre a Terra Média e o primeiro a desafiar abertamente os Valar. Lembrava-se de seus irmãos. Um a um, foram mortos e condenados a rumarem para o eterno descanso nas Mansões de Mandos. Lembrava-se então de sobrarem apenas ele e Maedhros, o último de seus irmãos e que enlouquecido, pela dor que o toque de uma das Silmarils lhe causara, tirara a própria vida atirando-se em um abismo de fogo. Mais do que a lembrança amarga que envolvia sua família, recordava-se de outras incontáveis amarguras. Era capaz de sentir o sangue que havia derramado demais e tolamente em suas mãos. Havia ferido e matado sem se apiedar. Julgara sem direito e destruíra sem o menor escrúpulo. Causara mal a tantos elfos e suas famílias. Causara mal a Elrond que ainda vivia naquele mesmo continente que ele. Elrond. Aquele era um nome que lhe assombrava diariamente.

- Acredita que vagar pelo litoral seja o único caminho a ser trilhado? Talvez sejam tolice ou desconhecimento meus, mas não seria melhor tomar o caminho que o leve àqueles de quem necessita receber perdão? – Gil-Dínen sabia a quem Maglor se referia: o Senhor de Imladris. A elfa acreditava que, mesmo com todos os inúmeros e inenarráveis erros cometidos pela família de Fëanor, as vítimas daquele infeliz juramento haviam de pedir a Mandos*10 que tivesse compaixão. - Creio que o Senhor Elrond não pense da mesma maneira. Ele é sábio e de grande compaixão e mesmo tendo sido uma vítima do juramento de seu pai, acho que ele não o consideraria indigno de perdão e o ajudaria a encontrar o caminho para isso até o Oeste.

- Eu e meu irmão Maedhros causamos muito mal à casa de Elrond quando ele ainda era um elfo muito pequeno. Uma criança. Não há perdão para o que foi feito, Gíl-Dínen. Além do mais, vivemos um tempo de sombra novamente. Os eldar que ainda vivem aqui têm preocupações que crescem com as ameaças no Leste. Sauron é um dos maiores frutos do nosso Inimigo Escuro. – Uma sombra passou pelo olhar de Maglor. Lembrava-se de Sauron como o tenente-capitão de Morgoth, durante a primeira Era, e de todo o terror que causara já naqueles dias. – Os eldar precisam encontrar uma maneira de ajudar os filhos mais novos de Iluvatar a sobreviver e enfrentar esse novo Senhor do Escuro. – Maglor sorriu de maneira triste, mas conformada. – O que menos importa é que se atenham a alguém como eu.

- Não valeria a pena tentar? –incrédula a elfa insistiu, pois tinha consciência da enorme tristeza de Maglor, por isso sentia muito.

Então Maglor afastou-se das ondas indo até onde havia areia fofa. Agachou e tomou uma porção de areia em sua mão, mas logo deixou os grãos escaparem de volta ao chão. Havia uma sensação de insignificância naquele gesto. Gíl-Dínen vendo que a figura não se movia, aproximou-se. Tentava compreender o elfo que então se levantara e correspondera seu olhar. Por instantes ficaram calados. Ele realmente acreditava em suas próprias palavras, ao que parecia. Para a jovem era doloroso ver a tristeza que seus olhos e gestos delatavam. Porém julgava injusto, depois de tanto arrependimento, que continuasse exilado.

- Há coisas muito mais importantes com que se preocupar do que comigo, hên-nín. Você terá a oportunidade de ajudar a tantos. Não é o que deseja? Sei que considera muito a oportunidade de permanecer aqui na Terra Média, enquanto sua família parte para a bela Valinor. – Maglor sorriu gentilmente afastando sombras e tristezas. Havia confiança em seu semblante. Uma confiança que Gíl-Dínen não compreendia ainda. – É corajosa de aceitar essa separação. Ah Gíl-Dínen, você é uma silenciosa, porém graciosa estrela. Com sua partida terá a oportunidade de fazer parte de uma bela constelação. Parta daqui. Vá amanhã. Não se preocupe, logo saberá para onde deve seguir.

- O que quer dizer? – Gíl-Dínen então ficou confusa. Já tinha ouvido aquela mesma frase, mas não sabia dizer quando ou onde.

Apenas parta de uma vez. Merich ledhed na Thrûn. Ledho! Ledho an Imladris ae merich lim ledhed*11. (Você anseia por partir para o Leste. Vá. Vá para Imladris como você deseja). – Maglor falou com firmeza. Compreendia o que se passava por trás daquele olhar, que aos poucos ganhava brilho e profundidade. – Mesmo que na opinião dos menos sábios sua escolha seja desnecessária e insensata. Até mesmo inexplicável. Ela será de boa valia a muitos que necessitam de algum auxílio. – Maglor estremeceu junto às cordas prateadas de sua harpa. Com a mão delgada e clara protegeu aqueles fios delicados e voltou-se para a jovem elda, mostrando que a tristeza em seu rosto dava lugar a um sorriso mais tranquilo e com uma sabedoria adquirida à duras penas. – E... E embora não seja sábio dar conselhos, considere o meu como uma sugestão: em sua viagem para os Portos, se lhe for oportuno, viaje próximo à praia. Ganharão tempo e desfrutarão de uma viagem tranqüila. E... – o elfo hesitou. – E se você for curiosa, porém paciente, terá a chance de fazer algo bom. Se sua escolha for realmente sincera, será capaz de ajudar a muitos. – terminou, forçando Gíl-Dínen a criar mais perguntas em sua mente.

O filho de Fëanor deu um passo para trás, mas parou um instante para olhar na direção do oeste. Depois baixou os olhos e balançou a cabeça. Seu pesar era muito grande. Fantasmas ainda habitavam a sua mente entorpecida, desde o fim de tudo aquilo que ele conhecera e tanto amara. Seus sonhos, outrora grandiosos, agora se resumiam a um passado pesaroso e um desejo custoso, quase impossível de se realizar.

Mais uma vez deveria se afastar de seus semelhantes. Acreditava que permanecendo distante não seria capaz de causar mal a ninguém.

Fez uma pequena reverência levando uma das mãos ao peito e acenou com a cabeça. Deveria partir. Gastara muito tempo conversando com Gíl-Dínen e isso começava a incomodá-lo.

Gíl-Dínen teve pouco tempo para responder com um aceno antes que o elfo desse mais alguns passos se afastando. Ainda tinha tantas perguntas a fazer. Queria entender aquele momento. Mais. Queria encontrar uma maneira de ajudá-lo. Quem sabe pudesse fazer algo que ao menos tornasse menos insuportável a miséria que o consumia, mas a conversa havia se encerrado com o afastamento de Maglor.

A jovem elda observava a figura se afastar calmamente na mesma direção que a tempestade. Conforme a distância entre os dois crescia, tentava compreender a conversa que haviam tido.

Repentino o silêncio recaía por todo o lugar. As gaivotas haviam se recolhido, e o mar estava tranquilo com poucas ondas. Pequenas vagas requebravam e morriam silenciosamente na areia a seus pés. Foi então que ouviu uma nota límpida ao longe e a voz cristalina e triste do elfo.

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"...As memórias de quem venci,

Cantam ao vento frio e severo

Que leva as verdes folhas destas terras...

Lamento...

Lamento pelos inocentes que traí...

Lamento pelas vidas que amargurei...

Lamento...

Pela negra escuridão que jurada me atormenta...

Tomado pela loucura miserável que me aprisiona.

Ai! Verdes campos que enfeitaram minha morada.

Ai! Fresca água que murmura límpidas cantigas.

Belas são as jóias de Elbereth em Valinor.

Lamento...

Lamento pelo distante fim desencontrado...

Lamento pela eterna música de perdição...

Ai! Que esta harpa aconselhe com gentil dedilhar...

Ai! O fio de esperança retome a distante estrada...

Então o sol iluminará as mansões do eterno descanso..."

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A elfa se perguntava que crimes contra a própria raça ele havia cometido para viver em tão grande e triste resignação. Se um dia ele ainda encontraria paz para seu corpo e espírito tão cansados, que ainda assim não desistiam da vida, buscando a redenção pelos tais atos que ajudaram a enegrecer a história dos primogênitos de Iluvatar.

Quando a imagem de Maglor tornou-se um borrão distante aos olhos abrilhantados de Gíl-Dínen, o elfo perdeu-se nas sombras do entardecer e não foi mais visto. Depois de depositar uma estranha esperança em Gil-Dínen. A sua própria esperança.

Ao redor da elfa tudo silenciou e as cores, ricas e vivas da praia foram acinzentando até perder-se em sombras borradas.

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Quando recuperou o olhar apurado, a escuridão era presente. Havia tomado conta do mundo e apenas as estrelas e a lamparina, acima de sua cabeça, iluminavam aquele lugar.

Não havia passado muito tempo desde que Laêth a deixara, mas o suficiente para se deixar levar pelos pensamentos e cair em um estado de sonho. Havia sonhado com Maglor. E a memória ainda muito viva da conversa que haviam tido lhe causava arrepios. Havia tanta tristeza na voz do Menestrel. Será que não havia absolutamente nada a ser feito, como havia dito sua avó? Seu destino seria vagar, sem perdão, sem alento e compaixão até que acontecesse a Dagor Dagorath*12 ou que Ëa*13 deixasse de ser aquilo que é?

Intrigava-a também o conselho de Maglor. Deveria partir para o Leste. E como ele conhecia seu desejo de ir para Imladris? Pois bem que isso apenas confirmava o comentário de Laêth, de que não partiria agora para Valinor. Por outro lado, alegrou-se com a perspectiva de viajar e alcançar a Casa de Elrond. Ainda pensou que surgindo a chance, viajaria acompanhando a praia. Não haveria risco em tomar aquele caminho.

Logo sentiu urgência em procurar a avó para conversar e contar o ocorrido. Queria partilhar de sua conversa com Maglor e ter mais uma opinião. Entretanto relembrou as palavras da elda mais velha, dizendo que nada que pudessem fazer seria o suficiente para ajudar Maglor. Isso lhe parecia mais difícil de aceitar. Pelo menos depois dos últimos acontecimentos.

Porém se lembrou de algo igualmente importante que Laêth também havia dito. O alerta para que não causasse mais uma insatisfação à sua mãe. Tinha que retornar para casa. E rápido. A conversa sobre Maglor teria que ficar para mais tarde, e longe de ouvidos curiosos e da provável censura de Lóthwen. Então se postou em pé e tomou com passadas rápidas o caminho floresta adentro, iluminado pelas dezenas de lamparinas colocadas ali há muito tempo.

Mesmo longe foi capaz de ouvir as vozes entoando canções de júbilo a Elbereth. Embora a partida fosse melancólica e causasse dúvidas, pois ali haviam vivido por incontáveis anos, a perspectiva de tomar o navio para Valinor se sobrepunha às demais impressões em determinados momentos. A única que ainda demonstrava alguma insatisfação era Lóthwen, mãe de Gíl-Dínen. Já haviam discutido por diversas vezes sobre Gíl-Dínen tomar o caminho contrário ao bom senso que a maioria tinha. Não tinham chegado a uma conclusão que agradasse a ambas. Lóthwen não aceitava a idéia de deixar sua filha, sozinha naquelas terras ameaçadas, quando poderiam viajar juntas para a segurança de Valinor.

Foi aí que Gíl-Dínen percebeu que uma nova discussão poderia se tornar mais acalorada se mencionasse o desejo de ajudar um elfo relegado a lendas e histórias da Primeira Era. Todavia logo abandonou essa preocupação. Não usaria esse desejo como justificativa em alguma discussão que viesse acontecer com a mãe.

Logo os sons se enriqueceram com mais vozes élficas. O caminho à frente cedia espaço às construções claras e protegidas por encostas suaves, árvores anciãs e rochedos que despontavam por entre caminhos tortuosos, que rapidamente ziguezagueavam em subidas e descidas e que terminavam numa floresta mais densa.

Com rapidez venceu os dois últimos lances de uma escada de pedra e musgo por entre rochas lisas e nuas.

Archotes iluminavam a entrada da casa. As paredes estavam cobertas de pedras e hera que, com suas folhas ponteadas já amarelavam e em poucos dias cairiam. Passou pela porta de folhas duplas ricamente entalhadas por seu pai. Havia escolhido com cuidado os desenhos de flores e folhas que enfeitavam a madeira clara. Aquelas flores pequeninas com suas cinco pétalas eram suas favoritas. Seu nome era Elanor ou estrela-do-sol.*14

Parou um instante e sentiu o calor que vinha da ampla sala onde estavam todos. Era reconfortante. Em um canto observou Laêth e Lóthwen entretidas com a conversa que tinham com dois dos elfos mais velhos daquele recanto. Certamente falavam da partida nas próximas horas. No canto oposto, outro grupo de elfos cantava e entretinha os demais presentes.

Gíl-Dínen avançou fazendo uma graciosa reverência ao primeiro grupo. Teria a noite toda para conversar com sua família e mais todo o caminho para os Portos. Portanto tomou, com passos rápidos e curtos, a direção do outro grupo e apreciou os últimos momentos que teria com a maior parte daqueles que eram seus amigos. Sabia que pouco mais de dez elfos continuariam na Terra Média e destes, a maioria permaneceria a serviço de Círdan.

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A madrugada, pontualmente, tomava seu lugar de direito na noite.

Grande parte dos elfos já havia abandonado o vinho e as músicas, e se despedido dos mais velhos para terminarem os últimos preparos da viagem para os Portos.

Cavalos começavam a ser selados com maior zelo, pois seria uma viagem um pouco mais complexa que de costume. Vestes eram guardadas com cuidado, junto com alguns pertences pessoais e preciosos para seus donos. Vinho, pães e frutas também eram condicionados em alforjes e estojos.

A maioria das lamparinas que enchiam de luz aquele canto da floresta eram discretamente apagadas ou retiradas de seus galhos, pois serviriam para iluminar parte do caminho tomado antes do amanhecer.

Gíl-Dínen estava insatisfeita. Antes mesmo de descobrir como ajudar Maglor, se sentia inclinada a rumar para Imladris. Porém a conversa com o filho de Fëanor lhe fizera pesar todos os detalhes entre ficar a partir. Ficaria. Permaneceria e ofereceria sua ajuda em qualquer e toda oportunidade que surgisse à sua frente.

Porém sentia-se inquieta. Contava as horas para poder conversar com a avó sobre sua decisão e sobre os acontecimentos no início da noite. Entretanto a oportunidade se mostrava difícil diante dos próximos eventos.

Restava pouca coisa a fazer até o amanhecer. Por algum tempo se distraiu arrumando sua bagagem, que era pouca. Junto ao corpo levaria suas facas gêmeas e a espada herdada de seu pai. Em uma bolsa de viagem acomodou algumas mudas de roupas e apetrechos pessoais de uso diário. Em uma bolsa menor havia moedas de prata e algumas jóias que considerava seu pequeno tesouro: um fino cordão dourado dado por seu pai no último aniversário em que estiveram juntos, e um broche feito de pequenas estrelas de mithril, dado por Laêth, na ocasião de seu nascimento. Mais do que isso era desnecessário carregar.

~.~.~.~.~.~.~

Continua.

Notas.

*1 A história começa em Setembro – Início de outono. Considerando que a estação tem 54 dias e em fim de dezembro a comitiva do anel parte de Imladris e inverno, calculei mais ou menos que em setembro poderia ser o início do outono.

*2 Golfo de Lûn. – Na região norte fica localizado o ponto de partida da comitiva de Gíl-Dínen. Essa região pertence à Forlindon ou Lindon do Norte. Litoral de Eriador. No encontro do Golfo de Lûn e a foz do Rio Lhûn estão os Portos Cinzentos.

*3 Portos Cinzentos – Também chamado de Mithlond, os Portos Cinzentos eram habitados por Círdan, e se localizavam no Golfo de Lhûn, oeste de Eriador.

*4 Ulmo – Um dos Valar, Senhor das Águas e Rei do Mar.

*5 Ossë – Vassalo de Ulmo que tinha muito apresso por tempestades no mar, tornando a navegação perigosa.

*6 Adar – Forma sindarin de Pai

*7 Silmarili – plural - forma sindarin de Silmarils – Singular Silmaril

*8 Ainur – os Valar, Senhores de Valinor, Governantes de Arda.

*9 Juramento de Fëanor - Maldição dirigida a qualquer um que possuísse ou desejasse possuir algum dos três Silmarils, e com o qual tanto Fëanor como qualquer um de seus descendentes se comprometiam a recuperar as gemas a qualquer custo, sob a pena de serem condenados à Escuridão, pena que pediram a Eru Iluvatar, o Criador, lhes submetesse se não cumprissem com o juramento.

*10 Mandos – Seu verdadeiro nome é Námo e Mandos, o lugar onde fica seu palácio. Severo e com pouca compaixão. Além de exercer o papel de oráculo, ele é também responsável por acolher e julgar os espíritos dos elfos e humanos. É dele a profecia conhecida como Maldição de Mandos que fala também sobre o destino dos Noldor e coisas relacionadas especialmente a Fëanor e sua família.

*11 Tradução feita para o Sindarin. Fornecido pelo fórum The One Ring . net

*12 A Segunda Profecia de Mandos profetiza a última batalha, Dagor Dagorath, com a qual o mundo vai terminar. A Batalha então findará e renovará a existência do Reino de Arda, a Terra, e todos os Poderes do Oeste voltarão a ser jovens, e os Elfos voltarão a despertar, sem as lembranças de sua vida passada.

*13 Ëa - significa "aquilo que é"

*14 Elanor - significa Estrela do Sol. Nome sugerido por Frodo e dado a uma das filhas de Samwise Gamgee. Também é uma flor amarela de cinco pétalas que lembra uma estrela.