Passou as mãos pelo cabelo. As duas, mais de uma vez. Ainda não havia os tocado, e pensou por alguns instantes que não fosse real. Não até sentir a maciez dos fios, tão normais, e a cor que de nada tinha de familiar. É estranho, extremamente escuro, e não apenas no sentido literal. Seus fios estavam negros como uma noite sem lua ou estrelas, e assim também estava seu coração. Ele afundava no sombrio órgão todas as vezes que olhava. Olhava suas mãos, seus pés, suas roupas, suas unhas, seu quarto. E o pior: sua face. Olhar para ela doía como queimar no inferno. Todas as vezes que acontecia, sua face sorridente se contorcia em ódio, medo e dor. Muita dor.

Agora, porém, olhar-se em um espelho não parecia doer tanto. Não era algo natural, mas deveria se acostumar com aquilo, teria de viver assim começando de agora. O rapaz não conseguiria sobreviver sendo quem era antes, sem poder olhar para o próprio rosto. Não merecia aquela vida. Ao menos ele achava que não. Mordendo o lábio inferior com certa dúvida, pensou no que a família diria. Provavelmente enlouqueceriam, o fariam voltar para a cor natural e tão característica, mas ele não o faria. Estava convicto disso, não importava o que dissessem e o quanto reclamassem. Que se acostumassem com os fios negros acompanhando seus olhos verdes e pele pálida. Pálida demais nos últimos nove meses; parecia prestes a cair de seu corpo a qualquer segundo. Talvez pudesse cair, e ele fosse junto. Nove meses. A constatação foi como um soco em seu estômago. O tempo de uma gestação. O tempo que levara para que ele finalmente tentasse fazer algo. Como havia passado tanto tempo? Tantos dias, semanas... Pareciam nove anos.

O garoto, quase homem, respirou fundo e decidiu parar de encarar o espelho frio. Sabia que estava frio, porque de alguma forma sua testa havia parado nele, a respiração ofegante embaçando tudo o que ele devia estar vendo mas não via, á névoa que o separava da realidade desde que... Desde que acontecera. O coração do moreno (tão recém feito) parou por um tempo que ele preferia não contar. Por um tempo que ele não queria contar. O coração dele não era o frio. O coração dele não devia parar. Não podia parar.

Olhos fechados, dentes trincados, mãos que tremiam ao irem, juntas, para a maçaneta. Abrir aquela porta era o ultimato. Não haveria volta, e parecia muito difícil. Seus olhos foram para a maçaneta envolta em mãos suadas e tão cheias de dor quanto seu corpo conseguia exprimir. Havia muito mais lá dentro. Ele abriu. Abriu e seus passos foram pesados ao descer a escada, cada degrau como um precipício, o fazendo cair tantas vezes que ao chegar ao térreo, pensou estar morto, e quando percebeu que não estava, agradeceu por ter sobrevivido, embora algo bem dentro de si lamentasse o fato. Ergueu a face, e a mãe o vislumbrou da cozinha, já chamando seu nome com a doçura habitual naqueles tempos, mas interrompendo aquele suave murmurar com um grito agudo, a panela cheia de algo que esparramou-se pelo chão ao cair com estrondo, quebrando-se em centenas de pedaços. O menino achou que se parecia com seu coração.

"O QUE VOCÊ FEZ? O QUE FEZ COM VOCÊ MESMO? QUAL A RAZÃO DISSO, POR QUÊ?" Escutou o garoto, sua coragem se esvaindo do corpo como um balão estourando ao se chocar com um mar de espinhos. A cabeça pendeu do pescoço, de repente pesada demais, de forma que tudo o que podia ser visto era a raiz negra e falsa. Ele era uma sombra do que já fora. Uma sombra horrível que tomava conta do que já chamara de felicidade, do que já chamara de vida. A mãe se calou, porém, quando um escutou um pequeno murmúrio, lamento. Seu filho, seu doce filho... "Eu não conseguia parar de pensar que era ele no espelho". Ah, seu pequeno Jorge.