Estou voltando para casa a pé. Precisava andar naquele dia de verão, para logo a minha mente devanear.

Quis o destino que eu conhecesse aquele menino alto e esguio, moreno de olhar heterocromático misterioso, de jeito quieto. Tão diferente de mim, de altura mediana e meio parrudo, loiro de olhos acinzentados que nunca conseguiram ter a capacidade de dissimular e de uma proatividade que beirava à ansiedade. Você logo foi apelidado na Academia Militar de feiticeiro. O tempo passou e num grande exemplo de superação, tornou-se juntamente comigo, um dos mais fabulosos almirantes que o Império já vira. Os pilares gêmeos como nos chamavam.

Suas confissões em estado altamente etílico, num flagrante contraste de seu estoicismo típico, nunca me passaram despercebidas. Só mesmo as taças de vinho para fazer com que você abrisse o seu coração sofrido. Você sempre se amaldiçoava por não ter tido quem o amasse. Entendia parte do seu sentimento, embora não corroborasse o seu ódio dúbio as mulheres, pois suas noites não raro eram entre um par de pernas. Se não fossem minhas reprimendas, num estilo quase paternal, você teria se afundado ainda mais na sua dor a ponto de tirar a própria vida. É inevitável pensar, mas talvez a nossa amizade fosse o grande motivo e elo que ainda te mantinha preso a vida.

Até você ser vítima cruel dos boatos plantados por Lang e Oberstein.

Ninguém será capaz de me convencer de que você se rebelou contra o Kaiser. Você não faria isso. Mas como bom estrategista que era, viu nesse emaranhado de mal-entendidos e boatos, o momento perfeito para ter o álibi perfeito para dar um fim a sua vida triste e sofrida. Em batalha. Você tinha absoluta certeza de que não tinha nada a perder. Engano seu. Você era meu amigo antes de qualquer coisa. E fiz tudo que esteve ao meu alcance para impedir o massacre que saiu daquele campo de batalha. E o que eu vi em seus olhos naquela nossa última conversa foi atrevimento misturado com resignação. Você me dizia com seu olhar que se sentiria honrado em morrer pelas minhas mãos se assim quisesse o destino. Mas eu não quis atingir a Tristan porque, se você morresse, eu mataria simultaneamente uma parte importante de mim.

No fim das contas cheguei tarde para te ver com vida pela última vez. Senti muitas coisas naquela sala. Dor, revolta, tristeza, raiva. Mas quando vi a garrafa e os dois copos de whisky sobre a sua mesa, me esperando, apenas a saudade e as lágrimas tomaram conta do meu coração e de meus olhos. Sentimentos que preenchem todos os momentos em que eu me lembro de você. Emotivo que sou, meus olhos inevitavelmente se enchem d'água e as lágrimas descem quentes e silenciosas. Eu respiro fundo.

Finalmente estou defronte ao portão de casa. As primeiras estrelas começam a despontar no horizonte. Enquanto você me guarda aí de Valhalla brindando com uma taça de vinho na mão, eu labuto aqui em Phezzan como Ministro de Assuntos Internos. E vou te confessar que não é um trabalho fácil. É nessas horas que tenho saudade de ser Almirante. Cruzo os jardins de rosas amarelas e entro em casa. Na sala de estar está o nosso pequeno, a parte que você deixou para mim, dormindo exausto no colo de Evangeline. Nos olhamos e sorrimos. Ela acaricia rosto dele me dando um sorriso caloroso. Eu me aproximo e a beijo. A família que eu e Eva sempre sonhamos estava completa. Olho novamente o nosso pequeno. É a sua cara. Até o timbre de voz dele tem algo de seu. Meus olhos marejaram e as lágrimas caem. Por ele e por você. Querido amigo, mesmo que você não esteja mais neste mundo, saiba que agradeço todos os dias por você ter me deixado sua lembrança mais sublime. Certamente, um dia, ele há de saber o quão honrado você foi. Do início ao fim da vida.