— Maia, pode esperar um instante? – o professor de sociologia pediu enquanto juntava seus papéis sobre a mesa.
Me sentei na carteira da frente vendo os outros alunos deixarem a sala, incluindo minha amiga Rebecca que me lançou um olhar curioso antes de sair. Pensei em todos os motivos para o professor querer falar comigo, nenhuma das possibilidades parecia boa. Comecei a ficar nervosa, a sala rapidamente ficou vazia sobrando apenas eu e o senhor Moura.
— Preciso que me faça um favor, você é monitora não é?
— Sim – Eu ajudava dando aulas de reforço para os alunos com notas baixas, mas somente em biologia.
— A escola não tem alguém disponível para a monitoria da minha matéria e tem um aluno que precisa desesperadamente de ajuda. Será que você pode ajudá-lo?
— Claro – respondi a contragosto. Não queria assumir mais um compromisso, mas se fosse só um aluno não seria tão difícil.
— Não entendo qual é o problema, eu sou um bom professor, não sou?
Concordei.
— Por que é tão difícil pra alguns aprender? O nome dele é Caleb, não esqueça de falar com ele.
O professor juntou suas coisas e saiu da sala. Nem me deu tempo de dizer que aquele nome não me remetia a nada, eu não lembrava de nenhum aluno chamado Caleb. Talvez fosse melhor começar a prestar atenção na chamada em vez de ficar jogando paciência no celular. Encontrei Rebecca no corredor, ela me esperava para ir ao refeitório.
— Você sabe quem é Caleb? – perguntei.
— O aluno novo. – Ela torceu o nariz. – Chegou faz mais ou menos um mês. O que tem ele?
— O professor me pediu para ajudá-lo na matéria.
Ele chegou tem um mês e nós estávamos no meio do ano letivo, isso provavelmente justificava o desempenho ruim dele.
— Como ele é? – questionei para ver se lembrava de algo.
— Você não viu mesmo? – Ela fez uma careta.
— Parece que não gostou dele.
— Ele é o cara calado que fica no fundo da sala, usa roupas descoladas e anda exalando um ar de superioridade.
— Falou com ele alguma vez?
Sentamos uma de frente para a outra com as bandejas cheias de comida. A cozinheira carrancuda não sabia o que era meio termo, sempre colocava comida demais nas bandejas e quando alguém pedia para colocar pouco ela não botava quase nada. Fiz esse pedido uma única vez, terminei de comer em menos de dez minutos e continuei com fome, nós não tínhamos a opção de repetir então fiquei o resto das aulas sentindo o estômago roncar, depois desse dia nunca mais reclamei da montanha de comida que ela colocava, mesmo que sempre deixasse sobrar.
— Não – Rebecca respondeu minha pergunta.
— As aparências costumam enganar – ressaltei.
— Olhe por si mesma. – Ela inclinou a cabeça para o lado rapidamente.
Olhei para o lado onde um garoto comia sozinho em uma mesa com mais três lugares vazios. Usava uma camisa cinza com o nome de uma banda antiga e uma calça jeans preta, sua postura estava relaxada e ele não tirava os olhos de um livro que segurava na mão esquerda. Seus cabelos eram loiros como os meus, ele era alto e um pouco forte.
— Ele está lendo, não deve ter um caráter tão ruim assim – falei ainda observando ele.
— Não dá pra pedir pro senhor Morais arrumar outra pessoa? – ela falava sério.
— Por qual motivo? Se eu tiver qualquer problema com ele posso pedir para outra pessoa fazer isso. Mas tenho que tentar antes.
Rebecca suspirou alto e voltou a comer, não disse mais nada. Eu até entendia a preocupação dela, aquele tipo de garoto geralmente era uma fonte inesgotável de encrencas, mas nosso contato seria breve e com o único intuito de fazê-lo aprender sociologia, não tinha porquê ela ficar daquele jeito. Só percebi que continuava encarando o garoto quando ele pareceu sentir meu olhar e se virou na minha direção. Imediatamente desviei o rosto sentindo minhas bochechas arderem.
Passei o resto do tempo na escola tentando não olhar para o aluno novo em todas as aulas, eu tinha a impressão de que ele sabia que eu o observava por mais discreta que tentasse ser. Me perguntei se o professor Morais havia falado com ele sobre a necessidade das aulas de reforço, se ele sabia que eu seria sua monitora. Rebecca ainda parecia chateada e eu ignorei ela da mesma forma que ela fazia comigo, aquela reação não tinha sentido, eu já ajudava outros alunos e ela nunca ficou aborrecida com isso. Éramos amigas desde o início do ano, quando as aulas começaram e eu não recordava de ter brigado com ela durante esse tempo, não podia acreditar que nossa primeira briga se daria por um motivo tão besta. Pensei em procurá-lá na hora da saída para pedir desculpas, embora não soubesse exatamente pelo que me desculpar, acabei optando por ir atrás de Caleb e combinar o melhor dia e horário para o reforço.
Eu o segurei pelo braço em frente ao portão do colégio, ele carregava uma mochila preta de couro presa em seu ombro por uma das alças. Ele se virou assim que sentiu meu toque, seu rosto não esboçou nenhuma reação, olhei por alguns segundos em seus olhos cor de mel antes de falar.
— O professor Morais me pediu para ajudá-lo em sociologia.
Ele baixou a cabeça parecendo constrangido.
— Então ele ficou mais assustado do que eu imaginei com o resultado do meu teste – falou.
— Mas isso é compreensível, você chegou a pouco tempo e tem muita matéria acumulada. Sem falar nas outras disciplinas, é difícil acompanhar, qualquer um teria problemas.
Não sei por que comcei a tagarelar feito uma calopsita doida. Ele estava mal por ter recebido uma nota baixa e eu não gostava de vê-lo daquela forma. Era do meu feitio tentar animar os alunos quando eles tiravam notas ruins e tinham a tendência de se culpar, e se acharem incapazes. Todo mundo é inteligente, todo mundo é capaz, você teve um momento ruim mas não significa que você seja ruim, era o que eu costumava dizer. Quando Caleb ergueu o rosto e sorriu para mim eu soube que tinha valido a pena. Às vezes, quando você mostra que acredita na pessoa ela passa a acreditar em si mesma.
— Obrigado.
— Precisamos marcar um dia para os estudos, podemos ficar na biblioteca da escola.
— Certo, eu tô livre nas quartas depois da aula.
Alguém buzinou do lado de fora, havia um carro preto estacionado na rua, os vidros eram escuros por isso não pude ver quem dirigia.
— Tenho que ir – Caleb disse correndo em direção ao carro.
Fiquei com um sorriso convencido no rosto até lembrar que nas tardes de quarta eu costumava praticar handebol com a Rebecca. Pelo menos agora ela teria uma boa razão para ficar chateada comigo.
