Bellatrix ainda era Black, à época. Na verdade, nunca deixaria de o ser. Lestrange viria apenas a particularizá-la, posteriormente. E de olhos vidrados num homem de corpo e alma incompletos, ela pensaria: "Foi apenas para isso que esse sobrenome serviu".
Ainda era Black, e por muito tempo isso bastou. Mas seu ódio já quase sobrepujava o nome, desde cedo. Black sempre fora o mínimo. Negra era a morte, que por si só era apenas interrupção. Negro era o poder, sóbrio e altivo. Mas poder não era tudo. O que importava era o sangue, a pureza e a força do sangue, e o sangue era vermelho. O prazer indescritível de contemplar a dor... A dor era vermelho-sangue, o sofrimento nos rostos exangues e ofegantes de quem acabava por se tornar, por força maior, sua vítima. Sua reação sempre seria a mesma: olhos faiscantes, um sorriso satisfeito, as gargalhadas que tinham mais vida do que ela própria. A sensação quase orgásmica do tremor arrepiante no braço que segurava a varinha. O modo como murmurava sua maldição favorita, como se sussurrasse ao ouvido de um amante.
"Crucio."
– Bella!
Foi o grito horrorizado de uma garotinha de cabelos negros que não era senão uma versão menor e menos expressiva de Bellatrix. Andrômeda se deteve um instante em choque na porta do quarto, fitando a irmã com terror, antes de ir socorrer o gato que se contorcia no chão; as pupilas quase redondas de dilatação nos olhos verdes arregalados, de boca aberta sem emitir nenhum ruído – Bellatrix tinha tido o cuidado de silenciá-lo antes com uma azaração. O gato preto tinha todos os pelos do corpo arrepiados.
Andrômeda pegou-o no colo com cuidado, alisando seus pelos com ternura, e apertando-o delicadamente contra si. Aos poucos, ele não parecia mais prestes a morrer.
Voltou-se para a irmã com uma mescla de horror, raiva e surpresa no rosto. Não soube o que dizer, ao fitar o rosto da outra, que parecia transmutado.
Bellatrix tinha nos olhos um brilho insano, e nos lábios um sorriso lascivo que não era próprio de uma menina de dez anos de idade. O braço da varinha pendia, duro e imóvel, e ela ofegava levemente, fixando o vazio. Dera certo. Era a primeira vez que tentava uma maldição. Não suportava mais vê-la apenas nas gravuras dos velhos livros da biblioteca dos Black. Precisava experimentar.
Voltou os olhos para a irmã, ao mesmo tempo com divertimento e desprezo. "Pobrezinha. Se soubesse todas as azarações que esse gato idiota já sofreu…"
– Para quê essa cara, Andie? – perguntou com deboche. – É só um gato.
Andrômeda estava incrédula.
– Você não tem coração, Bellatrix. Se eu fosse você, eu… eu pararia com essas coisas que você faz, isso não pode dar em boa coisa.
E saiu do quarto com o gato aninhado nos braços, sem olhar para trás.
Bellatrix achou graça de a irmã pensar que podia lhe dar alguma lição de moral. "Nem se fosse trouxa seria tão estúpida." Mas, pensando bem, talvez ela não tivesse mesmo coração. Não lhe fazia falta. E ela sabia que não daria em boa coisa. A intenção era justamente o oposto. A intenção era extirpar as boas coisas do mundo; ela era uma Black. Não sabia exatamente como, mas ela estaria lá quando o caos começasse e as fogueiras de trouxas crepitassem, só para imaginar algo. Se a irmã se referia à loucura, ela se servia ainda mais. A menina sem coração chegou a uma conclusão fácil: a loucura, então, devia vir a ser a sua verdade, algum dia.
Ainda era Black, mas um dia seria Lestrange.
