Título: Lar Fralda Prateada
Autoria: FireKai
Aviso: Esta história foi originalmente postada num dos meus fotologs e passa-se num lar de idosos. A história terá doze partes, cada uma com a sua temática (cada capítulo terá quatro partes).
Nº Total de Capítulos: 3
Sumário: No Lar Fralda Prateada, a vida dos idosos é bastante animada. Desde actividades culturais e físicas, a romances, conflitos e consultas médicas, no lar há um pouco de tudo. Acompanharemos quatro velhotes no seu dia-a-dia no lar e nas suas aventuras.
Lar Fralda Prateada
Capítulo 1: O Lar
Parte 1 – A Arte da Pintura
Numa das salas de convivo do Lar Fralda Prateada, Sílvia Galhardas, uma das animadoras do lar, alta e de cabelo castanho, estava a caminhar pela sala. Mais duas animadoras faziam o mesmo. Nesse dia, a actividade era pintura.
A sala estava cheia de bancos, cavaletes, folhas e pincéis. Alguns dos velhotes que tinham querido participar naquela actividade de pintura estavam entretidos com o seu trabalho.
Judite Bezerro, uma velhota baixa e com cabelo grisalho, estava a dar uma pincelada com bastante cautela. Judite estava a pintar um campo com flores e não se queria enganar. Mas de repente, Leonilde Matias pôs-se ao pé dela.
"Ena, que pintura tão bonita!" exclamou Leonilde.
Assustada pela aparição súbita, Judite mexeu o pincel sem querer e fez um risco enorme na tela.
"Ai, não! A minha pintura!" queixou-se Judite.
"Pronto, deixa lá. Também não estava assim tão bonita."
"Ainda agora tinhas dito que era bonita."
"Pois, menti."
Judite lançou-lhe um olhar aborrecido e começou a tentar corrigir o erro da pintura. Leonilde, faladora, algo vaidosa e que dizia tudo o que lhe vinha à cabeça, aproximou-se de Alcino Barata, um velho calvo e com um grande bigode. Estava sempre aborrecido e a rezingar.
"Então Alcino, não estás a desenhar nada?" perguntou Leonilde.
Alcino estava de braços cruzados, olhando para a sua tela, ainda em branco.
"Não gosto de pintar. Portanto não pinto! Querem obrigar-me, mas eu não cedo! Não vou pintar nada." disse Alcino.
"Ó Alcino, mas tu inscreveste-te nisto porque quiseste. Era uma actividade voluntária."
"Mudei de ideias. Não posso mudar de ideias? Estamos num país livre!"
Leonilde revirou os olhos e voltou para o seu lugar e para a sua pintura abstracta que não era mais do que uns salpicos de tinta. Entretanto, Sílvia estava a olhar para a pintura de Nicolau Ramos, um velho bem-posto e um grande engatatão e mulherengo.
"Ó senhor Nicolau, diga-me lá o que é que o seu desenho representa, por favor." pediu Sílvia.
"Representa uma mulher a banhar-se nas águas de um lago."
"Uma mulher? Então mas isto é uma pessoa? É amarela e se isto é a água do lago, está um bocadinho estranha, porque é roxa."
"Ora, a água está imprópria para consumo. Contaminada, porque uma fábrica mandou resíduos para o lago. A mulher como não sabe, banhou-se, ficou doente e por isso é que está amarela."
"Ah, estou a ver... bom, cada um com as suas ideias sobre a arte..."
"Sabe, a arte interessa-me. Isso e muitas coisas, aliás. Li muitos livros, mas isso foi no passado."
"Então e não lê agora? Devia fazê-lo."
"Sabe, é que eu um dia li que fumar era mau e portanto deixei do fumar. Mais tarde li que beber fazia mal e deixei de beber. E depois, li que o sexo era mau."
"E então?"
"Então, deixei de ler."
Sílvia revirou os olhos e acabou por se afastar dele, indo para ao pé de Nicolau. Tentou convencê-lo a tentar pintar alguma coisa, mas ele não quis.
"Já disse que não pinto nada."
"Pronto, você é que sabe. Mas não é preciso ser tão cabeça dura quanto a isto." disse Sílvia.
"Cabeça dura? Eu? Malvada, a insultar-me." disse Nicolau. "Já parece quando eu era pequeno e uns rapazes gozavam comigo e diziam que eu era cabeçudo."
"Ai sim, coitado. Então, mas não ia atrás deles?"
"Eu bem queria, mas eles metiam-se em ruas muito estreitas!"
Entretanto, Leonilde tinha ajeitado a sua pintura e conseguira pintar uma espécie de bicicleta. Quando Sílvia se aproximou, acenou afirmativamente.
"Nota-se que é uma bicicleta, apesar de ter aqui vários borrões de tinta."
"Eu sei, eu sei, Sílvia." disse Leonilde. "Mas pronto, esta bicicleta representa o meu neto. Foi-lhe oferecida no último aniversário dele."
"Ai sim? Ele deve ter ficado muito contente."
"Ficou, sim. Até se pôs a fazer habilidades na bicicleta. Primeiro começou a dizer que conseguia andar nela sem as mãos e conseguiu. Depois começou a fazer habilidades sem os pés e as mãos e não se calava. Depois é que foi o pior."
"Então, o que é que aconteceu?"
"Caiu da bicicleta e espatifou-se todo. Eu ainda tive de me rir e disse-lhe, olha, agora vê lá se consegues andar na bicicleta sem os dentes!"
Leonilde começou a rir-se de seguida. Sílvia lançou-lhe um olhar estranho e afastou-se para junto de Judite, que conseguira reparar um pouco da sua pintura.
"Está muito bonita a pintura, dona Judite."
"Obrigada." disse Judite, sorrindo. "Faz-me lembrar a minha infância."
"Ah, vivia no campo com a sua família?"
"Não, mas um dia fomos acampar e perdemo-nos e só quatro dias depois é que nos encontraram. Tivemos de comer flores para sobreviver."
Sílvia achou melhor dar por terminada aquela actividade. Os velhotes já tinha mostrado todos que, mesmo que não soubessem pintar, eram todos grandes artistas.
Parte 2 – O Vírus dos Computadores
Tinha-se passado cerca de uma semana desde a actividade de pintura no Lar Fralda Prateada. Nessa tarde, Sílvia e as suas duas colegas animadoras estavam na sala dos computadores que o lar possuía.
Vários velhotes estavam à frente dos computadores, a aprenderem sobre as novas tecnologias. O médico do lar, o doutor Virgílio Flora, um homem de cerca de quarenta anos, que ia ao lar três vezes por semana, para ver se todos os idosos estavam de boa saúde, ia a passar perto da sala e espreitou para lá. Sílvia veio ter com ele à porta da sala.
"Olá doutor." disse ela.
"Olá Sílvia. Então está a ensiná-los a mexer nos computadores?" perguntou ele.
"Sim, isso mesmo. Para alguns está a ser fácil, mas para outros nem por isso. De qualquer maneira, é uma diversão."
"Estou a ver que sim. Bom, tenho de ir dar as minhas consultas da tarde. Até logo."
Sílvia acenou enquanto o médico se afastava e depois voltou para perto dos velhotes. Judite e Leonilde estavam sentadas ao lado uma da outra. Leonilde era quem estava a comandar o rato e o teclado.
"Isto agora é tudo uma maravilha. Nesta tal de internet, encontra-se tudo. Até se pode conhecer novas pessoas e tudo." disse Leonilde.
"Eu não gosto muito disso. Sou mais à moda antiga. As cartas de amor agora parecem que são coisas do passado e não gosto disso."
"Ah, deixa-te disso, Judite. É preciso inovar. Eu se calhar ainda me registo num destes sites de encontros, a ver se encontro um velho jeitoso para mim." disse Leonilde, abanando a cabeça. "Hoje em dia é assim que se faz. Ainda me lembro do meu primeiro namorado. Conhecemo-nos num dia e no outro já estávamos a namorar. A minha mãe é que não ficou nada contente."
"Pois claro. Então se se conheceram assim, não sabiam praticamente nada um sobre o outro."
"Sim, isso é verdade. A minha mãe perguntou-me se eu gostava do Tozé e eu disse que sim. Eu disse-lhe que ele me chamava gatinha e coelhinha." explicou Leonilde. "E a minha mãe disse-me que o devia deixar. É que a minha tia também começara assim e ao fim de alguns anos, os animais foram crescendo e o marido já lhe chamava vaca e baleia. Portanto, deixei o Tozé. Tornou-se um bebedolas e morreu atropelado anos mais tarde, coitado."
Enquanto isso, Alcino e Nicolau estavam também perto de um computador. Nicolau estava já a navegar facilmente na internet, enquanto Alcino estava de braços cruzados, a olhar com desconfiança para o computador.
"Estas modernices são coisa do demónio!" exclamou Alcino. "Quem inventou isto era com certeza associado ao diabo! Onde é que já se viu, esta coisa da intermete? E chamar a esta coisa rato. Eu não gosto nada de ratos!"
"Ó Alcino, tu não gostas de nada e estás sempre a reclamar." disse Nicolau. "Mas isto da internet é do melhor que há. Podemos procurar aqui muita coisa. Saber coisas sobre política, história, mulheres. Muita coisa!"
"Ai sim? Então onde é que fica a Inglaterra?"
"Ora, fica aqui nesta terceira página que aparece no motor de busca."
Alcino barafustou novamente, dizendo que aquilo era anti-natural. Enquanto isso, Sílvia andava pela sala e viu o velho Terêncio a olhar para o chão.
"Senhor Terêncio, perdeu alguma coisa?" perguntou ela.
"Sim, perdi um caramelo." disse o velhote, ainda a olhar para o chão.
"Esqueça isso. Vá, concentre-se no computador, para aprender a navegar na internet. O caramelo não tem importância."
"Tem sim senhora! É que este caramelo tem os meus dentes agarrados a ele!"
Sílvia apressou-se a ajudar o velho Terêncio a procurar a sua dentadura com o caramelo. Pouco depois, já era Judite que estava a mexer no computador. Leonilde, aborrecida, via enquanto Judite pesquisava sobre receitas.
"Ó Judite. Receitas não têm piada nenhuma, mulher."
"Têm sim. Adoro receitas e cozinhar. Pena que agora não o façamos aqui no lar."
"Eu não tenho pena nenhuma. Nunca gostei de cozinhar. Sempre gostei de ir almoçar e jantar fora. Agora até me estou a lembrar da última vez que fui jantar fora, com o meu filho mais novo." disse Leonilde. "Fomos a um restaurante caríssimo. Os preços eram um roubo. O meu filho até perguntou ao empregado se não faziam descontos para colegas."
"Mas eu não sabia que o teu filho mais novo tinha alguma coisa a ver com restauração."
"E não tem. É ladrão!"
De volta a Nicolau e Alcino, Alcino levantou-se do seu lugar.
"Vou-me embora. Não percebo nada de computadores." disse Alcino.
"Então adeus."
Quando Alcino se ia a afastar, espirrou. Irritado, virou-se para Nicolau.
"Vês, eu bem te disse que isto era coisa do diabo! Já estou infectado com algum vírus do computador!"
Parte 3 – Consultas aos Idosos
Três dias depois da actividade de introdução às novas tecnologias, o doutor Virgílio Flora estava no pequeno consultório que tinha no Lar Fralda Prateada, a dar mais algumas consultas.
Naquele preciso momento, o médico estava a atender Alcino, que, maldisposto como costume, estava a refilar.
"Eu nem gosto muito de ir ao médico, se é que quer que lhe diga. Isso de andar a tomar imensos medicamentos é só para esta gente nova, que acha que com comprimidos resolve tudo." disse Alcino.
"Então porque é que veio aqui hoje, senhor Alcino? Ainda só o tinha atendido uma vez e já foi há algum tempo."
"Então é assim, eu tenho 75 anos e queria saber, baseando-me na sua opinião, se acha que eu vou chegar aos 80 anos."
"Hum... diga-me, você fuma?"
"Não, não fumo. Nunca fumei."
"Você bebe?"
"Não, deixei-me disso há algum tempo."
"Então e sexo, faz sexo?"
"Desde que a minha Florinda morreu, há dez anos, nunca mais quis intimidades com ninguém."
"Ó senhor Alcino, se você não bebe, não fuma, nem tem sexo... diga-me lá, para que é que quer viver até aos 80 anos?"
Alcino começou a barafustar, dizendo que já não havia respeito e foi-se embora do consultório. De seguida entrou um casal de velhotes. Fora do gabinete, sentados nalgumas cadeiras, outros velhotes esperavam a sua vez. Era o caso de Judite, Leonilde e Nicolau.
"Sabem, hoje tive notícias de uma amiga minha que se suicidou. Uma conhecida ligou-me a dizer o que tinha acontecido." disse Leonilde.
"Ai credo! Que horror! Suicidou-se?" perguntou Judite. "Isso é horrível."
"Então mas ela estava doente? Depressiva?" perguntou Nicolau.
"Sim, era muito depressiva, coitada. E recentemente tinha-lhe sido diagnosticada uma doença grave. Ela até me ligou a perguntar qual é que era a melhor forma de se suicidar. Eu tentei tirar-lhe a ideia da cabeça, mas não consegui." disse Leonilde. "Portanto, disse-lhe que pegasse numa arma e disparasse um palmo abaixo do seio esquerdo, porque morreria rápido e com pouca dor... pelo menos foi o que li numa revista."
"E a sua amiga matou-se mesmo com um tiro?" perguntou Nicolau.
"Sim, só que pelo que me disseram, ela deu um tiro no joelho." disse Leonilde, abanando a cabeça. "Era mesmo burra. É que ela tinha o peito muito descaído, portanto um palmo abaixo do seio esquerdo, era no joelho esquerdo!"
Nicolau não conseguiu evitar rir-se e a sua dentadura caiu no chão. Enquanto ele a recuperava, o casal de idosos saiu do gabinete do médico.
"Então Marcolina, como é que está o teu Zé?" perguntou Judite.
"O médico disse que tinha duas notícias. Uma boa e uma má." disse a velha Marcolina, olhando para o marido. "A má era que o meu Zé tem arteroesclorose... a boa é que o doutor disse logo que quando ele chegasse à porta para sair, já não se lembrava..."
Ainda abalada, Marcolina acabou por levar dali o marido, com a ajuda de um enfermeiro que apareceu logo de seguida. Judite suspirou.
"A saúde é algo muito frágil." disse ela. "Num dia estamos bem, no outro podemos estar mal."
"Ou mortos." disse Nicolau. "O meu primo Baltasar, coitado, num dia ia muito bem a atravessar a praça, quando de repente surgiram um camião, seguido de duas motas e uma carroça, atropelaram-no e ele foi desta para melhor."
"Coitado. Que descanse em paz."
De seguida, um outro velhote entrou no consultório. Leonilde abanou a cabeça.
"Lá vai o Macário. Sofre de insónias, coitado. Da última vez o doutor Virgílio disse-lhe para contar até adormecer."
"E resolveu o problema do Macário?" perguntou Judite.
"Não. É que, não sei se vocês sabem, ele já foi um profissional do boxe. Portanto, começa a contar, chega ao nove e levanta-se!" exclamou Leonilde. "Portanto, não consegue dormir, coitado."
Judite e Nicolau abanaram a cabeça, em assentimento. Entretanto, Alcino passou no corredor.
"Então Alcino, ainda agora saíste do gabinete do médico e foste na outra direcção e já estás aqui outra vez?" perguntou Nicolau.
"Não posso? Já uma pessoa não pode passear no corredor? Vou até ao gabinete da directora fazer uma reclamação. Não sei ainda sobre o quê, se calhar sobre o médico, mas quando lá chegar, logo se vê."
Os outros encolheram os ombros, já que Alcino praticamente todos os dias ia fazer uma reclamação formal sobre qualquer coisa estúpida e ninguém ligava a isso. Pouco depois, Judite entrou no consultório e o médico receitou-lhe novos comprimidos. De seguida, foi a vez da velha Bertolina entrar no gabinete.
"Doutor, eu preciso de um medicamento para a memória. Por vezes esqueço-me das coisas. Às vezes até me esqueço logo do que tinha dito anteriormente."
"E desde quando é que isso acontece?"
"Isso o quê?"
O médico revirou os olhos e receitou-lhe mais uns medicamentos. E era assim, um típico dia de consultas naquele lar.
Parte 4 – Vida e Morte
Numa das salas de convivo do Lar Fralda Prateada, Judite, Leonilde, Nicolau e Alcino estavam sentados nuns sofás dispostos em círculo e estavam a conversar.
"Pois é, a morte pode acontecer a qualquer pessoa, em qualquer altura." disse Alcino. "E ainda bem. Há pessoas que realmente não fazem cá falta nenhuma e se não morressem, era uma chatice."
"Sim, mas por vezes também há tragédias que nos roubam entes queridos." disse Judite, um pouco cabisbaixa. "Tinha uma amiga minha cuja filha se tinha casado há pouco mais de um ano, quando se deu uma tragédia."
"Então, o que é que se passou exactamente?" perguntou Leonilde.
"O casalinho tinha ido passear à beira rio. Enquanto o marido foi fazer umas necessidades atrás de uma árvore, a filha da minha amiga afastou-se... enfim, o marido foi à procura dela depois. Já não a viu. Um pescador, que não estava muito longe é que soube que ela tinha caído ao rio. Mas não a ajudou, o malvado!"
"Ah, não ajudou a moça. Esse pescador devia ir preso!" exclamou Nicolau. "Então, ela caiu no rio e afogou-se, foi?"
"Sim, foi isso. O marido perguntou ao pescador pela esposa. O pescador disse que a tinha visto e o marido dela disse que então ela não devia estar longe. E sabem o que é que o pescador disse? Ele disse que também achava que não, porque a corrente do rio, nesse dia, estava fraca!"
Leonilde, Nicolau e Alcino acenaram com a cabeça, em reprovação. De seguida, o velho Samuel apareceu a cambalear, agarrado ao peito.
"Socorro! Estou a morrer!" gritou ele.
"Hum, estás a morrer? Então morre longe para não cheirar mal." disse Alcino. "As senhoras da limpeza são muito incompetentes e depois ficas para aqui caído e é um cheiro insuportável e só daqui a mais de um mês é que isto fica bem limpo."
"Realmente, é verdade. Não estão a limpar bem o lar." disse Leonilde.
Judite e Nicolau concordaram. Entretanto, todos começaram a falar de limpezas e esqueceram-se do velho Samuel, que caiu no chão, a estrebuchar. Os outros velhotes que estavam ali perto também não lhe ligaram nenhuma.
"Deixando as limpezas de lado, tenho a dizer que a vida é curta, por isso é que eu quero vivê-la ao máximo e conhecer muitas senhoras. O convívio é importante." disse Nicolau.
"Tu és um grande taradão. Já não vais para novo. Nem me parece que tenhas grande pedalada." disse Leonilde.
"Ora, tenho sim senhora. E se não tiver, tomo uns comprimidos que é remédio santo."
Judite suspirou, pensativa.
"Só eu é que nunca casei e só namorei dois homens na minha vida toda." disse ela. "Tenho pena de não ter casado, ter tido filhos, netos..."
"Eu também nunca me casei." disse Nicolau. "E não foi por isso que fui menos feliz."
"Olha, deixa Judite, lá que os filhos só dão trabalho, os netos são uns chatos e agora só querem saber dos computadores e dos telemóveis e essas coisas." disse Leonilde.
"Deviam ser banidos os telemóveis! E os computadores! E tudo o que tivesse energia eléctrica!" disse Alcino. "Ia ser giro ver estes velhos todos a verem televisão à luz das velas!"
Entretanto, Sílvia entrou na sala de convivo e ao ver o velho Samuel caído no chão, correu para ele.
"Senhor Samuel! Ai credo! Diga qualquer coisa!" exclamou ela.
O velhote balbuciou algo que ninguém entendeu e Sílvia levantou-se.
"Aguente, senhor Samuel. Eu vou chamar o doutor Virgílio, que está cá hoje."
Sílvia saiu a correr da sala de convívio. Judite, Leonilde, Nicolau e Alcino acabaram por olhar para o lugar onde Samuel estava caído.
"Esquecemo-nos dele. Coitado." disse Judite.
"Ah, ele sobrevive. Já teve cinco enfartes e ainda está aí para as curvas." disse Leonilde.
"Querem ouvir uma adivinha que resulta sempre para conquistar as mulheres?" perguntou Nicolau.
"Não!" responderam os outros.
"Eu conto na mesma. O que é que diz a manteiga para o pão quente? Quando passo por ti, derreto-me!" exclamou Nicolau, rindo-se. "E as mulheres ficam todas derretidas com esta tirada."
"Nem todas." disse Judite, revirando os olhos.
Entretanto, surgiram o doutor Virgílio e Sílvia, que entraram na sala a correr e se baixaram sobre o velho Samuel. Assim, já todos os velhotes naquela sala prestaram atenção.
"Ele está muito mal, doutor?" perguntou Sílvia.
"Está mais para lá do que para cá." respondeu Virgílio. "Temos de o levar para o hospital imediatamente!"
"Ai que eu acho que ele já não chega ao hospital." disse Lionilde. "Está muito branco."
"Já nem se mexe." acrescentou Judite.
"É um desperdício de gasolina mandar vir cá a ambulância. Chamem mas é já um carro funerário." disse Alcino.
"Ora, isso não se diz!" exclamou Sílvia.
Entretanto, todos começaram a falar ao mesmo tempo e a discutir. Quando foram a ver, o velho Samuel tinha morrido.
"Bateu a bota, coitado." disse Virgílio.
"Ao menos morreu em paz e em silêncio." disse Judite.
"Silêncio? Estava toda a gente a gritar à volta dele!" exclamou Leonilde.
"Ele tinha uma boa dentadura. Como morreu, eu fico com ela!" exclamou Nicolau.
Continua…
