Analogias
Por Graciela Pettrov
S
A
S
U
K
E
Sakura andava pelas ruas frias da cidade e sua sombra projetava-se à sua frente, iluminada pelos postes adjacentes às calçadas. A brisa noturna salpicava-lhe o rosto deixando as bochechas levemente rosadas e ela puxava constantemente a gola do casaco para evitar essa sensação desagradável.
Após dobrar mais duas vielas a Haruno parou em frente a uma pensão tão simples quanto os demais prédios existentes ali. Adentrou o recinto e quando finalmente se sentiu aquecida tirou o casaco revelando a regata branca de algodão. Na recepção, do outro lado do pequeno balcão, encontrava-se Ino, filha da dona da pensão. A garota lhe ofereceu um sorriso ao vê-la, haviam se torando boas amigas desde que Sakura passou a frequentar o lugar. A Haruno não pôde deixar de perceber a fisionomia cada vez mais frágil da loira. Ela parecia até mesmo indisposta.
— Sakura, você sumiu! — Exclamou a Yamanaka contornando o balcão e indo de encontro à recém-chegada.
— Minha vida anda tão corrida você nem faz ideia — respondeu abraçando-a. — E a escola, como vai?
Ino entortou a boca em desagrado antes de responder:
— Vai bem. Tirando aquela escola chata, os professores tediosos e os alunos de sempre. — Informou fazendo uma careta, mas logo depois sorrindo. Um sorriso que, na opinião de Sakura, era um tanto forçado.
— É só ignorar que tudo se acerta. — A Haruno lhe mandou uma piscadela e um thauzinho já subindo os degraus.
A pensão só tinha dois andares que continham cinco quartos cada. O quarto para o qual ela estava se dirigindo ficava no segundo andar. Depois de atravessar o pequeno corredor parou à frente da porta com o número dez, já quase apagado, e deu uma leve batida. Nenhuma resposta. Bateu novamente. Nada.
Girou a maçaneta e descobriu a porta destrancada, entrou e nada viu além da escuridão, aproximou-se da cama e enfim uma silhueta entrou em sua visão periférica. Seu cérebro demorou dois míseros segundos para distinguir que era Sasuke e o motivo de ele estar naquela posição. Tudo o que Sakura fez foi jogar o casaco em um canto qualquer e ir rapidamente de encontro ao namorado. Ele estava sentado no chão com as costas escoradas aos pés da cama que dava diretamente para a janela. A mesma estava aberta deixando o vento frio tomar todo o cômodo.
Sasuke parecia estar desmaiado, mas assim que a viu, ou melhor, viu um vulto aproximar-se, moveu a cabeça e comprimiu os olhos a fim de identificar quem estava ali. Sua visão estava embaçada e ele não conseguia formular uma frase coerente, só a reconheceu pela voz.
— Sasuke! Está me ouvindo? Você consegue levantar? — Questionou-o a Haruno, aflita com o estado do rapaz.
O Uchiha estava praticamente jogado no chão, as pernas jaziam estiradas e os braços pendiam flácidos, sem forças. No chão, do lado esquerdo de seu corpo havia uma seringa vazia, o líquido que antes a enchia agora corria nas veias do moreno. Mas Sakura não se importou com o objeto, ela estava mais preocupada na tentativa de levá-lo para o banheiro, entretanto, seus esforços foram inúteis, Sasuke era muito maior que ela, e seu corpo parecia mais pesado que o normal. Precisaria de ajuda.
— Eu volto já — informou-o saindo às pressas. Nem desceu todos os degraus, apenas o suficiente para avistar a loira detrás do balcão.
— Ino, pode me ajudar aqui? — Pediu, educada. A loira apenas confirmou, já tinha uma vaga ideia do que se tratava. Não era a primeira vez que isso acontecia.
As duas chegaram ao quarto, Sasuke permanecia da mesma forma. Não movera nada a não ser a cabeça.
— Não consigo levá-lo ao banheiro sozinha — disse.
A Yamanaka apenas confirmou que havia entendido onde a Haruno queria chegar e ambas se aproximaram dele.
— No três. Um... Dois... Três! — E logo o Uchiha sentiu ser carregado.
As duas conseguiram colocá-lo no banheiro. O cômodo era pequeno e ficava ainda mais apertado com três pessoas dentro, e o fato de não haver uma banheira e sim um chuveiro dificultava ainda mais o trabalho das duas. Sakura ficou por trás do namorado e rodeou sua cintura com ambos os braços.
— Eu o seguro e você tira a roupa dele.
Ino assentiu, mas Sakura pode perceber uma leve expressão sobressaltada que a mais nova fez e depois disfarçou rapidamente, ela teria rido se não estivesse na situação em que se encontrava naquele momento.
Deixando os pensamentos bobos de lado, a Haruno levantou a camisa e pôs os braços por baixo dela, a Yamanaka aproveitou para puxá-la e passá-la rapidamente pela cabeça de Sasuke, revelando o braço esquerdo repleto de tatuagens que tomavam desde o pulso até um pouco do pescoço, eram formas, símbolos e padrões variados. Jogou o tecido em algum lugar do banheiro e segurou a barra da calça e sem qualquer cerimônia abaixou-a fazendo a roupa descer até os pés de Sasuke, ela notou a dificuldade de Sakura em sustentar o peso do rapaz e teve a nítida certeza de que se tentasse levantar suas pernas para tirar a calça os dois cairiam.
— Acho melhor sentá-lo no chão. — Sugeriu colocando o braço tatuado de Sasuke sobre seus ombros para dividir o peso com a amiga. A Haruno já ia se abaixando quando Ino a guiou para outra parede, ela não a questionou apenas posicionou na parede indicada pela loira. Sakura agachou-se com cautela puxando o namorado junto e Ino foi soltando seu braço vagarosamente até que os dois estivessem no chão. A Yamanaka também se abaixou e enfim livrou-se da roupa incômoda, deixando Sasuke apenas de cueca. Sakura saiu detrais dele e ficou o segurando apenas de lado para que seu corpo não tombasse para o lado ou para frente.
— Tudo bem, eu consigo o resto. Obrigada, Ino. — A loira percebeu o tom esganiçado da voz da Haruno.
— Tem certeza?
— Tenho.
Ino levantou-se e quando estava saindo do banheiro parou na porta e olhou novamente para Sakura, ela também a olhava.
— Obrigada mesmo. Muito obrigada. — Agradeceu-a novamente seus olhos quase marejando.
— Não foi nada. Se precisar de mais alguma coisa é só me chamar, okay?
Sakura assentiu e a loira se foi.
A Haruno voltou sua atenção para o Uchiha, ele estava no que ela chamaria de semiacordado. Procurou pelo registro do chuveiro e o encontrou acima de sua cabeça. Agradeceu novamente à Ino por tê-los colocado estrategicamente naquela parede.
— Vou ligar a água, tá? Preciso te dá um banho. — Sasuke, obviamente, não respondeu, mas mesmo assim ela girou o registro e a água caiu respingando também em suas roupas. Sem se importar em ser molhada, Sakura despiu-o e o ensaboou de forma cautelosa e dificultosa, sempre tendo o cuidado de não o deixar escorregar para debaixo do chuveiro e/ou sua cabeça ficar muito tempo embaixo d'água. Por um momento ela sentiu os olhos arderem e rapidamente colocou a própria cabeça embaixo do chuveiro.
Enquanto ela dava banho em Sasuke, água e lágrimas banhavam seu rosto.
[...]
Após o banho, o Uchiha parecia mais lúcido e, apesar de ainda estar embriagado e tonto, conseguiu erguer o corpo e voltar para a cama com o auxílio da namorada que o segurava pela cintura. Á passos rápidos Sakura fechou a janela e foi até o guarda roupa pegando uma cueca aleatória de uma das gavetas, durante o curto caminho entre onde estava e a cama tirou a própria roupa encharcada e a jogou junto do casaco.
Sasuke já estava na cama, com os olhos abertos e encarando o teto que parecia rodar. Sentiu a namorada vesti-lhe uma cueca e puxá-lo para que sentasse. Ele tentou falar, mas acabou apenas balbuciando algo sem sentido, foi tudo o que sua língua enrolada e raciocínio lento lhe permitiram proferir.
— Hey, sou eu, amor. Levanta os braços pra eu pôr uma camisa em você. Tá frio. — Falou Sakura carinhosamente, ele o fez com certa lentidão. Depois de vestido ela sentou na cama por trás dele e puxou seus ombros, fazendo-o ficar deitado em seu colo, tudo o que Sasuke sentiu antes de apagar foram carícias em seu cabelo ainda molhado.
[...]
A Haruno encarava a janela, pensativa. Ela não sabia distinguir exatamente o que sentia naquele momento, talvez tristeza por vê-lo naquele estado ou raiva dele por deixar-se ficar naquela situação.
Mas, de qualquer forma, já sabia que aquilo provavelmente voltaria a acontecer. Momentos terríveis como aqueles ocorriam desde antes de ficarem juntos, quando ainda eram apenas amigos. Era ela quem cuidava dele, quem o repreendia, quem dava conselhos, quem o amava... Doía-lhe no fundo da alma perceber que estava perdendo Sasuke para o maldito vício.
Não queria perdê-lo. Não ia perdê-lo.
Com esses pensamentos conturbados Sakura não conseguiu dormir.
[...]
Quando acordou, a primeira coisa que Sasuke viu foi a nada admirável vista que a janela à frente de sua cama lhe proporcionava. A mesma estava fechada, mas devido uma pequena fenda provinda de uma das vidraças quebrada, o vento frio conseguia adentrar no quarto. Uma lufada de ar frio passou pela fissura e Sakura apertou ainda mais os braços ao redor dele. Por um momento, Sasuke se amaldiçoou com todas as forças ao recordar vagamente do desespero da namorada.
Tudo por conta dele.
Fechou os olhos rememorando o momento em que estava com a seringa em mãos, pronto para utilizá-la. Por mais que ele lutasse consigo mentalmente dizendo que não, algo mais forte (ou mais persistente) falava o contrário e lhe dava mil e um motivos inexistentes como pretexto para ele cair de cabeça naquele mundo conturbado.
Sasuke era um fraco e estava ciente disso. Sabia também que jamais ganharia uma batalha contra seu subconsciente, porque era ele ali, era o vício, o prazer do efeito que a substância fazia enquanto corria em sua corrente sanguínea. A sensação era quase mágica, algo que jamais sentira com outra coisa, nem mesmo com Sakura.
Essa constatação o assustava. Mas era a verdade nua e crua, e ele era incapaz de não a enxergar, pois a mesma era sempre esfregada em sua cara toda vez que estava prestes a injetar a droga em suas veias. E o pior de tudo era que ele sempre se lembrava da namorada quando injetava a última gota da seringa e arrependia-se amargamente de fazê-lo.
Não entendia porque ela ainda perdia seu tempo com ele, quando o próprio já havia desistido de si. Desistido de uma luta que ele sabia que sempre perderia. Talvez até entendesse um pouquinho a esperança da garota, afinal quando se conheceram ele não era assim, não mesmo.
Sasuke nunca foi rico, muito menos uma pessoa revoltada com algo ou alguém. Sempre tivera uma vida normal como todas as outras: morava em um bairro comum da cidade, ele e Sakura eram vizinhos e se conheciam desde criança. Frequentavam os mesmos lugares, conheciam as mesmas pessoas, sabiam tudo um do outro, ou melhor, quase tudo. Havia algo interno e extremamente particular acontecendo na casa do Uchiha que a Haruno não tinha o conhecimento: Uchiha Mikoto vivia em uma terrível depressão.
A Sra. Uchiha havia perdido o marido em recente data e apesar de mostrar-se dura e forte perante os demais, quando estava em casa a história era outra, bem diferente. A mulher tentava de tudo para esconder suas amarguras dos filhos, no entanto, não obtinha sucesso. Itachi tinha apenas seus treze anos completos, mas era maduro o suficiente para perceber o que se passava. Com Sasuke não fora diferente, apesar de jovem, com somente oito anos de idade, já entendia a depressão da mãe e o porquê da mesma.
Os anos se passavam e Mikoto afundava-se cada vez mais no poço fundo da desilusão. Itachi praticamente sustentava a casa. E Sasuke, bem, ele não sabia dizer exatamente quando entrou naquele mundo e muito menos o motivo de tê-lo feito, talvez fosse uma forma de fugir da angústia da perda do pai, talvez para esquecer que sua mãe apenas vegetava no mundo, ou até mesmo por vontade própria... Mas a questão é que quando deu por si já havia entrado e não mais conseguira sair. Devido á isso ele afastou-se de tudo e de todos e foi morar em uma pensãozinha do outro lado da cidade, perdeu o contato com a família, com os amigos e com Sakura.
Foram tempos difíceis aqueles, ele mal conseguia dinheiro com os quadros que pintava e vendia nas calçadas dos grandes centros e, do pouco que ganhava, metade ia para o pagamento do aluguel e o resto já tinha destino certo: Heroína. Seu único e avassalador vício.
Até que em um dia normal de rotina ele topou com Sakura. Ela estava simplesmente linda e saudável, da forma que sempre fora. A Haruno quase chorou ao revê-lo, já fazia quase dois anos que não se viam e através dela soube que sua mãe estava internada em uma clínica psiquiátrica e seu irmão fora embora para outro país cursar uma faculdade na qual ganhara uma bolsa de estudos. Ela também disse que Itachi tentara contato com ele, no entanto, não obteve sucesso.
Sasuke ficou feliz pela realização do irmão, sempre soube que (diferentemente dele) o mais velho conseguiria ser alguém na vida. Já sobre a mãe, o Uchiha praticamente fingiu não ouvir o que a garota falara dela, este assunto ainda o abalava.
E depois de tantas coisas pela qual passou jamais imaginaria que estivesse ali, com Sakura velando seu sono, sentido o calor de seus braços envoltos em sua cintura e a respiração quente em sua nuca. Às vezes passava por sua mente que ele não a merecia. Era a verdade sendo novamente esfregada em sua cara.
O Uchiha cautelosamente virou-se para ficar de frente para a garota, ela estava de olhos fechados e por uma fração de segundos Sasuke sentiu-se aliviado por isso. A última coisa que ele queria naquele momento era encarar àqueles olhos verdes cuja dona ele sentia uma enorme vergonha.
Sim. Essa é e sempre será a palavra que descreve com essencial exatidão o sentimento do Uchiha por conta de suas ações. Ela fazia parte dos três principais estágios pelo qual Sasuke passava toda vez que se jogava nos braços da necessidade de entrar no mundo inexato.
Primeiro vinha a euforia, o prazer que a droga lhe proporcionava, este era, sem sombra de dúvidas, o único sentimento bem-vindo por ele, mas era também o que parecia durar menos tempo, pois, tão logo decorrido o tal "prazer descomunal" sua realidade preto e branco de imagens distorcidas e irregulares dava lugar a outro sentimento.
A ira era o segundo e penúltimo principal estágio de se estar sob o efeito da substância ilícita. A raiva de si mesmo, do mundo, de todo ser que respira e da maldita que o fizera sentir aquilo.
Então, depois da enorme vontade de explodir o mundo e tudo que nele habita vem, sorrateiro, o último e pior dos estágios.
Esse sentimento sempre chegava calmo e soturno como se quisesse pegar sua vítima no ato do delito. Na opinião de Sasuke, a vergonha não deveria ser sentida por ninguém, pois não havia coisa pior que sentir pena de si, ver-se ínfimo diante do turbilhão de sentimentos e culpa causadas por ele mesmo. A consciência deveras desagradável de estar cavando a própria cova e a terrível sensação de solidão que o abate. A sensação de que você será o único presente em seu próprio funeral.
E para Sasuke aquele era o pior sentimento devido uma única e incontestável verdade que o Uchiha descobriu por si próprio e, mesmo que ela não tenha sido brutalmente esfregada em sua cara, sentiu-a na pele: O efeito passa, mas a vergonha fica.
E ela estava irredutivelmente presente e tornou-se quase palpável no momento em que Sakura abriu os olhos e eles foram de encontro aos seus, o pegando de surpresa. Ela nada falou, apenas o apertou ainda mais em seus braços e juntou os lábios com os dele em um beijo não colossal, nem arrastado, mas sim urgente, como se ela precisasse daquilo tanto quanto ele.
E era nesses momentos que ele redescobria o porquê de amar sofregamente aquela garota à sua frente. Por muitas vezes repreender-se pelo fato de, inconscientemente, colocá-la em uma lista mental como sendo um de seus vícios. Ele se repreendia por estar totalmente errado em suas percepções, porque já havia milhares de vezes chegado à conclusão não mais que verídica: Ela era mais do que isso. Muito mais.
O efeito que Sakura causava em si era totalmente inverso ao da droga. Ela o fazia perder a vergonha e esquecer-se, em pequenos momentos como aquele beijo, de que ele era apenas mais um verme que estava retardando seu processo de evolução. O fazia simplesmente Sasuke, seu namorado.
Fazia-o sentir vontade não de acabar com o mundo, mas de mudar sua essência para algo que valia a pena estar nele. Ela também era capaz de levá-lo para outro plano, para uma realidade, não preto e branco, mas colorida e com imagens nítidas e bem desenhadas.
Sakura o fazia ver estrelas multicores. Entretanto, apesar de toda beleza policroma que ela o proporcionava sentir, o que ele mais gostava era dos dois pequenos pontinhos verdes que se destacavam numa imensidão cor-de-rosa.
