O cenário é Londres, 1925, época e lugar em que ser assassino em série é moda, as ruas são quase sempre becos úmidos e escuros, as pessoas andam de sobretudo preto e cartola, e mortes grotescas e misteriosas são tão comuns quanto assistir à novelas muitos anos depois. Só que mais interessantes. Mais especificamente, foque em uma casa ordinária, daquelas que você nem passa direito o olho quando vê na rua. Nela vivia um carpinteiro chamado Andrew Shepard, um carpinteiro ordinário, daqueles que você nem cumprimenta quando cruza na calçada, simplesmente ignora a sua existência. Igualzinho como a sua casa. Fora exatamente por isso, aliás, que ele a comprá-la, achou que ela captava sua essência, que o definia como pessoa.
Andrew era cheio de imaginação e de um perfeccionismo fora do comum em seu trabalho; como Da Vinci fazia de tudo um pouco, era ainda pintor, arquiteto, escultor e escritor, um verdadeiro homem multiuso, a personificação do Bombril. Ele possuía uma rotina severa: pintava seu afresco após tomar seu café, parava por volta das onze para confeccionar um berço para sua vizinha chamada Lisa, almoçava com ela, ia para o centro trabalhar na construção de uma biblioteca nacional, por volta das cinco tomava um sorvete com sua querida vizinha, as sete tomava seus remédios, as oito jantava e saía na rua vestido de preto para assustar transeuntes desprevenidos, e as onze voltava para casa, onde dormia ao lado de sua esposa. O nome dela era Rose Shepard, mas esse é um detalhe extremamente desinteressante, pelo menos para ele. Cada dia que passava o carpinteiro gostava menos e menos de Rose, o seu cabelo imundo, sua aparência suja, sua sopa de galinha made in esgoto, tudo nela o irritava profundamente. Então, como qualquer outra pessoa da época, e lugar, pensou em matá-la.
No entanto, ele não se sujeitaria a ser tachado como um criminoso qualquer. Não! Ele era Andrew Shepard! Seus antepassados do futuro, em uma realidade paralela em que o tempo é fluído, foram heróis intergaláticos! Ele teria que ser lembrado, estudado, produziriam filmes no futuro dirigidos por um maluco chamado Hitchcock, teriam que contar a sua história. Ele deveria cometer o crime perfeito. E para tal, começou a escrever idéias que vinham na sua cabeça em um livro, o qual, com o passar do tempo, virou um macabro diário de um assassino. Ele tinha certeza que, estudando cada um individualmente, alguma hora encontraria o método perfeito.
Mais de noventa modos diferentes de matar sua mulher foram escritos e detalhados minuciosamente, passo a passo. Andrew, basicamente, se prendia em como se livrar do corpo após o ato, era sempre a parte mais capciosa do crime: queimá-lo ou comê-lo eram as soluções recorrentes, todavia usualmente descartadas devido aos possíveis efeitos colaterais. Não obstante, ele também fazia questão de que sua mulher sofresse das maneiras mais absurdas e horrorosas possíveis, antes de finalmente acabar com sua vida: ia de cortar os peitos e cozê-la, de cabeça para baixo, em seu novo Grill George Foreman, a espancá-la até a morte com um cotonete sujo e usá-la como massa de pizza. Curiosamente, produzir tortas de carne e cantar sobre o assunto nunca passou por sua doentia mente. No fim, o carpinteiro decidiu simplesmente derrubá-la da escada e dizer que foi um acidente, isso nunca falhava ou ficava velho, e marcou a data certa para o ato.
No fatídico dia a polícia encontrou o corpo no chão com uma faca encravada nas costas. Andrew fora atacado desprevenido por sua mulher, que havia descoberto o diário no dia anterior, enquanto fazia a sua faxina de rotina.
Essa foi a história contada aos juízes que a inocentaram sob a alegação de legítima defesa, ao serem apresentados aos horrores contidos no diário. Rose viveu por mais vinte anos, quando morreu em um assalto.
Recentemente, um grupo de estudantes, por causa de um inocente trabalho de grupo, analisando o caso e imagens das evidências, acabou descobrindo que a letra no diário pertencia à esposa.
Esta história não envolve nenhuma dessas pessoas.
Watson estava apreensivo, o telefonema havia finalmente sido feito, de alguma forma ele conseguia prever a inevitável e impiedosa cadeia de eventos que se seguiria. E ele faria parte dela. Muito desgostosamete, se lhe perguntassem a opinião.
– Boa tarde, Watson. Deseja um cafezinho? - o cara do cafezinho perguntou.
O médico legista, que nas horas vagas gostava de bancar o detetive, ficou tentado, a cafeína possuía poderes mágicos que iam além da vã filosofia. Porém, não era hora de cafezinho, fora esse tipo de atitude que o levara àquela situação. Ele deveria resistir. Ele tinha que resistir.
– Claro, mas com adoçante.
– Como sempre.
Ele seguiu até o escritório do delegado com o cafezinho queimando sua língua. Sherlock Holmes era o novo delegado de Lugar Nenhum, possuindo uma carreira invejável e um hálito insuportável por causa das constantes tragadas com seu fiel cachimbo. No momento, sentava em sua cadeira cinza favorita, com rodinha, confeccionada por monges dominicanos porosos, fumando seu cachimbo. Refletia sobre o caso do assassinato do Papai Noel, e como ele deixara tudo aquilo chegar aquele ponto.
– Holmes, você não vai acreditar quem acabou de ligar: Alfred Psicose! Esse novato não desiste mesmo. Dessa vez ele alegou que estava preso em uma mansão no meio da Floresta Escura e Tenebrosa. A parte perturbadora disso tudo é que deu tempo de rastrear a ligação e o endereço surpreendentemente confere. – Watson avisou, parado na porta. Achou que conseguira, a nível profissional, disfarçar que não dava a mínima importância para a ligação. Sarcasmo sempre foi um dispositivo útil nesses momentos.
– Já não era sem tempo.
– O que você quer dizer?
Holmes se levantou e abriu uma gaveta de sua escrivaninha, retirando uma fita de vídeo.
– Alguém mais está sabendo disso? – perguntou.
– Toda a unidade. – Watson riu.
– Bom. Reúna um pequeno esquadrão sob meu comando e me encontre no hangar dois daqui a três horas.
– Desde quando temos um hangar dois aqui? Não temos nem o um.
– Eu recebi uma verba extra, semanas atrás, e mandei construir. Achei que qualquer delegacia precisava de um hangar dois para ser levada a sério.
Watson preferiu não se aprofundar no assunto. De vez em quando seu colega tinha uns devaneios mirabolantes e nesses casos a melhor coisa a se fazer era sorrir e concordar com a cabeça. Ele sorriu e concordou com a cabeça.
– Mas o que é isso? - Watson perguntou apontando para a fita de vídeo. No entanto, ele já sabia o que aquilo era, e mais ainda, o que aquilo significava.
Holmes fez uma cara misteriosa, lançou um fulminante olhar misterioso, e respondeu perspicazmente:
– É elementar, meu caro amigo. Muito elementar. Isso é uma fita de vídeo.
E guardou o cachimbo.
