Da janela do trem, pude avistar a estação Westbahnhof de Viena. Primeira vez que venho à Áustria, aliás, primeira vez que retorno à Europa em mais de dez anos e sinto um arrepio percorrer toda a minha espinha, como um mau presságio. Antes disso, passamos por Londres e Praga, mas nesses lugares eu me senti bem, não senti essa sensação esquisita que agora perturba meu pensamento. Meu marido, Samuel parece perceber, pois pega a minha mão direita e a segura com força. Entendo que sua intenção é a melhor possível e esboço um sorriso tímido, o mesmo sorriso fraco e forçado que me acompanha desde aqueles terríveis tempos na Polônia.
Pensar que estou tão perto da minha terra natal tampouco me deixa feliz. Na verdade, não sei mais o que é felicidade real e genuína desde aqueles dias horríveis de 1940, quando eu, meu pai, minha mãe e minha irmã Anna fomos arrancados de nosso lar e, forçados a levar não mais que uma mala cada um por um caminho penoso e frio, rumo ao gueto de Cracóvia. Por quase 3 anos vivemos apertados e acuados como ratos numa toca escura, úmida e mal cheirosa. As crises de bronquite que volte e meia me acompanham devem ser consequência de toda aquela umidade que entranhava no corpo e gelava a alma. Talvez esse frio todo tenha ajudado a manter as minhas emoções congeladas, em algum lugar inacessível do meu coração, cujo caminho nunca mais encontrei. Mas, tudo bem, estou viva, isso é o que importa!
Samuel me tira do meu devaneio e entrega minha mala de mão.
– Precisamos descer, querida, chegamos!, me avisa.
Dou outro meio sorriso, tomo minha mala de suas mãos, espero minha sogra e meu sogro saírem de seus assentos e sigo com o grupo, um passo de cada vez, rumo à saída do trem, rumo à Viena.
Na estação, continuo meu devaneio... Em minha vida, não sei mais se sou capaz de dar um sorriso verdadeiro e me sinto mal por isso, pois era do tipo que tinha um riso frouxo, fácil e aberto. As coisas mudam e desde a guerra eu mudei muito. Não sei se para melhor ou para pior, mas certamente não sei mais sorrir com a facilidade da juventude. A guerra e as privações me endureceram demais, o que é uma pena, pois sinto falta dessa alegria despreocupada que era uma das minhas características mais marcantes. Samuel sempre diz que gostaria de ter me conhecido antes da guerra, porque queria me ver "sorrindo de verdade". Dou outro meio sorriso ao me lembrar disso.
– Está feliz?, Samuel me pergunta, enquanto segura minha mão.
– Claro, como não?, minto. Acho que ele se satisfaz com essas mentiras de salão, porque sorriu (um sorriso genuíno, é claro), enquanto nos indicava o caminho para o ponto de táxi.
- Ah, Viena não mudou nada desde que estive aqui em 1935, meu sogro, Leopold, comenta.
– Claro que mudou alguma coisa, Leo, estamos em 1956, por favor. Houve uma guerra aqui!, minha sogra, Beth, como sempre, interrompendo o marido.
– Ora, por favor digo eu! Viena não foi atacada, pergunte ao Sammy, que lutou contra os chucrutes na Normandia. Ou pergunte a Helen, que ficou confinada naquele campo horroroso em... aonde foi mesmo, minha querida?
– Papai, por favor!, interrompe Sammy. – Helen não gosta de lembrar que esteve num campo em...
– Plaszóvia!, respondo secamente, tentando dar um fim àquilo tudo. – Estive em Plaszóvia, nos arredores de Cracóvia, Polônia!
Devo ter feito uma cara horrível, pois meus sogros e meu marido se calaram. Talvez o tom seco que usei tenha os assustado um pouco, porque costumo usar um tom de voz agradável e amável com todos eles. Mas, por favor, hoje não! Não quero falar sobre Viena, sobre Cracóvia, sobre Plaszóvia ou qualquer coisa que me lembre daquilo...
O passado é uma coisa esquisita. Você pode cruzar um oceano inteiro como eu fiz, e ir para um país cuja língua não domina, conhecer pessoas que jamais poderiam ter passado ou sequer imaginado o que você passou e ainda assim sentir como se os anos não tivessem passado. Estar presa ao passado é perturbador. E nem mesmo o terapeuta da senhora Horowitz, que gentilmente abriu espaço em sua agenda apertadíssima conseguiu me fazer falar sobre algumas coisas do meu passado que estão sempre presentes em minha vida, todos os dias, não importa o quanto eu me afaste, o quanto eu fale dos meus sentimentos em uma língua que não é a minha... Em uma vida que não é a minha, mas que forjei para mim como um ponto de fuga, como uma tentativa de manter o que me sobrou de sanidade, se é que realmente sou sã...
Meu marido, Sammy, ou Samuel para quem não o conhece bem, lutou no front. Americano de Nova Iorque, alistou-se voluntariamente depois de Pearl Harbour, num ímpeto patriota. Foi membro da Easy Company, era da divisão aerotransportada. Saltou na Normandia, matou pessoas, fez coisas que o desagradam e até hoje o fazem andar pela casa como um fantasma, amarrado a correntes fortes que lhe tiram o sono e o assombram, noite sim, noite não. Mas, mesmo com esse trauma, Sammy lida bem com a sua culpa, pelo menos parece lidar melhor do que eu. Talvez porque toque tão bem qualquer instrumento musical que lhe caia à mão. Ele é maestro e músico e acredito de verdade que a música é um instrumento poderoso de cura, mas também um poderoso instrumento de lembranças. Hoje, Samuel Horowitz é o mais jovem regente da Orquestra Sinfônica de Nova Iorque e tenho muito orgulho por ele. Refez sua vida porque precisava refazer, precisava esquecer. A música o salvou! A música nos aproximou!
- Helen! Helen!
- Acho que ela não está te ouvindo, Sammy, dê uma chacoalhada nessa distraída, preciso muito ir ao banheiro, apresse-a e faça, por gentileza, o check-in por mim, não posso mais esperar, disse minha sogra.
- Querida... Oh, querida, como você está distraída. Desça, chegamos ao hotel!
Eu tinha escutado tudo, só não queria ouvir. - Desculpe, meu ouvido esquerdo, eu...
- Tudo bem, meu amor. Sei que você perdeu consideravelmente a audição do seu ouvido esquerdo. Tudo bem, desça!
A desculpa do meu ouvido meio surdo é sempre convincente. Com ela, posso me dar ao luxo de fingir que não escuto certas coisas, a surdez parcial me permite ser mais seletiva com o que quero ou não escutar, com o que quero ou não responder. Dei outro meio sorriso e saí do táxi rumo ao hotel, rumo às minhas férias europeias, quase onze anos depois. De todos os lugares do mundo, certamente Viena não faria parte dos meus planos. Mas, para o bem ou para o mal, estou aqui!
