FLUÍDO

And I can't fight this feeling anymore,

I've forgotten what I've started fighting for.


O som das batidas na porta reboaram pelo apartamento penumbroso. Eram batidas seguidas e apressadas. Uma voz cônscia ecoou pelas através frestas da porta, e os olhos de Shun estalaram automaticamente a tal sonoridade. Uma atitude particularmente operante, porque até aquele momento, ele não imaginava o autor das batidas. Passou os dedos pelos cabelos, espreguiçando-se, os lábios tentaram em vão projetar um – Um segundo! - que saiu estranhamente irregular. Ele tentou se situar, pousou os pés sobre o linóleo gelado do chão e fixou os olhos esverdeados no relógio sobre o aparador ao lado da cama de casal. O relógio marcava 04:03. Os números piscavam com regularidade. O que faria alguém bater a porta dele a essa hora? Sim, ele sabia o que poderia ser, mas tentou afastar toda aquela preocupação desnecessária da cabeça. Estava bem, finalmente estava tudo bem. As batidas soaram mais uma vez, a porta estava prestes a ser arrombada. - Tenha paciência, por favor! - Gemeu Shun, pondo-se de pé um tanto aéreo, e vagando pelo quarto escuro a esmo. Tateou pela mesa de cabeceira, e em seguida o abajur em busca de seu pino. O acendeu, revelando um Shun descabelado, o rosto inchado de sono, trajando apenas um shorts folgado e confortável. Correu em direção a uma gaveta, e vestiu uma camiseta branca folgada. Sentiu a nuca suada, os cabelos cheios escorriam sobre os ombros.
Na sombra do corredor do hotel, um loiro de pele clara e olhos exasperados estava estático em frente a porta, os braços irritados cruzados sobre o peito, os lábios crispados em uma expressão que beirava o nojo. Shun franziu o cenho, encarando um Hyoga silencioso.

- Aconteceu alguma coisa? - Perguntou ele, com relutância, segurando-se sobre a madeira espessa da porta.

- Não. - A voz do loiro soou duramente vaga.


04:10


- Me desculpe. - Murmurou Shun, cansado daquilo. - Pode entrar se quiser.

Ele soltou as beiradas da porta, e ofereceu passagem para Hyoga que estava enraizado sobre a soleira. O garoto de sotaque marcado o encarou com uma expressão cuidadosa e entrou no apartamento. Shun procurou o interruptor a acendeu as luzes, finalmente conseguindo focalizar Hyoga. Ele recuou ao ver os olhos inquisitivos do garoto fixos nele, o corpo endurecido. Trajava um casaco grosso, uma camisa azul-céu sob este e calças de brim. Os cabelos loiros e espessos lhe caíam sobre os olhos e ombros. E se viu ainda mais atortoado ao perceber que Hyoga estava descalço.

- Então...

- Não.

- Como é? - Shun estava completamente desorientado.

- Eu falo.


04:16


- Eu estou indo viajar. - Murmurou Hyoga rouco, os olhos claros apertados presos no rosto de Shun impassivelmente. Toda aquela situação era terrivelmente desconcertante, Shun não conseguia manter-se firme. - Mas, eu não posso. Não com isso me incomodando desse jeito.

- O que te incomoda? - Murmurou Shun, espalmando a mão sobre a mesa de cabeceira.

- Você.


04:20


- Você e o que você fez.

- Hyoga, me desculpe, mas – Shun sentiu uma ponto de revolta cutucando-lhe o peito e apontando pela garganta. - do que diabos você está falando?

- De tudo isso! - Ele vociferou exasperado, a mão pousada duramente sobre a cintura. A outra esfregava os cabelos grossos que escondiam a superfície suada de seu couro cabeludo. - Que calor infernal.

Shun não havia notado o quanto o apartamento estava quente. Enquanto Hyoga tirava o casaco, caminhou em direção as janelas e abriu-as, deixando uma brisa reconfortante invadir o aposento.

- Hyoga, eu realmente...

- Por favor – ele murmurou, virando-se para a janela. A musculatura cruelmente definida sob a camiseta. Shun se sentiu muito desconfortável. - Eu não sei porque eu me lembrei de tudo isso só agora, mas eu preciso que você me diga francamente.

- Do que exatamente nós estamos falando?

- Faz quase um ano, eu estava quase sem pulso, e você – Hyoga se arrepiou de maneira engraçada e Shun tentou não rir. - você me acalentou, Shun.


04:26


- E daí? - Shun sibilou, com a voz embargada. Aquilo o atordoara visivelmente.

- Porque você fez aquilo?

- Porque você estava morrendo. Não é óbvio? - Respondeu, automaticamente.


04:30


- Eu acho que está na hora de …

- Não, fique quieto! - Pediu Hyoga, abanando as mãos. - Eu preciso de … - Ele apertou os olhos sofregamente, como se lhe doesse falar. Shun cerrou os dentes com mais força do que deveria quando Hyoga percorreu a saleta de entrada do apartamento com três passadas concias e agarrou-lhe a gola da camisa. Parecia que Hyoga iria esmurrá-lo. - Você devia ter me deixado morrer.

- Não seja estúpido. - Disse Shun, livrando-se da mão dele. Hyoga soltou-lhe a gola da blusa branca, mas agarrou a mão do jovem com uma firmeza nervosa. Shun não reagiu superficialmente.

- Isso é baixo. - Disse Hyoga, apertando a mão do menino com os dedos. Quando ele levou a mão de Shun até seu rosto e com uma urgência desconcertada passou as costas da mão dele sobre sua bochecha esquerda Shun puxou-a, completamente confuso. - É cruel. Você queria que isso acontecesse.

- Hyoga, eu quero que vá embora. - Shun soluçou, engasgando com as palavras.

O que estava acontecendo aqui?


04:50


- É culpa sua.

- Vá embora agora.

Ignorando a raiva de Shun, Hyoga puxou-o pelo ombros e envolveu-o em um abraço apertado, roçando o seu rosto sobre o ombro do rapaz um punhado de centímetros menor que ele. Shun engoliu em seco e seu corpo reagiu abrasadoramente. Os braços envolveram a cintura de Hyoga, e não havia mais nada que ele pudesse dizer.

- Eu não devia estar fazendo isso, é repugnante. - As palavras fizeram Shun retrair-se de insegurança. - Eu nunca levei em conta o que você tinha feito, para salvar minha vida. Eu nunca o retribuí, eu só queimei o que você me proporcionou. Naquele dia, no santuário, você me fez experimentar algo que eu nunca havia sentido na vida. O calor. - Hyoga roçou os lábios sobre o rosto de Shun, se deliciando, empurrando-o contra a parede. Esticou os braços, fechando a janela atrás do garoto, até então chocado, e voltou a apertá-lo desesperadamente. - Você me aqueceu, você depositou em mim tudo que a muito tempo eu não sinto. Eu não sei ao certo porque agora, depois de tanto tempo. - Os seus lábios, em contraste com a pele chamejante de Shun eram frios. Ele desceu a boca até o pescoço dele e aninhou as mãos em seu cabelo, como se quisesse consumir todo o aquele que havia ali. - Mas faz dias que eu tenho tido problemas com meu corpo, ele reage de uma forma totalmente diferente agora quando eu penso em você. Ele precisa de mais do seu calor.


05:00


Shun não soube ao certo por quanto tempo eles ficaram ali em completo silencio, as mãos de Hyoga vasculhando pelo corpo de Shun como se procurassem algo escondido entre suas dobras. Desvenciliaram-se quando Shun empurrou Hyoga com uma força que talvez nem ele soubesse que tinha. Ele estava ofegante.

- Porque você faz isso? - Gemeu, apertando os lábios para segurar as lágrimas. Sentia-se cruelmente reduzido. - Porque você insiste com toda essa porcaria? Eu te odeio por me fazer sentir assim. Eu nem ao menos lembrava mais daquilo, estava tudo perfeitamente cicatrizado. Eu quero que você vá embora agora. Está quase amanhecendo, eu já te mandei embora.

As mãos de Hyoga levantaram-se mais uma vez, como se procurasse novamente o calor que o corpo do outro o proporcionara. Novamente o rosto estava marcado pelo desconforto.

- Eu nunca quis que isso acontecesse.

- Eu salvei sua vida porque eu te amava. Acima de tudo te amava como um irmão e eu não podia... – Ele forçou-se a falar, embargado, cobrindo os olhos com os dedos ásperos. - Eu não podia me permitir sentir nada além disso; amor fraterno. E tudo estava perfeitamente bem, até você se achar no direito de vir me procurar depois de todo esse tempo e… e estragar tudo, seu imbecil, imaturo e egoísta!

Hyoga cerrou os lábios. Shun percebera que toda a chama que incialmente o instigara a fazer aquilo estava seriamente reduzida.

- Eu não planejei nada, eu só fiz o que era certo. Agora eu preciso realmente que você vá embora.

Hyoga abriu os lábios, mas antes de que alguma palavra saísse, Shun anteviu-se.

- Agora.

Hyoga olhou para ele incerto. Não era como se ele estivesse magoado com o que tinha ouvido, ou tivesse medo de qualquer tipo de retalhação. Hyoga pescou seu casaco sobre uma mesa oval coberta por uma toalha de crochê branca, jogou-o sobre o ombro, deu meia-volta até a porta, abrindo-a e deixando o apartamento, fechando-a em seguida, agora gentilmente.

Clic.