Capítulo I

Uma Nova Vida

A erva dançava ao sabor do vento e Kaidan sentia uma grande paz interior enquanto via Valquíria Shepard a deslizar na sua direcção, com um bonito sorriso e os olhos verdes brilhantes, como o sol que agora se punha. O seu cabelo estava solto, ao contrário do habitual rabo-de-cavalo, e Kaidan reparou como esse penteado lhe dava um ar livre, a condizer com a sua personalidade. Valquíria estava agora tão perto dele, que conseguia ver todos os pormenores das suas feições, mas, estranhamente, a cicatriz que ela tinha na bochecha desaparecera. Kaidan achou esse detalhe curioso, porque essa marca era algo que sobressaía bastante nas feições da rapariga, não duma forma feia, mas com todo o esplendor de um espírito rebelde. Talvez fosse a luminosidade, mas a verdade é que essa questão o estava a deixar desconfortável, até ansioso.

Shepard continuava a aproximar-se, estava agora a apenas alguns passos dele, mas mesmo assim, parecia a Kaidan que o encontro demorava uma eternidade, como se não a conseguisse alcançar.

- Val... – chamou hesitante. Porém, nesse preciso momento, Valquíria estacou e o sorriso desvaneceu-se-lhe. Com o coração aos pulos, Kaidan deu um passo em frente e, subitamente, ela agarrou-se ao próprio pescoço em desespero. A sua expressão mudou para uma de agonia, os olhos muito abertos e os lábios separados, sôfregos de ar.

- Não! Val! – Kaidan esticou os braços e no momento em que a ia alcançar ela esfumou-se com um grito.

O grito era dele próprio, ao acordar suado e ofegante na escuridão do seu quarto. Já se tinham passado dois meses desde o ataque à Normandy, quando Valquíria morreu, mas ele ainda sofria. Quase todas as noites, tinha o mesmo pesadelo: Eden Prime ainda no seu esplendor e ela cheia de vida a vir ao seu encontro. No entanto, por mais que tentasse, nunca conseguia alcançá-la. Aquele sentimento persistiria no seu coração o resto do dia, como se Valquíria realmente ainda ali estivesse, algures, mas fora do seu alcance.

Porém, tinha que ser forte, pelo seu dever para com a Aliança e, principalmente, pela promessa que lhe tinha feito de lutar contra os Reapers.

Kaidan deitou um olhar vazio ao quarto e levantou-se. Tinha sido promovido a comandante e hoje era o grande dia em que lhe iriam ser apresentadas a sua nave e a sua tripulação.

Uma hora depois, encontrava-se a bordo da Brilliance, uma nave não tão moderna como a Normandy mas rápida e com um bom poder de fogo. Hackett apresentou-o à sua tripulação.

Danielle Jacobs estava encarregue de fazer Brilliance voar e Doris Jacobs, a irmã, tratava de pôr as armas a funcionar. As duas eram altas, ruivas e sardentas, mas o nariz de Doris era mais empinado e os olhos de Danielle maiores e mais vivos.

A outra mulher do grupo, Susy Romero, era quem os levava a passear no MAKO quando precisassem de desembarcar. Era morena, de olhos castanhos e lábios carnudos. Kaidan reparou nas várias tatuagens de temática asiática que lhe decoravam os braços.

O chefe médico era Akihiko Chiba. Um rapaz baixo e magro, de olhos rasgados e com uma profunda cicatriz no queixo. Usava uma lente especial no olho esquerdo que lhe dava um ar de ciborgue.

Por fim, Kaidan foi apresentado ao engenheiro John Holmes, um homem de meia-idade, com cara de poucos amigos e sobrancelhas pretas espessas, e ao especialista de comunicações Simon Black, um jovem de cabelo preto e olhos azuis, bastante vistosos, mas com um semblante frio.

Após o encontro, Kaidan retirou-se para as suas instalações. Um dos benefícios de ser comandante era não ter que partilhar a camarata com os outros soldados. Na sua secretária estava um computador, que ele ligou e deixou a configurar a rede enquanto foi tomar um duche.

Aquela seria a sua casa durante o tempo que decorresse a missão em que estava envolvido e aqueles desconhecidos a sua família. Tentou lembrar a si próprio de que não podia perder o controlo das suas emoções, seria demasiado penoso cair nessa armadilha novamente. Por duas vezes em toda a sua vida deixara-se apaixonar e das duas vezes o destino fez o favor de o pôr no seu lugar. O amor era fácil e bonito, mas não para ele. Para ele só existiam o seu dever e as dores de cabeça causadas pelo raio dos implantes.

Quando saiu da casa de banho, ainda a secar-se, o computador apitou. "Devem ser as instruções do almirante." pensou, maçado. Tinha que ir à enfermaria rapidamente pôr o novo médico ao corrente dos seus implantes problemáticos se quisesse ver-se livre das dores de cabeça, ou, pelo menos, atenuá-las. Dirigiu-se à porta, porém hesitou e resolveu dar uma vista de olhos ao e-mail, não fosse urgente. Não era do almirante, aliás não tinha nenhum remetente sequer. Kaidan abriu os olhos de espanto e o seu coração falhou uma batida quando leu a mensagem:

"Não percas a esperança. Ela vive."

Kaidan precipitou-se pelas escadas. Ia descer imediatamente até à sala de comunicações e descobrir de onde vinha aquela mensagem, custe o que custasse. O seu coração batia tão rápido que sentia o sangue a latejar nas têmporas, o que agravava a dor de cabeça. Enquanto corria, um mar de pensamentos passavam-lhe pela cabeça. Quem teria enviado a mensagem? Estaria Valquíria mesmo viva? Não... Não podia acreditar, não podia ter uma recaída, não aguentava.

Subitamente, parou. Tinha que ter calma e ser racional. Qualquer pessoa facilmente juntava dois mais dois e se aperceberia da sua relação com a sua comandante. A maneira como se olhavam, os sorrisos, o cuidado e a preocupação um pelo outro nas situações de maior perigo. Toda a gente sabia o que se passava entre eles, mesmo tentando ser discretos. E quando ela morreu... O desespero no seu rosto enquanto a via flutuar no espaço, foi uma sensação tremenda e pouco faltou para partir os vidros da cápsula de fuga se os seus colegas não o parassem. Podia ser uma brincadeira de mau gosto. Tinha que ser uma brincadeira de mau gosto. E ele não iria pôr a sua reputação em risco. Agora tinha uma responsabilidade para com a sua tripulação e para consigo próprio.

Suspirou e, quando se preparava para voltar para trás, ouviu uma voz chamá-lo. Era Doris quem se aproximava a largas passadas. Kaidan sentiu-se inquieto, há quanto tempo estaria ali? Tentou compôr-se do sobressalto e perguntou, tentando soar o mais calmo possível:

- Algum problema, soldado?

- Não! - respondeu bem-disposta. - Vinha só convidá-lo para um jogo de cartas. O John e a Susy já estão na sala comum.

Kaidan hesitou mas acabou por aceitar. Passar um pouco de tempo com a sua tripulação não era má ideia, podia conhece-los melhor e até descobrir alguma pista sobre a mensagem que recebera. Entraram os dois na sala comum. Susy e John estavam sentados numa mesa redonda, a conversar animadamente. Kaidan reparou que John tinha os olhos pousados nos peitos empinados de Susy enquanto ela olhava distraidamente as cartas que baralhava. Akihiko também estava na sala, mas numa mesa no canto esquerdo da divisão, a olhar para um computador. Quando o médico os viu entrar, ajustou nervosamente o monitor.

- Comandante! Sente-se aqui ao meu lado! - exclamou John. - Trouxe uns bons créditos, espero eu?

Kaidan sorriu e cumprimentou-os, incluindo Akihiko que se limitou a acenar a cabeça em resposta. Sentou-se entre John e Doris, com Susy à sua frente.

- Então, é verdade que chegamos a Omega a tempo da passagem de ano? - perguntou John, divertido. Um dente de ouro brilhou quando sorriu.

- Ah... Não me parece que eles festejem lá passagens de ano terrestres. - respondeu Doris, a fazer beicinho.

- E depois? Armamos nós lá uma grande festa no Afterlife! Que diz, Comandante? Se der autorização eu arranjo-lhe uma lapdance de uma asari bem azulinha, o tom que mais gostar.

Todos se riram com a oferta e Kaidan declinou, divertido.

- Não, obrigado. Mas não vejo porque não se podem divertir se a missão não ficar em segundo plano, claro.

John e Doris soltaram exclamações de felicidade e Susy começou a distribuir as cartas com um sorriso maroto no canto da boca.

Perto da hora de jantar, Akihiko já se tinha retirado sorrateiramente com o seu computador e Kaidan saiu também para o seu quarto. Não tinha muita fome e o stress do dia estava finalmente a pesar-lhe no corpo. Entrou na divisão e sentou-se à secretária, a olhar a mensagem misteriosa na tela do computador. Lembrou-se da sua última passagem de ano, passada em Vancouver, com os pais. Recordou como o pai estava feliz com o florescer da sua carreira. No início do ano, Kaidan iria servir na mais sofisticada nave da Aliança e o seu pai achava que só poderiam vir coisas boas dessa colocação. E realmente vieram. Conseguiu completar uma missão arriscada e importantíssima para a defesa da galáxia, que lhe abriu várias portas para chegar longe na carreira, mas, mais importante ainda, conheceu Valquíria.

Ainda se lembrava detalhadamente do dia em que a conhecera e de como os seus olhos verdes o cativaram desde o início. A atracção fora instantânea, mas ele negara os seus próprios sentimentos durante muito tempo, mesmo depois de Valquíria lhe dar a entender que sentia o mesmo. Às vezes martirizava-se por se ter deixado envolver, mas a maioria das vezes detestava-se por ter perdido tanto tempo.

Os seus olhos ardiam, apesar de estarem aguados, e as dores de cabeça acentuavam-se. Por isso, resolveu ir à enfermaria, algo que já deveria ter feito. Quando entrou na divisão, o médico encontrava-se a ler um livro de fisionomia quarian.

- Tem um momento livre, Doutor Chiba?

Akihiko desviou o olhar das páginas com um ar enfadado e respondeu:

- Sente-se, Comandante. Mas se for por causa dos seus implantes já li o seu relatório clínico, por isso não precisa de perder tempo com explicações. - levantou-se e aproximou-se dum armário de onde tirou uns frascos cheios de pastilhas. Estendeu-os a Kaidan. - Tome estes comprimidos quando tiver dores de cabeça, se os sintomas persistirem ou se agravarem, por favor venha ter comigo para ser consultado. Todo o cuidado é pouco com implantes L2, como já deve saber.

Voltou a sentar-se e a pousar os olhos no seu livro, ignorando o comandante, que agradeceu friamente e se virou para sair da enfermaria. Porém, quando se começou a afastar, ouviu novamente a voz do médico nas suas costas.

- Por favor, considere levar-me consigo em missões no terreno.

Kaidan virou-se e arqueou a sobrancelha.

- Não é normal o médico chefe participar nessas missões.

- Eu não sou um médico normal. Tive treino militar extremo e tenho conhecimentos científicos profundos, que são úteis no terreno e desperdiçados aqui. - respondeu o médico num tom desafiador.

- Para já, fico com essa informação e quando a altura chegar veremos. Boa noite, Doutor.

Akihiko acenou com a cabeça e voltou ao seu livro e Kaidan afastou-se em direcção ao corredor. Achava o médico bastante estranho, mas ele já conhecera cientistas excêntricos. Aliás, participara em várias missões com Liara, uma asari que apesar de ser historiadora era fatal em combate.

Já no seu quarto, Kaidan enviou um pedido formal a Hackett para lhe enviar os perfis e registos pessoais da sua tripulação. Mais valia prevenir do que remediar, principalmente se queria ver a sua missão chegar a bom porto. O mais tardar dentro de dois dias chegaria a Omega para investigar uma pista em relação à célula terrorista Cerberus e aí as coisas começariam a tornar-se sérias.

As dores de cabeça eram agora tão fortes que via tudo desfocado. Pegou num dos frascos que o médico lhe dera, mas hesitou e voltou a guardá-los numa caixa de primeiros- socorros. Tirou a roupa e deitou-se com as luzes todas apagadas, porém a cama parecia-lhe demasiado grande e fria. Lembrou-se, então, da noite que passou com Valquíria, enquanto viajavam para Ilos. Na altura, tudo parecia tão romântico. Uma noite de paixão antes de uma missão suicida para salvar a galáxia. Agora, apenas três meses depois, parecia que tudo não passara de um sonho, numa outra vida que não a sua. Kaidan fechou os olhos e sorriu amargamente, envolto na escuridão e no calor das suas lembranças.