Medo... medo, não; receio... um receio imenso de ter de lidar com a Vida novamente. Com seus sentimentos, seus pensamentos, suas dores, suas eternas e perenes dores. Um Santo de Atena, acostumado com as privações e a morte iminente, lida muito melhor com a ausência de pensamento, a paz Eterna, o Nada, onde se mergulha e acaba todo o sofrimento. A Vida era a Dor. A pior Dor com a qual ele poderia lidar. A Dor de refletir sobre seus pecados e ver que nunca conseguiria perdoar-se.

Mas era necessário. Se precisavam de si no Mundo dos Vivos, ele voltaria e exerceria a função designada.

"Saga... se você quiser, pode escolher entre o Sono Eterno e a ressurreição. Não vou obrigá-lo a retornar."

Se fosse uma escolha pessoal, ele permaneceria dormindo, descansando a consciência tão magoada e repisada em vida. Todavia, o dever o chamava e sua alma já não era mais sua há muito.

"Eu vou retornar e cumprir o que me resta.", respondeu ele, Saga de Gêmeos, do alto de sua grandeza de espírito e bondade.

-x-

O clima estava quente, e a cozinha atarefada. Seria o dia de receber uma visita inesperada. Marin, a Amazona de Águia, estava coordenando tudo, desde os criados até a condição psicológica da jovem para quem era dada aquela festa. Foram convidados diversos membros da confraria dos Santos de Atena, mas todos se portariam como se aquela ocasião fosse apenas uma confraternização informal.

O nome dela era Sianne, moradora da vila de Rodório, pertencente a uma linhagem humilde. Os reis e opulentos não servem usualmente para divindades... a não ser que abneguem sua noção estritamente material, para que suas almas possam despertar o plenamente espiritual. Os pobres têm uma mente melhor preparada para esse tipo de função...

Sianne, a virgem de 17 anos, era suspeita de ser a nova reencarnação de Nike, a Deusa da Vitória, obraço direito de Atena. Caberia aos mais experientes do Santuário saberem identificar nela as características da divindade auxiliadora. Porém, como ela não sabia da sua possível vocação, a "vistoria" seria camuflada pela festa.

Marin, sendo amazona experiente, foi escolhida para aproximar-se da moça e ir aos poucos ganhando sua confiança. Quando convidou a simplória menina para nada menos que uma festa em pleno Santuário de Atena, o proibido e impenetrável Santuário de Atena, fez com que ela se sobressaltasse:

- O que farei eu, uma mera aldeã, no meio de valorosos guerreiros? Ainda acho muito por ter a sua amizade, senhora Marin.

- Não me chame de senhora. Não temos sequer tanta diferença de idade assim. E quanto ao nível dos Cavaleiros, não se preocupe. Os grandes homens sabem que a nobreza do coração, e não a dos bens materiais ou do status, é a que importa. Alguns defensores de Atena no passado deixaram-se levar pela soberba, mas isso apenas causou-lhes a própria ruína. Venha, eles saberão apreciá-la.

Um tanto receosa, Sianne foi apenas com a condição de poder ajudar nos preparativos da festa com os criados, pois temia que, ao ir como convidada, pudesse sentir-se como um "peixe fora d'água". Marin concordou, já que o necessário, ou seja, a presença dela para a avaliação, seria cumprido.

Acompanhando Sianne bem há cerca de dois ou três anos, a Amazona de Águia acreditava estar fazendo um trabalho razoável. Os moradores da vila acostumaram-se com a vinda dos Guardiães da Deusa da Justiça, e portanto a presença freqüente de Marin na casa da jovem não lhes era estranha. A amazona ia, pois, quase todos os dias explicar cada vez mais um pouco da história dos Cavaleiros. Fingia estar ali só para passar o tempo, já que o Santuário encontrava-se em relativa paz, mas na verdade estava cumprindo seu dever.

Pois bem, o dia chegara, e Marin estava ocupada com os preparativos da ocasião. Já trouxera de antemão a candidata a deusa, e ela não parava de trabalhar junto com os servos e criados, apesar dos apelos de Marin para que se sentasse e deixasse o restante dos serviçais trabalhar sozinhos.

O início do evento estava marcado para as quatro da tarde, e ninguém esperava a chegada de algum convidado ainda, quando Marin, dirigindo-se para o salão principal da cerimônia, sobressaltou-se com a presença de uma pessoa na entrada do recinto.

A defensiva era clara nos brilhantes olhos castanhos da guerreira, os quais já não necessitavam mais da cobertura da Máscara das Amazonas. Mas tentou conter-se e tratar bem o homem que estava à sua frente.

- Seja bem-vindo, senhor - ela saudou ao presente com uma reverência.

- Não é preciso reverenciar-me, Marin. Atualmente, nada sou além de mais um dentre os Santos da Deusa Atena. Talvez menos...

A jovem amazona olhou diretamente nos olhos do homem que a encarava, mas não viu nada além de benevolência e humildade. Pensava que ele talvez estivesse tendo um rompante de falsa modéstia para enganá-la, mas a sua compreensão, tão aguda quanto a da águia que dá nome à sua constelação protetora, não captava nele sinal algum de vilania.

- Queira por favor sentar-se - a ruiva indicou-lhe um lugar privilegiado. Apesar de estar vestido de maneira simples, aquele guerreiro ainda tinha a voz que um dia fora do Grande Mestre. Além, claro, de possuir uma distinção natural, um porte de espírito grandioso e quase divino.

A própria Amazona colocou frutas e iguarias à disposição dele, apesar de esse ser o papel dos criados. Mas ele rejeitou todos, como se não tivesse fomer ou a mínima vontade de comer que fosse.

- Não vai indagar nada a meu respeito? - perguntou ele ao fim de algum tempo.

- Por que tomaria eu essa liberdade?

- Não é sempre que uma pessoa, mesmo um Cavaleiro, volta dos mortos.

- Algum deus com certeza o trouxe de volta à vida. Não vou duvidar da boz vontade das divindades.

- Foi a própria Atena quem me deu o dom da vida novamente. Minha finalidade na Terra será guiar a donzela que guarda o espírito da deusa Nike em seu interior.

Ele dirigia-se como a alguém a quem devesse satisfações. Desejava deixar tudo em pratos limpos a todos.

- A moça que supostamente é a deusa encontra-se presente. O senhor deseja vê-la?

- Se ela assim desejar...

A mestra de Seiya foi buscar Sianne. A seriedade e o tom impessoal do primeiro convidado que recebia incomodavam Marin, apesar de ela também ser conhecida como uma pessoa séria. Mas ele ostentava os modos de uma pessoa que passou muito tempo sem ter algum contato com as pessoas a seu redor. A amazona sabia que isso traía o passado do senhor ali presente, e que aquela formalidade toda não era sem fundamento.

- Sianne, há aí uma pessoa a quem quero que conheça.

A aldeã, que estava ocupada com o arranjo das bebidas, estranhou o fato de alguém ter chegado tão cedo.

- Marin, eu sequer arrumei os cabelos...

- Não há problema. Os grandes homens, como eu disse a você, apreciam a riqueza interior, e o que está aqui presente é um dos maiores guerreiros que já tivemos. Venha, ele com certeza não se interessará por seus cabelos.

A moça foi, junto de Marin, ainda um pouco receosa. Tinha medo de ser rejeitada ou considerada reles, mas se apoiaria em sua amiga. Quando viu o homem presente, sentiu-se ainda mais vexada.

Ele possuía cabelos longos, mais longos que os da maioria das mulheres que conhecia. Eles caíam soltos até quase a altura de seus joelhos. Uma mecha deles estava em suas mãos, como se ele precisasse segurar-se em algo, apesar de seus dedos serem visivelmente fortes.

Ele era alto; mesmo sentado, olhava quase diretamente nos olhos da garota, a qual não devia medir mais de 160 centímetros. Os olhos, de um azul profundo, revelavam uma sabedoria e maturidade que contradiziam a aparência jovem. Seu rosto era nobre e bem feito, de uma cor pálida a qual não parecia pertencer a alguém nascido no Mediterrâneo. Ele vestia uma roupa comum: uma túnica de mangas longas, calças escuras e uma sandália típica dos nativos de classe média do local, mas a energia dele, além de seu porte imponente, seus ombros largos e seu perfil esguio porém resistente, davam a impressão de ele ser uma pessoa muito importante, um filho de reis ou alguém destinado a ser grande. A grandeza e a magnificência, aliás, faziam parte de si como a luz é parte integrante das estrelas.

Tal energia, porém, emanava mansamente de si, e o caráter benévolo de seu espírito era lido claramente na expressão bela de seus olhos. Toda aquela força, que sem dúvida se impunha no ambiente ao redor dele, tinha característica acolhedora, como se servisse para proteger e curar, única e somente. "Deve ser assim que um Anjo nos céus olha por seus designados...", Sianne pensou.

Quase involuntariamente, a aldeã fez uma reverência a ele. O homem balançou a cabeça, contrariado:

- Não adore aos homens. Apenas Deus merece tal privilégio.

- Sim, mas... - a moça tentou olhar diretamente nos olhos do guerreiro, porém eles eram tão penetrantes, que pareciam desnudar toda a sua alma. Não suportando a intensidade daquele olhar vítreo, tão poderoso quanto o de uma esfinge, ela desviou o rosto para o chão, passando a enrubescer de vergonha em seguida.

Marin, percebendo o constrangimento da jovem, puxou duas cadeiras: uma para a amiga e outra para si. Sianne sentou-se, quase se encolhendo perante a imponência do senhor que estava diante de si.

- Coma alguma coisa - disse Marin à sua amiga.

- Preciso... terminar de arranjr as coisas...

- Isso é função dos criados.

- Mas estou aqui para isso!

O guerreiro saiu um pouco de sua impassividade, quase sobressaltado.

- Ela está aqui na condição de serva? - indagou ele à amazona de Prata.

- Não. É o costume do trabalho, o qual ela não consegue deixar. Mas agora descansará. A propósito, deixe-me apresentar-lhe a donzela: chama-se Sianne, nascida na Vila de Rodório.

- Vila de Rodório... - o homem repetiu, como se invocasse daí alguma lembrança perdida.

- Eu terminarei de dar ordens aos servos, para que tragam tudo o mais rápido possível - continuou Marin - Deixarei-os um pouco, mas volto em breve. Com licença.

A Amazona de Águia não queria deixar a jovem sozinha com aquele homem, mas não devia desconfiar de um Cavaleiro de Atena regenerado. Aliás, tudo indicava que, no passado, ele não fora nada além de uma vítima, como todos os outros. Era seu dever, portanto, dar-lhe um voto de confiança.

Continua! xD