Antes mesmo que o relógio despertasse, ela abriu os olhos e observou a fraca claridade que invadia o quarto. Nenhum som lá fora a acordara, fora apenas aquela intensa ansiedade, que a consumira durante a semana inteira e estava cada vez pior, que a fizera pular da cama e quase tropeçar no tapete do quarto. Só então ela se dera conta de que estava tremendo violentamente. Tudo bem. Afinal, era o pior inverno que ela já presenciara. Mas nem quando viajara para o Chile para ver neve pela primeira vez ela tremera tanto quanto estava tremendo agora. Um banho quente era tudo o que ela precisava naquele momento.

Ela saiu do quarto silenciosamente, levando suas toalhas de banho e um creme novo para os cabelos que ela ganhara. Quando a água quente escorreu pelos seus ombros, ela esperou que o frio cessasse e que seus pensamentos se acalmassem, mas sua situação permaneceu invariável. Era como se milhões de vozes estivessem falando ao mesmo tempo em sua cabeça, e ela não conseguia entender absolutamente nada. E nem o banho mais longo de sua vida conseguiu tranqüilizá-la.

Quando retornou ao seu quarto, parou em frente ao espelho e observou o reflexo de uma garota encolhida de frio, enrolada em uma toalha, os cabelos loiros escuros molhados caídos ao redor de seu pescoço e os olhos verdes intensamente brilhantes e nervosos. O relógio despertou de repente, fazendo-a pular de susto e correr para desligá-lo. Ela sentou-se na cama e analisou as roupas que havia separado na noite anterior. Ainda estava indecisa, mas antes que mudasse as peças de roupa pela terceira vez, ela decidiu vestir-se logo antes que congelasse ali.

Ela colocou sua calça jeans escura e sua blusa predileta. Não sabia se estava realmente bem daquele jeito, ainda mais hoje, que ela estava mais insegura do que o normal. Mas tinha certeza que depois de colocar o seu colar e o rímel que deixava o verde de seus olhos mais vivos e destacados ela se sentiria melhor.

— Você está linda, meu amor. — a voz interrompeu seus pensamentos fazendo com que ela parasse de pentear os cabelos e se virasse para encarar a mulher escorada na porta do quarto, os braços cruzados e os olhos sonolentos enquanto a admirava.

— Você é suspeita de qualquer elogio. — brincou ela, com um leve sorriso.

— Você parece nervosa. — riu a mãe, indo até ela e abraçando-a. — Não quer mesmo que eu vá com você?

— Não, mãe, não precisa. Eu vou ficar bem. — disse ela, devolvendo o abraço.


Ela estava agora perdida em meio a centenas de pessoas apressadas que passavam por ela, completamente concentradas em suas próprias vidas. O som ensurdecedor dos aviões que partiam e chegavam faziam o salão inteiro tremer, mas todos continuavam andando, empurrando seus carrinhos abarrotados de malas pesadas pelo aeroporto, como se nada estivesse fora do normal ali. Era cedo, mas a cidade funcionava naquele horário. Principalmente os aeroportos. Tudo estava um verdadeiro caos: um homem passou por ela, trazendo consigo uma menina que chorava e reclamava, gritando que estava com sono e queria ir para casa; um grupo de homens bem vestidos, trajados em ternos escuros e impecáveis quase a atropelaram ao passarem apressados para sair logo daquele trânsito de pessoas; e uma mulher foi empurrada pela multidão e derrubou um copo de café no chão, congestionando uma boa parte do salão de desembarque.

Ela só conseguia ficar ali, parada, observando aquela onda imensa de pessoas que atravessavam o aeroporto, e pensando em que tipo de pacto ela ia ter que fazer pra achar uma única pessoa no meio de tantas outras. E se ela não a encontrasse, ou pior, não a reconhecesse? Já havia visto várias fotos da outra, mas se passara praticamente um ano! Ela poderia estar diferente, ou poderia não reconhecê-la também. Durante esse ano ela havia crescido, seus cabelos estavam mais compridos, e o seu rosto mudara; ela parecia mais velha do que realmente era, mas a inocência ainda tingia seus olhos e ela ainda possuía aquele sorriso de menina.

Cansada de ser agredida pelas pessoas que a arrastavam para fora do aeroporto, ela se afastou e sentou-se em um banco de uma lanchonete próxima da porta de desembarque. Ela observou uma senhora magra de cabelos grisalhos e olhos cansados, que segurava em uma das mãos uma folha branca com o nome de alguém escrito em letras grandes e legíveis. Ela sorriu e virou-se para o balcão, onde pegou um guardanapo e abriu-o em cima da mesa. Depois disso, procurou uma caneta em sua bolsa e começou a escrever cuidadosamente no fino papel?

"CAS"

O sinal tocara novamente, indicando que outro avião chegara. O aeroporto inteiro começou a se mover novamente. Alguns se acotovelavam perto da porta, provavelmente familiares, esperando por alguém. Ela tentou chegar o mais perto possível e ergueu o guardanapo. Seu coração apertou-se de uma forma dolorosa e começou a bater cada vez mais rápido. As pessoas começaram a desembarcar aos poucos, lentamente, como se tivessem dormido a viagem inteira e agora arrastavam-se pelo salão. Ela começou a ficar impaciente, esticando-se cada vez mais para ver alguma coisa. Tentou infiltrar-se entre as pessoas e levantar o papel em suas mãos. Olhou para todos os lados, nervosa e foi empurrada algumas vezes por pessoas que estavam se abraçando por ali. Frustrada, ela se afastou da multidão e esperou, olhando em volta, ainda segurando a identificação simples que fizera, que agora estava um pouco amassada e rasgada, mas ainda visível. Talvez não tivesse sido uma boa idéia ter vindo sozinha. Se sua mãe estivesse com ela provavelmente ela não estaria se sentindo tão perdida ou nervosa.

— "Cas"? — uma leve risada interrompeu seus pensamentos. Ela observou a garota a sua frente que trazia duas mochilas pequenas em ambas as mãos. Ela estava sorrindo de um jeito bobo, como se estar ali, naquele aeroporto, fosse uma realização para ela. Ela tinha compridos cabelos castanhos, quase pretos, e lisos; seus olhos eram igualmente escuros e destacavam-se na sua pele clara. Mais o que mais lhe chamou a atenção foram as roupas da garota: era como se ela tivesse vindo do Alaska, ou algo do gênero; ela estava usando um suéter por cima de, provavelmente, umas três ou quatro blusas, e um casaco negro e grosso cobria todas aquelas camadas de roupa, finalizadas com uma manta em tom de vinho que estava enrolada de forma desajeitada em seu pescoço.

— Jess, é você? — ela murmurou, seu sorriso ficando cada vez mais amplo.

— GABS! — a garota soltou as mochilas e pulou para abraçá-la.

— Meu Deus! Eu nem acredito que você está aqui!

— Eu sei! Parecia que eu não ia chegar nunca! Eu tava tão nervosa! Eu nem consegui dormir direito!

— Eu também!

— Tudo o que eu conseguia pensar enquanto eu tava no avião era: Gabs, Misha, Gabs, Misha!... — as duas riram e voltaram a se abraçar. — Não dá pra acreditar na sorte que a gente teve: Jensen, Misha e Jared! Os três! Aqui!

— Sim! Quando eles anunciaram os convidados eu quase enfartei!

— Ah! Eu preciso fazer uma coisa! — Jess voltou a pegar suas mochilas e puxou-a em direção a lanchonete do aeroporto.

— Você ainda não comeu? — perguntou ela, confusa.

— Não, não é isso. — riu a outra, antes de ir até o balcão e pedir algo. Segundos depois, ela voltou, ainda com aquele sorriso bobo, trazendo agora uma lata de Coca-Cola nas mãos. As duas se sentaram em uma mesinha próxima e começaram a tomar o refrigerante, tentando controlar as risadas. — Falando sério agora... A primeira coisa que você pensou quando me viu: foi que eu era muito baixinha, não é?

— Não! — ela respondeu, ainda rindo. — Eu pensei que você veio do Alaska, porque você está usando muita roupa!

— Sério? É, deve ter sido meio estranho, mesmo... Aqui realmente tá menos frio. Mas é que quando eu saí de casa, tava fazendo -9°C lá na minha cidade... Mas foi só isso que você pensou?

— Também pensei que você fala de um jeito esquisito. — respondeu ela, com um leve sorriso.

— É. O sotaque é bem diferente, eu sei. Mas fazer o que? — as duas riram e depois silenciaram de repente. Elas se encararam por alguns segundos antes de sorrirem significativamente uma para a outra. — Pronta?


Ela não conseguia acreditar no que estava prestes a acontecer em sua vida. Quando colocou os pés no Sheraton WTC Hotel parecia que estava dentro de um cubo de cristal imenso completamente iluminado; o lobby era decorado de colunas espelhadas por todos os lados; o teto era tingido de por um tom em creme que trazia mais sofisticação ao lugar, como se isso fosse possível; e o piso e as paredes pareciam ser feitos de um mármore terroso. Havia alguns sofás vermelhos destacados no centro do salão, rodeando uma pequena mesa de vidro que estava decorada por um buquê de inúmeras tulipas multicoloridas. Era tudo muito bem equilibrado. As divisórias do lobby eram de um metal escuro e retorcido, quase que um estilo rústico ou medieval, mas não deixava o ambiente tão pesado graças às longas e delicadas cortinas brancas que estavam simetricamente arrumadas nas bordas das altas janelas de vidro. Era como um sonho, tudo muito brilhante e irreal.

— Sejam bem-vindas ao Sheraton. — disse a recepcionista que estava do outro lado do balcão negro próximo a entrada do hotel. — Vocês já possuem uma reserva ou gostariam de providenciar sua estadia?

— Nós já fizemos a reserva. — Jess se aproximou do balcão e entregou os comprovantes para a mulher, que os conferiu atentamente antes de fazer um segundo registro no computador.

— Quarto de n° 75. Vieram para o evento Rising Con, certo?

— Sim! — elas responderam juntas, ambas com o mesmo entusiasmo. A recepcionista sorriu antes de entregar dois folhetos grossos e dois cartões eletrônicos para a fechadura do quarto.

Um garoto alto, de cabelos castanhos, vestindo uma roupa vermelha escura de detalhes negros, aproximou-se e pediu educadamente para que as duas o seguissem até o quarto providenciado. Ele pegou as mochilas que elas trouxeram e foi em direção aos elevadores, acompanhado por duas garotas que mal conseguiam controlar sua felicidade.

O quarto era completamente branco, com exceção de algumas rosas vermelhas que estavam em um vaso de vidro, no criado mudo central. Duas camas de solteiro, impecavelmente arrumadas e cobertas por uma colcha branca de rendas delicadas, estavam uma ao lado da outra, ambas voltadas para uma televisão de plasma fixada na parede. As mochilas foram deixadas em uma poltrona, e assim que o garoto se retirara e fechara a porta, as duas correram ao mesmo tempo para cima das camas e começaram a gritar e pular animadamente.

— É tudo tão perfeito! — as duas subiram na mesma cama e se abraçaram.

— Eu sei!

— Eu acho que eu vou chorar.

— Tudo bem, eu choro com você. Não tem problema.

Elas começaram a rir e voltaram a pular em cima da cama.