La Belle de Jour
Meu nome?
Meu nome não importa. Ele é um nome como qualquer outro. Qualquer vagabundo teria um nome como o meu. Qualquer um que foi abandonado à própria sorte já teve um nome alguma vez na vida, qualquer um que foi amado, já teve seu nome pronunciado da forma mais doce possível. Qualquer um!
Mas se insiste em saber, me chamo Carlos. Durante minha adolescência admirava meu nome por causa de um homem: Carlos, o Chacal. Queria ser ele por toda lei, um assassino frio e eficiente, que nada teme que nada ama. Não passava de delírios adolescentes. Eu não tinha o que precisava para ser um assassino, acabar com a vida de uma pessoa sem se preocupar com a sua história, seus medos, seus anseios. Queria poder matar sem me preocupar se o outro teria uma vida, alguém que o amasse, que sentiria sua falta ou se o mundo se tornaria um lugar melhor sem ele. Doce ilusão.
Hoje estou aqui, diante de mais um a quem a vida não importa. Seu passado e seu futuro não são mais relevantes, há apenas o hoje e hoje, irá morrer.
Sempre o mesmo olhar: medo. Em breve ela mudará, tentará me convencer que não devo puxar o gatilho, tentará me oferecer dinheiro para que eu poupe sua miserável vida, que tem filhos para criar, que nunca fez mal a ninguém. Esta é a parte em que mais me divirto. Sim, me recrime, me divirto eliminando elementos como ela da sociedade, mas, antes que pense, não sou nenhuma espécie de justiceiro que quer purificar a vida destas pessoas imunda a minha volta, não busco a harmonia desta sociedade patética e individualista, pois, na verdade, busco o desequilíbrio. Escórias como ela são necessárias para que a natureza siga seu curso. Mas que se foda o curso natural da vida!
Até cinco dias atrás, está mulher, que outrora fora bela, era secretária numa multinacional. Nada de mais, uma mulher com uma história comum a muitas mulheres da sua geração. Dos seus 26 anos, não ouve nenhum momento que sua beleza e altivez não fora elogiada por alguém. Nascera às 17h46 de uma quinta-feira, a primeira do ano de 1980, era a segunda filha de uma família reconhecidamente tradicional e decadente de Belo Horizonte. Para fugir das dívidas e tentar nova vida, seus pais foram tentar a sorte em Passo Fundo quando ela tinha seus 6 anos, o que lhe dá um sotaque capaz de minar qualquer muralha de homens e mulheres a sua volta desde que veio pra cá, há 4 anos atrás. Formada em Administração, não tardou a conseguir emprego numa empresa de pequeno porte que trabalhava com calçados de couro. Foi lá que conheceu, segundo ela, uma das paixões mais fulminantes e, como não poderia deixar de ser, efêmeras de toda sua vida. Viveram 1 ano e meio juntos e logo após o nascimento de um menino que continha os olhos verdes da mãe e a pele negra do pai, se separaram. O amor acaba, como a vida na Terra um dia se extinguirá e ela partiu para uma nova casa, um novo emprego, uma nova vida.
Sempre teve gostos hora extravagantes, hora comuns. Sua vida sexual nunca foi muito diferente daquelas mulheres a sua volta, umas sempre fazem mais e outras fazem menos, mais dia ou menos dia, todas acabam fazendo. E foi numa noite comum, depois de algumas garrafas de martini e alguns baseados na casa de amigos que conheceu alguém que iria mudar sua vida. Demônio, é assim que se a ele refere olhando para mim agora. "O Inimigo tem muitas faces, é preciso tomar cuidado." Já ouvi isso várias vezes daquelas pessoas que ficam pregando na rua como se fossem os antigos profetas e, no fim, todos estão mortos hoje.
Casualidade? Destino? Realmente não acredito em nada disso. O bem e o mal são a mesma coisa. O certo sempre será mais certo que o errado? Duvido. E duas semanas após aquele encontro, alguns testes extenuantes e alguma ajuda, ela conseguiu um dos empregos mais cobiçados da região. Secretária executiva. Soa tão imponente que remete aos antigos títulos de Condessa ou Duquesa. Sua voz preenchia todo ambiente e demonstrava tanta segurança, que ninguém nunca ousou questioná-la mais de uma vez, já que ela tinha todas as respostas. Hoje, ela não encontrou "The Million Dollar's Question": Por que estou preste a eliminá-la?
Hábitos não muito interessantes: acorda todo dia às 6h da manhã, sai para academia às 6h30, chega às 6h35 e começa a se exercitar às 6h45. Da preferência à exercícios que elimine a barriga, empine o bumbum e que impeçam que os seios fiquem flácidos. Isso durante às segundas, quartas e quintas, terças e sextas, prefere a piscina, quarenta minutos nadando a deixam pronta para enfrentar as turbulências do seu dia. Às 8h já está de volta em casa, banha-se, troca de roupa e chega à empresa às 9h. Ao entrar, uma estagiária já lhe entrega os relatórios de tudo o que passou na sua ausência, pede uma xícara de café e começa a se preparar para as muitas reuniões que se dará no decorrer do dia. Almoço geralmente às 14h no restaurante da empresa (ex-namorada do dono da empresa que terceiriza este serviço), muitas vezes almoça no restaurante que fica à 20 minutos, principalmente quando está com algum cliente ou fornecedor ou quando está enjoada de ficar olhando para a cara das mesmas pessoas. Logo após o almoço, telefona para a babá de seu filho (ele ficou com o pai) e fala cerca de 5 minutos com ela, pergunta como ele está, se esta tendo algum tipo de problema e algumas outras coisas irrelevantes. Sai por volta das 19h30 e, em dias normais, vai se encontrar com alguns amigos num bar do outro lado da cidade. Foi aí que a peguei.
Estava entrando em seu carro 2.0, quatro portas, trio elétrico e ar-condicionado quando a abordei. Não queria feri-la seriamente, por isso, uma arma de choque seria o mais adequado. Joguei-a no porta-malas do seu carro e parti para o seu purgatório. Expiar todos seus pecados não seria uma tarefa fácil, muito menos indolor, logo precisava começar o quanto antes para chegar ao fim daquilo no tempo programado.
Dois dias no escuro, amarrada numa cama confortável foi suficiente para ela me oferecer tudo o que tinha: carro, casa, dinheiro, informações confidenciais sobre a sua empresa, seu corpo e toda sorte de porcarias que pareceriam tentadoras a qualquer outro que não tivesse uma missão a cumprir. Depois de 36h a observando se debater na cama, lhe dei a certeza que ela não queria ter. "Você vai morrer." Nunca ouve certeza tão absoluta como aquela para ela, ou para mim, e ela entrou em pânico e começou a chorar copiosamente, não que já chorará muito nestas últimas horas, mas agora era um choro de real desespero. Chamou várias vezes pelo nome dos pais, principalmente do pai e, depois de algumas horas, voltou a dormir.
Nada mais é importante além de sobreviver. A maioria das pessoas quando se vêem no limiar da vida, quando descobrem-se em situações irreversíveis abandonam todos seus princípios, sua ética, seus ideais. Beijam bandeiras que antes repudiavam, incitam a prática que antes abominavam, sorriem falsamente, só para tentar acender uma centelha de piedade no coração do seu algoz. Como é possível respeitar estas pessoas? Como se pode sentir pena daqueles que não querem lutar por aquilo que acreditam? Como elas querem ser perdoadas por atos que em nenhum outro momento se arrependeram?
Hoje ela implora por clemência, mas ela nunca a ofereceu a ninguém.
Enquanto lentamente afio minha faca observo seus olhos, repletos de ódio, medo e esperança. Sim, ela me mataria se tivesse esta chance, ela mataria qualquer um para seguir com sua vida miserável. Hoje é o quinto dia que ela está comigo. Resistiu tão bem quanto alguém criado como ela resistiria a choques elétricos. Não usei ácido nem cortei sua pele, não queria desfigurá-la, não é pra isso que estou aqui. Ficaram apenas marcas nos pulsos e nos calcanhares, lugares onde prendi os fios, e as marcas da sujeira por ela expelida nestes últimos dias. O ar esta particularmente infecto, vômito, suor, fezes, urina e desespero se juntam e dão à atmosfera um clima de filme "B", mas não, esta é uma obra noir e ela vai ter que apreciá-la, até o último instante.
Da sua boca não são mais emitidas palavras, apenas grunhidos capazes de enlouquecer qualquer presente. Durante as sessões diárias de choques, seus gritos seriam capazes de despertar os mortos, para seu azar, nem mortos haviam por perto, só o vazio cobria aquele lugar. Como um animal condicionado, ao acender da lâmpada de um pequeno gerador, seus gritos já enchiam o ambiente, mesmo estando desligado. Por vezes dava água para aplacar sua sede, por vezes vinhos, por vezes água salobra, por vezes vinagre. Nada poderia ser tão doce para ela como aquilo, não se pode reconhecer o céu se não se conhece o inferno.
Mas já é tarde, tenho muito a fazer ainda. Só posso lhe dar mais duas horas, o tempo muitas vezes é meu inimigo, por isso a desamarro, seu rosto agora cadavérico teme que este seja o fim de tudo, mas não, é apenas o começo. Ponho-a de pé, não há como esconder meu asco, não tanto pela sujeira nela grudada e sim por ter cogitado possuí-la logo que a trouxe para cá, fato que depois de 12 horas ela faria de bom grado para conseguir sua liberdade. A ponho de pé, suas pernas quase não agüentam consigo mesma, lhe entrego a faca e viro as costas. Não vislumbrei seu rosto, estava já muito cansado dele, mas percebi que um misto de incredulidade e euforia a preencheu, ela não sabia por que havia lhe dado a faca que antes estava afiando, mas logo ela saberia. No cômodo onde estávamos, havia apenas uma cama onde ela estivera amarrada e um velho baú, a única luz do recinto provinha de uma lâmpada dependurada no teto, vindo de uma rede elétrica precária (seria impossível utilizá-la para os choques). Encostado na parede, lhe falei pela segunda vez, desde que a levei:
"Bom dia, são exatamente 8h43 de domingo, dia 5 de março de 2006, ou seja, desde quarta-feira você está comigo. Você já me ofereceu tudo que podia para que eu lhe deixasse viver, sexo, dinheiro, perdão incondicional pelo que 'lhe fiz' e, como pode ver, eu não aceitei. É bom ser honesto de vez em quando."
"Como você pode ver, esta é uma faca tática militar, não é de exclusividade do exército, pode ser comprada por qualquer pessoa, mas achei que ela seria a ideal para você neste momento. Ela está afiada e, nas mãos de profissionais, é tão letal quanto qualquer outra arma, mas mesmo sendo manuseada por um leigo pode representar um grande perigo para o opositor. Você esta fraca ainda, ficou deitada recebendo choques constantemente durante três dias, seus pulsos estão vermelhos feito brasas, em carne viva, e você está desidratada. Disso tudo já sabe, mas venho aqui de dar uma oportunidade de sair daqui respirando, mesmo que seja por alguns poucos anos."
"As opções são as seguintes: você pode tentar a sorte e me atacar com a faca. No meu bolso esquerdo estão a chave de um carro e mais de trezentos reais, suficientes para você chegar bem longe e rápido. Só que como você, não almejo a morte agora, por isso me defenderei e caso vença, ficarei aqui com você por mais dois meses e não serei tão bonzinho como fui até agora."
Seus olhos se encheram de esperanças, apesar de ser um animal acuado, ela planejava como e por onde poderia me atacar mais facilmente, na atual situação nossa diferença de estatura não seria levada tão em conta.
"Abra o baú que está a sua direita" – continuei, "dentro você vai ver uma criança, filha de uma viciada em crack, a mãe dela a trocou por um punhado de pedras. Fique tranqüila, eu a peguei ontem a noite e ela está sedada, não vê nem ouve nada há mais de 12 horas mas está bem, dentro de aproximadamente uma hora e meia ela acordará. Esta criança já nasceu viciada, seu cérebro é muito pouco desenvolvido e ela provavelmente terá dificuldades para aprender a ler, tem três anos, corpo de dois, mal fala, não anda e, se atingir a vida adulta, será um farrapo humano sem a mínima condição de ter uma vida descente como as outras pessoas. Como você, ela é um cadáver que teima em não repousar. Deixei-a com seus próprios andrajos, não quis trocá-la, não seria necessário, apenas cobri seu rosto, seus rosto é por demais triste."
"A segunda opção é você matá-la, uma única facada em seu peito seria suficiente para curá-la de toda dor que sentiu e sentirá e você poderá ir pra casa podendo dizer que ajudou alguém que necessitava, se quiser, considere isso como uma eutanásia. Mas aconselho, não olhe em seu rosto, ou então não conseguirá dormir pro resto de sua vida."
Seus olhos demonstravam apenas incerteza, mas isso não demorou muito, ela sabia que nem se estivesse em sua plena forma física e se tivesse começado a as aulas de jiu-jitsu que gostaria de ter começado no ano passado conseguiria me derrubar. Foi resoluta na direção do baú, iria eliminar aquela criança. Iria livrar o mundo de um estorvo ao seu progresso e livrá-la também de toda dor e sofrimento que o mundo a infligiria. Era uma vida por outra, conseguiria de volta a sua altivez e seu futuro promissor tirando mais um que só seria um preto fodido no mundo.
Ao abrir o baú não pestanejou, desferiu não um, mas cinco golpes com toda a sua força, toda a sua raiva, todo o seu medo naquela pequena boneca que não se mexia, que ela não conseguiu distinguir se era menino ou menina, aquilo já não importava, um dos dois tinha que morrer e que fosse o outro.
Ao término da quinta facada, deixando-a cravada na criança caiu no chão e começou a chorar, chorava como a criança que não chorou pois nada sentia e via-se livre novamente, já que eu não tinha motivo pra não cumprir com minha palavra, já havia obrigado a cometer infanticídio, um peso que ela teria que levar pro resto da vida. Sim, estava livre, podia ir agora pra onde quiser, esquecer daquilo com gramas e mais gramas de ânimo que conseguia com seus amigos.
"Sabe, não foi difícil pega-lo, as pessoas acham só por que estão no interior nada acontece. Foi uma viagem rápida e sem muitos percalços. Cinqüenta quilômetros de ida e de volta. Ele estava assistindo um filme junto com a sua nova namorada. Os matei com a mesma faca que está naquela criança agora. Somente o matei por que ele considerava que apenas um sistema de segurança vagabundo o protegeria, se ele se desse ao trabalho de ter um cachorro, o manteria vivo, mas acho que ele prefere estar morto do que saber que a mulher que ele tanto amou um dia, e acredito que ainda amava, matou seu próprio filho para continuar viva. É a lei da selva, e você preferiu viver, mas acho que ele não levaria isso em conta, como eu também não levo."
"Embaixo da cama está seu celular, carteira e a chave do seu carro, você é livre pra ir onde quiser. Só saiba que seu filho teria um futuro brilhante, mais que o seu, pois o pai dele realmente o amava e faria de tudo para protegê-lo, inclusive mantê-lo longe de você."
Saio pela porta e vou embora. Ela ainda me dá nojo, mas agora não posso fazer mais nada. Terminei meu trabalho com alguma folga, tenho tempo de parar no bar e tomar um pingado e comer um pão na chapa.
