I

Eu observo a vista pela janela, um tanto cansado. O dia está tedioso, e a pessoa a qual eu espero dá sinais de que não virá tão cedo. Eu, também, não desejo vê-la...

Há poucos dias atrás soube ter um irmão, o qual jamais conheci. Como meu pai morreu há pouco, o fato de ele ter um filho ilegítimo já não afetaria sua reputação. Ao que parece, esse descendente quer uma audiência comigo. Inferno! Por que não permaneceu incógnito? Agora que lhe apraz, surge do nada e, mesmo que seja sangue do meu sangue, não passa de um estranho para mim. Perder minha integral herança, assim, é duro, embora possa parecer mesquinho.

Entro em um dos meus aposentos particulares e beberico um pouco do vinho que os criados trouxeram há pouco. É doce e acre ao mesmo tempo... e esquenta minha alma. Hum... lá fora está frio, pois estamos em pleno inverno, e já começa a escurecer. Fico feliz pelas possibilidades de esse chamado "meu irmão" vir hoje serem ínfimas. Ao menos mais um dia como sendo o único herdeiro da coroa...

Levanto-me e decido ir à minha sala de banho, já guarnecida por meus serviçais. Minha mente está mais tranqüila, talvez por causa da bebida... e sinto que posso relaxar por completo.

Começo a despir minhas roupas, pensando no que virá a seguir. logo após a "visita" desse "meu irmão". A água está morna, acolhedora... coloco um dos pés na tina d'água e penso que não vou querer sair dela tão cedo... e volto a pensar em meu novo parente. Como veremos um ao outro quando nos encontrarmos? Como completos estranhos? Não sei... nunca soube o que é lidar com um irmão antes, e pode ser que por termos genes parecidos logo nos identifiquemos. Porém, existem tantos irmãos com personalidades adversas... ah, melhor esquecer essa história!

Sento-me no fundo da banheira e despejo alguns aromatizantes e essências nela. Nada melhor do que um banho quente num dia de inverno para descansar os músculos... nada...

Fecho os olhos e fico em silêncio, apenas deixando minha mente vagar pelo nada... quando repentinamente sinto a claridade do local ser suprimida por completo. Encontro-me em total escuridão, não conseguindo enxergar um palmo em frente ao nariz, quando começo a escutar passos, um tanto sorrateiros.

Levanto imediatamente, tentando ouvir ou pressentir a presença da pessoa, ou sua direção. Os passos repentinamente param.

- Quem está aí?! - pergunto, em estado de alerta.

Não obtenho resposta. Meu coração começa a acelerar, ao passo que olho para todos os lados, tentando depreender algum sinal do estranho. Repentinamente, ouço sua respiração suar suave perto de mim. No mesmo momento desfiro um soco naquela direção, e atinjo um corpo. Ouço um gemido de dor, e continuaria a socá-lo, caso duas mãos não segurassem meu braço, e uma voz pedisse, quase suplicando:

- Pare! Eu não vim aqui para feri-lo... senhor... majestade...

É uma voz de homem. Abaixo a guarda aos poucos, mas não deixo de estar alerta.

- Quem é você?! - Indago novamente.

- Prefiro... manter-me incógnito por enquanto.

- Por que? Se queria uma audiência honesta comigo, por que não a marcou com meus oficiais, e às claras? Veja se isso é modo de abordar ao rei, interrompendo seu banho e apagando todas as luzes?! Identifique-se imediatamente, ou chamarei os guardas!

- Não é necessário... se o senhor quer, eu me retiro sem demora.

Ouço passos se distanciando, a respiração do estranho agora pesada. A porta range ao ser aberta.

- Espere! - chamo-o.

- O que deseja, senhor?

- Qual a sua finalidade em vir aqui dessa maneira?

- Melhor não falar nada agora. O senhor está com raiva e não me escutará bem.

- Não estou exatamente com raiva; apenas indignado com sua forma de apresentação.

- Perdoe-me, mas não posso revelar-me por hora.

- Por que não?! Ora, quem se esconde não quer fazer boa coisa! Ademais, não sabe como é perigosa a vida de um monarca? Quanta gente não desejaria ter a minha cabeça na ponta de uma estaca, apenas por questões políticas?

- Entendo tudo isso. Estou errado, mas... se na corte e fora dela as pessoas apenas se julgam pelo que seus títulos dizem, as politicagens, como o senhor mesmo disse, pensei que seria melhor lidarmos um com o outro sem sabermos quem somos, para que não haja um pré-julgamento injusto.

- Ninguém age assim. A sociedade é deveras instável para que não precisemos de pré-requisitos.

- O senhor me desculpe, mas assim jamais conheceremos de fato as almas, as verdadeiras essências daqueles com os quais lidamos.

- Bobagem! Isso é sentimental demais. Estamos no corruptível mundo dos homens. Dos homens! Não somos anjos, santos ou o que quer que exista nesse aspecto.

- A Doutrina diz que Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança...

- Mas... espere, aonde quer me levar com toda essa conversa?! Ande, diga logo o que quer!

- Apenas isso. Conhecê-lo como pessoa quando despe-se das insígnias reais, não precisando mais representar um papel e sendo quem realmente é.

Fico intrigado. Suas palavras são raras no mundo onde vivemos. Por isso a próxima coisa que me vem à cabeça é incredulidade. No entanto, se eu continuar refutando não vai adiantar nada.

- É assim, não é? Pois saiba que também sei me defender sozinho, e caso a sua intenção não seja exatamente a que declarou agora há pouco, se arrependerá.

- Não precisa dizer isso, majestade. Eu já o percebi através de seu soco...

O estranho dá um riso abafado. Em seguida continua falando:

- De qualquer forma, não o decepcionarei caso o senhor me dê essa oportunidade.

Ouço seus passos ecoando pelas paredes da sala de banho, indicando que ele se aproxima de mim. Recuo, ainda com receio da idéia de estar sem maiores defesas, nu, no escuro, diante de um completo estranho.

- Sei que o que faço é inusitado. Eu deveria estar me apresentando de maneira mais formal, mas o senhor não precisa temer a minha pessoa.

Sua voz soa muito próxima a mim, e eu o socaria novamente, mas sinto de repente o toque gentil de uma mão sua em meu ombro. É estranho... uma energia benéfica passa dela para mim, e eu me sinto enlevado... mas... que tolice! Esse homem pode me matar a qualquer momento, e eu...

- Majestade, por enquanto não me revelarei ao senhor, mas... caso queira saber melhor como sou, pode me tocar.

Estou achando tudo isso muito ridículo. Mas já que ele sugeriu, e eu estou cansado de tanto mistério...

Como a principal identificação de uma pessoa se faz por seu rosto, estendo minhas mãos e sinto primeiro sua face direita. Pela textura da pele, parece ser jovem. Percorro seu rosto com os dedos e pelo que posso depreender seu nariz é afilado, seu maxilar é estreito, seus lábios são finos porém cheios. Em seguida pego uma mecha sua de cabelo. É liso como o meu, e parece ser bem longo.

- Por um acaso você sofre de alguma doença contagiosa? - indago - Ou é algum notório criminoso?

- Nenhuma das duas coisas, majestade.

- Então por que se esconde? Por feiúra não parece ser, pelo que senti.

- Antes fosse! É por outro motivo, senhor.

- Não pode ser apenas para que eu não o julgue precipitadamente.

Ele não responde, e encosta a outra mão em meu rosto. Recuo, mas logo penso que se uma mão sua está em meu ombro e a outra em minha face, não há muitas possibilidades de ele me atacar. Aquela energia se desprende de si novamente e me toma, acalmando-me como se fosse um bálsamo. Reclino o rosto em cima de sua mão, sentindo meu receio se esvair. É como se eu já o houvesse conhecido antes... aliás, é como se eu sempre o conhecesse.

Uma gota quente molha os dedos de minha mão, a qual ainda toca o rosto dele. Lágrimas?

- Obrigado, majestade. Obrigado por dividir esse momento de sua intimidade comigo!

A voz do intruso sai embargada. Não compreendo a atitude dele.

- Por que chora, estranho?

- Por nada, senhor. Bem... eu já me vou. Não o incomodarei mais por hora.

Suas mãos abandonam meu corpo e eu ouço seus passos ecoarem outra vez pela sala. A porta se abre e vejo um fraco rastro de luz vindo de fora iluminar seu perfil. Não posso ver nada além dos contornos de seu corpo esbelto.

A porta se fecha, e o breu toma conta do lavatório novamente. Ainda permaneço um tempo parado, refletindo sobre o que acabou de ocorrer.

- Diabo! Vou mandar reforçar a segurança do castelo assim que acabar este banho.

Saio da banheira por um pouco e procuro, tateando, os castiçais e lamparinas, os quais aos poucos acendo. Como o tal estranho conseguiu apagá-las todas tão rapidamente e sem se fazer perceber? Ao encontrar-me novamente na claridade, inspeciono o recinto para ver se não há mais nenhum espião ou coisa do gênero. Assim que certifico minha segurança, volto ao meu banho, no entanto sem conseguir relaxar novamente. Lavo-me depressa e logo me seco e visto. Ao sair do lavatório ainda observo um lado e outro, para ver se o estranho ainda estaria presente. Nada.

Decido fazer uma refeição rápida e em seguida ir dormir, já que o dia seguinte será provavelmente atribulado. Assim que deito na cama, lembro que meu irmão não veio para a chamada audiência. O que era para ser um alívio já não o é mais, pois o estranho que me visitou na hora do banho não sai de minha mente e deixa alguma dificuldade em meu sono, por mais que eu tente esquecê-lo.