Memórias de um tempo não vivido
Oh! Como os tempos mudaram – suspiro de inquietação, dirigindo-me ao parapeito da janela uma vez mais. O dia encontrava-se belo, aliás como sempre… A Natureza abandonara-nos, e com ela, fora-se a dádiva do mistério. Ansiava ser surpreendida por uma dia de chuva, deleitar-me com uma bela flor que plantaria no jardim… Reflicto com mágoa nas recordações que nunca me pertencerão e suspiro novamente, desta vez desejando que o mundo robótico nunca nos tivesse encontrado. A naturalidade desvanecera-se… Nunca nada voltaria a ser como dantes, onde eram as árvores que nos davam a vida, a água que nos saciava a sede e as sensações que nos dominavam a alma. Agora, agora nada mais existia, somente meros componentes robóticos que nos limitam a vida, o pensamento, a própria existência. Tudo era aparente, a relva que observava todos os dias pela janela não passava de um sistema mecânico, que apenas existia para nos fornecer oxigénio, permitir a nossa vida neste mundo de ilusão. Fecho os olhos e imagino um mundo natural, onde criávamos a nossa própria essência e tudo que nos pertencesse, apenas a nós dizia respeito.
-Hey! Ailura? – ouço uma suave e aveludada voz chamar-me para a realidade e não consigo deixar de sorrir, ao saber que Seth chegara.
-Oh! Boa noite! – respondo na calma e débil voz do costume. Como estás?
- Ailura…Devias estar a descansar, é tarde. Já tomaste o antídoto? – Seth questiona num tom apreensivo, as suas feições transparecendo a preocupação que o envolvia naquele momento.
- Oh…O antídoto – suspiro novamente mas desta vez ao me recordar da frágil condição que adquirira desde o acidente… Vivíamos num aparente mundo utópico, mecanismos controlavam as nossas decisões, avaliavam os nossos pensamentos, condicionavam o funcionamento do nosso próprio organismo… Um dia…Um dia ocorrera uma falha. Alguém entrara no sistema, os robots deixaram de desempenhar a sua função. Já não havia quem nos garantisse a saúde do nosso organismo, já não havia quem afastasse a doença, enfim, já não havia quem nos protegesse. O mundo decaíra e com ele a vida humana. Estávamos tão habituados, tão presos naquela pequena redoma robótica, que havíamos deixado de produzir as nossas próprias defesas. Ora naquele dia, naquele dia o sistema falhara, a doença voltara e há muito que carecíamos de qualquer tipo de capacidade de sobrevivência. Vivo com esta condição desde então, não sabendo quantos dias me restam, quantos momentos ainda posso experienciar.
- Ailura! Tens de cuidar de ti… Ouve – disse Seth, de repente, mudando o assunto - O dia que tanto esperávamos aproxima-se. Falei com os meus amigos refugiados. Eles garantem-nos refúgio na comunidade secreta. Havemos escapar a esta robótica prisão e tu, e tu, Ailura, eu sei que ficarás boa. Não descansarei até recuperares, não posso, não posso viver sem ti… - As lágrimas escorrem pelo rosto de Seth, os seus olhos azuis, brilhantes e marejados de lágrimas.
- Oh Seth! Não te abandonarei… Não te preocupes, abandonarei este sítio contigo, viverei o resto dos meus dias a teu lado. Viverei como refugiada, se tal significa permanecer contigo. Talvez, talvez num mundo em que a tecnologia abrande, a Natureza regresse e eu recuperarei assim como, bem espero, os restantes da raça humana.
