Ódio e Amor
O dia despertava com uma ponta de melancolia, assim como Lyra, em mais uma torturante manhã das férias de verão. Para o resto de Londres, parecia somente o começo de mais um dia de trabalho. Pessoas iam e vinham nos trens do metrô, lotados e barulhentos. Longos caminhos percorridos naquele aperto e desconforto, alguns deles até pensavam: "Deve haver uma maneira melhor para se locomover por essa cidade maluca!", e realmente havia, mas trouxas comuns não sabiam.
Asriel levantara naquela manhã e, assim como em todas as outras, escovara seus dentes, tomara seu banho, e fora até a cozinha, se juntar à sua mulher, Marisa, e sua filha, Lyra.
- Bom dia, meu amor! - Marisa disse docemente com um sorriso. - Como passou a noite?
- Bem, querida! - E retribuindo ao seu sorriso, deu-lhe um beijo na bochecha. - E você, minha pequena? - Continuou ele se referindo à menina loira sentada na ponta da mesa, olhando vagamente através da janela.
- Ih, meu pai! Quando você vai se acostumar que eu cresci? - Aquele, realmente não era um dia de bom humor para ela.
Asriel nada falou. Ele conhecia o temperamento de sua filha e, apesar de todo o esforço, nunca conseguira uma ponta de compreensão da parte dela. Sua mãe, no entanto, apenas lhe deu um olhar severo, mas também nada disse. O resto do café da manhã correu num silêncio quebrado, às vezes, por um "Passe a manteiga, por favor." e só. Apenas no momento em que Marisa se levantou para se despedir do marido, foi que eles voltaram a falar.
- Bom dia de trabalho, querido! - E ela lhe deu outro beijo na bochecha.
- Para você também! - E ele retribuiu. - Tchau, Lyra, um bom dia para você. - Falou com um tom frio e forçado. Não gostava de falar com ela daquele jeito. Asriel não lhe deu chance de responder. Tinha medo de receber outra resposta ríspida, e isso o magoava muito, todos os dias. Ele apenas desaparatou dali mesmo, para o Ministério da Magia.
"Por que ele tem que fazer isso bem aqui, no meio na cozinha, comigo e com minha mãe presentes?" Pensou Lyra com ódio. "Poxa, tudo bem que ele recebeu a tal carta aos onze anos, aquela bendita carta que só os privilegiados recebem! Mas não, ele não me respeita!"
A verdade era essa. Toda a frieza do relacionamento pai-e-filha que eles tinham, precedia do dia primeiro de setembro de três anos atrás. Foi nesse dia que ela se convenceu de que não receberia a carta de Hogwarts, dizendo que ela tinha uma vaga na escola de Magia. Foi nesse dia também que ela se despediu de seu melhor amigo, William, pois ele iria para um colégio com instalações internas, e não poderia passar os fins de semana com ela, como fizeram suas vidas todas. Foi nesse mesmo dia que William embarcou no Expresso Hogwarts na Plataforma 9 e meia na Estação King´s Cross. O tão desejado expresso. Lyra sonhou com aquele trem, assim como chorou de noite, em sua cama.
- Lyra, minha filha, já terminou com o seu prato? - Sua mãe a despertou dos seus pensamentos.
- Já sim. Obrigada, mãe.
Ela se retirou da cozinha, deixando a mãe lavando os pratos. Foi para seu quarto tentando afastar o ódio de sua cabeça. Talvez ela devesse ler um livro, quem sabe apenas olhar pela janela. Não sabia ao certo. Só sabia que odiava as férias de verão! Em breve, mais uma vez, ela teria que dizer "Adeus" para seu amigo. Agosto já estava quase terminando...
Pensando nisso, ela entrou no seu quarto e sentou-se perto da janela. De lá, ela podia ver o quarto de William, que era seu vizinho desde que se lembrava. Ele não parecia estar lá, apenas o vento balançava as cortinas de ambos os quartos. Lyra se levantou e olhou mais fixamente, e teve certeza que ele não estava no quarto.
"Que pena! Queria mesmo falar com ele..." Não queria apenas falar com ele, ela sabia. Queria estar com ele o tanto quanto pudesse! Aquelas corujas que vinham durante o ano, trazendo cartas e presentes de nada adiantavam! Ela queria abraçá-lo...
- Oi, Ly! O que é que você está fazendo aí parada? - Perguntou um rapaz de cabelos e olhos castanhos escuros de uns quatorze anos.
- Ah! Oi, Will... Eu tava aqui... olhando um esquilo que passou pelo fio do poste! - Disse ela afastando seus pensamentos.
- Poxa, deixa eu ver! - Ele se aproximou da janela olhando para o poste mais próximo.
- Nem sei pra onde ele foi. Quando parei pra olhar pra você, perdi ele de vista! - E fez uma cara de "Que pena!".
Ele retribuiu o olhar e sentou na cama dela, que servia de sofá para os amigos. Segundos depois, ela se sentou também.
- E aí? Quais são seus planos para hoje? - Perguntou o rapaz.
- Ham... Eu estava pensando em ficar aqui, sem fazer nada! Você sabe como eu adoro o tédio! - Disse a menina brincando.
Ele riu. Gostava dela. Sempre gostou. Ela o fazia rir, e junto dela, nada parecia monótono. Tinham sempre o que fazer, o que conversar.
- Estava pensando em dar uma volta, quer ir?
- Uma volta, aonde? - Não era normal ele propor passeios assim, sem anunciar o lugar "Super, ultra legal!", como ele mesmo dizia.
- Ah, é um lugar legal, - Ele passou a mão nos cabelos meio sem jeito - mas se eu te disser onde é, você não vai querer ir...
- Ih! Eu não gosto disso! Você mesmo está dizendo que eu não vou gostar! Então eu não vou, ué!
- Mas é legal! Você não vai querer ir, mas é que o quê eu quero fazer, só tem lá! - Ele se empolgou e começou a gesticular muito.
- Se é tão legal, me diz onde é? Afinal, eu conheço todos os lugares legais! - Brincou ela mais uma vez.
- É, você até conhece o lugar...
- Então, conta, vai! Vai! - E ela começou a pertubá-lo, sacudindo os ombros dele e rindo muito, até ele finalmente contar.
- Certo! Eu conto! - Disse ele risonho.
- Isso! - Ela resolveu se acalmar.
- Mas só se você jurar que vai, independente de onde for! - Lyra não fez uma cara de quem concordava então ele continuou... - Pelo menos faz um esforcinho! Vai, por favor! - Foi a vez dele implorar.
- Tá... Diz logo!
- Você quer pra o Beco Diagonal comigo?
Ele sabia que ela tinha ódio de tudo que tinha a ver com aquele mundo. Como ele pôde pensar em pedir sua companhia para ir a tal lugar? Por acaso ele queria magoá-la? Mostrar as coisas às quais ele tinha acesso e ela não? Ele seria capaz de fazer esse tipo de coisa com ela? Ela achava que não. Então, porque ele queria que eles fossem lá?
Tudo isso passou em uma fração de segundos na cabeça de Lyra, enquanto o resto do sorriso sumia do seu rosto. Ela se levantou da cama e andou até a janela, antes dela chegar lá e olhar a rua, ele falou:
- Ly, eu sei que você não gosta do lugar, mas tem tanta coisa legal lá que eu queria te mostrar! Se você me se desse uma chance você ia ver que pode se divertir lá...
- Will, você sabe como eu me sinto em relação a isso. - Ela se virou e o encarou. - Acho que não foi legal da sua parte me fazer essa proposta!
- Você não acha que é você quem deveria ter superado isso? - Disse um pouco chateado. - Afinal, já se passaram três anos, e você continua implicando com isso! "Se não pode derrotar seu inimigo, una-se a ele!".
- Não é bem assim! Você sabe como eu sou! Jamais me uniria ao meu inimigo. - Falou ela metaforicamente.
- Mas você pode se aproveitar dele! É realmente uma pena que você não tenha nascido para isso, mas já sabe da existência dos bruxos, e ninguém tem o direito de apagar sua memória! Você é filha de um bruxo! E não é porque você não tem poderes que você não possa se divertir com os dos outros!
Nesse ponto Lyra já estava à beira de um ataque de nervos, o nó em sua garganta impedia sua fala e o ódio era visível em seus olhos azuis. Tinha que responder alguma coisa, mas sabia que se abrisse a boca, se derramaria em lágrimas.
- Eu... - Dito e feito. As lágrimas saltaram como se estivessem presas há séculos. No mesmo instante Will foi ao seu encontro e a abraçou fortemente.
- Shii... Calma... - Ele dizia. - Sei que fui duro com você, mas um dia alguém tinha que dizer.
- Eu... Eu só não... consigo... aceitar... Porque Will? Porque eu não fui com você? - Ela soluçava sem parar no braços do amigo que passava a mão nos seus cabelos lisos até o meio das costas.
- Não sei... Sempre me perguntei o mesmo.
- Eu nunca entendi porque você teve que ir e eu não! Era muito mais provável o contrário! Eu tinha certeza que um dia eu ainda ia receber a carta...
- Mas não recebeu... O que você pode fazer agora?
- Chorar... - Mais soluços.
- Não diga isso! Vamos, Ly!
Nossa, como ela gostava que ele a chamasse assim. E como se sentia segura em seus braços. Com toda aquela confusão, ela estava com os nervos à flor da pele. Seus sentidos mais aguçados. Era quente ali. Cada toque parecia durar uma eternidade. Aquela mão que deslizava em suas costas, aquele carinho... Sua cabeça encostava na dele, sentia a respiração dele em seu pescoço. O outro braço em volta de sua cintura. Os dedos dele passando entre sua camisa e sua bermuda. Ela sentiu um leve arrepio subir pelas suas costas.
Ele beijou sua cabeça e se afastou dela. Lyra já parara de chorar e estava apenas com os olhos vermelhos. Ela suspirou e respirou fundo. Já estava mais calma.
- Então, vamos? - Will perguntou finalmente.
- E você vai deixar eu não ir?
- Não! - E ele abriu um longo sorriso.
