Disclaimer: I do not own Rurouni Kenshin. These charaters belong to Nobuhiro Watsuki.

Sumário: A redoma de cristal que protegia o delicado mundo de Soujiro estilhaça-se em mil pedaços, e aquele que fora outrora o assassino perfeito, Tenken no Soujiro, volta a descobrir a alegria e a dor que são fundamentais à existência humana, depois de tantos anos de vida desapaixonada ao serviço de Shishio Makoto.

Alma Recuperada

Capítulo I

O Outono havia finalmente chegado, e com ele os primeiros ventos frios. As folhas, que durante a primavera haviam florescido verdes e frescas, pendendo orgulhosamente nos ramos de cada árvore, dançavam agora, amarelecidas, num misto de alegria e tristeza pelos ares. O céu, antes coberto de nuvens brancas e recortadas, como se de um manto do mais puro algodão se tratasse, apresentava-se agora cinzento até onde a vista alcançava, deixando por vezes passar os raios de um sol frágil, quase moribundo.
Soujiro havia palmilhado os caminhos do Norte durante dois meses depois da derrota frente a Kenshin Himura, e da morte daquele que fora o seu mentor, Shishio Makoto. O caminho que se apresentava diante de si, embora levemente lamacento devido ás suaves primeiras chuvas que se começavam a fazer sentir com a chegada do outono, não era tão tortuoso como o caminho que o seu espírito se havia proposto a percorrer em busca de uma verdade. Mas apenas o tempo o poderia guiar através de caminho tão complexo, repleto de bifurcações e armadilhas.

Sabendo-se procurado pelo Governo Meiji, que procurava ocultar cada sangrento traço de História que Shishio Makoto tentara criar na sua busca pelo poder do país, Soujiro viajara pelos caminhos menos frequentados. Na companhia do céu do estio, dos quentes raios de sol e das canções dos pássaros durante o dia e do luar prateado, do uivo dos lobos e das silenciosas canções das aves nocturnas durante a noite.

"Nunca tinha reparado na canção dos pássaros durante o Verão, nem no som do vento entre as folhas das árvores..." pensou Soujiro, agachando-se para tomar um trago da água límpida e fresca que corria num pequeno riacho - "...talvez tenha perdido demasiadas coisas." A água tinha um gosto delicioso, algo que nunca havia notado durante toda a sua vida de morte desapaixonada. Mas agora, aquele que fora conhecido e temido sob o pseudónimo de "Espada Celestial", caminhava livremente entre as árvores vestidas de cores outonais. A criança que se havia escondido nos escuros confins da alma do jovem guerreiro manifestava-se agora abertamente ao mundo, e cada dia trazia a Soujiro uma nova descoberta. E ele vivia cada uma de forma intensa e apaixonada, como se tentasse compensar-se a si próprio por anos de indiferença face ao mundo que o rodeava: e, pela primeira vez em longos anos, sorria sinceramente.

Mas cada dia trazia-lhe também os fantasmas e o seu olhar – normalmente sereno e vazio de dor, dada a rapidez e eficácia do seu Tenken, ora aterrorizado ao constatarem que estranha e subitamente se encontravam face ao mensageiro das suas mortes. Os crepúsculos outonais avivam-lhe a memória do sangue derramado pela sua lâmina, lançando arrepios através da sua espinha. Seria culpa? A culpa era um sentimento demasiado novo para o jovem, que o confundia e desesperava, enquanto tentava lidar com ele e o único alivio provinha da busca que agora empreendia pela verdade da sua vida. Da busca pelas mesmas respostas que Kenshin Himura e Shishio Makoto haviam encontrado no seu caminho, embora de formas radicalmente diferentes.

Sentou-se debaixo de uma árvore, sobre o macio tapete de folhas amarelecidas. Ao fundo as crianças brincavam e conversavam alegremente, produzindo um som quebradiço ao pisarem as folhas secas e frágeis. Soujiro sorriu, pondo de lado todos os sentimentos de culpa, apreciando cada gesto inocente do grupo de crianças que corriam e pulavam ao longo da estrada estreita. Por vezes, uma delas caía por terra e lançava um grito de dor, seguido de soluços e lágrimas, ao que as outras crianças ora acudiam, aflitas, ora riam, na sua inocência. Soujiro deu por si a desejar participar das brincadeiras e dos jogos que os pequenos faziam.

--
"Seu preguiçoso!" - soou o grito, seguido do inevitável pontapé, de violência tal que o pequeno Soujiro voou contra as portas de correr, quebrando-as sobre o seu peso e aterrando duramente do lado de fora da casa.

"Mandei-te que levasses cem fardos de arroz para o silo hoje! Não me digas que não o podes fazer; se eu te mandei que o fizesses, apenas tens que o fazer." o homem, corpolento e exalando um forte odor a alcool, levou a garrafa de sakê aos lábios, tomando um trago. Soujiro sentou-se a custo, baixando o seu olhar, meio encoberto pelos seus cabelos negros. Depois, reunindo toda a coragem que o seu pequeno ser conseguia, ergueu a face e sorriu.

O seu tio enfureceu-se perante o sorriso, e num laivo de raiva, arremessou a pequena garrafa feita de cerâmica contra a cabeça do pequeno Soujiro - "De que te estás a rir?" perguntou ele. A garrafa partiu-se em mil pedaços, e o liquido escorreu através dos cabelos e da face da criança, e salpicou o chão com mil gotas.

"Percebeste? Enquanto não acabares o trabalho que te mandei fazer, não deixarei que entres em casa! Dormirás aí fora esta noite!"

Por esta altura, a restante família havia-se agrupado à volta do homem, atraídos pelos gritos e pela garrafa que se havia despedaçado contra o crânio de Soujiro.

"Calma, pai.", disse a sua filha, colocando uma mão sobre o seu ombro.

"Não te esqueças que ainda tens trabalho para fazer na cozinha." afirmou a esposa, num tom calmo, mas claramente ameaçador.

"...e de massajar os meus ombros!" exclamou o irmão, que segurava o seu ochoko.

Soujiro ergueu-se, voltando costas aos seus entes crueis, e caminhou de encontro ás suas tarefas, não menos crueis para os ombros frageis de uma criança.

--

Soujiro estremeceu perante as memórias de infância que teimavam em inundar a sua mente. Se a sorte o tivesse presenteado com pais extremosos em vez de abusadores desumanos, talvez as suas mãos não tivessem sido manchadas com sangue. Talvez também ele tivesse tido a oportunidade de brincar sobre as folhas secas e quebradiças do Outono.

Mas nas suas mãos havia caído também o sangue de pais dedicados, e mais uma vez as memórias afluiram à sua mente, e ás lágrimas inundaram os seus olhos.

--

"Por favor...imploro-lhe! Eu...eu não posso morrer aqui e agora! A...a minha filha e a minha mulher...por favor! Eu faço o que for preciso, mas não..." o fluxo desesperado de palavras teve um fim abrupto num silêncio que só a morte poderia conceder. E esse silêncio tão abrupto fora entregue através da espada de Tenken no Soujiro. Na sua face nenhum traço de emoção, apenas um sorriso vazio e desapaixonado. Colocou a espada na sua saya e voltou costas, abandonando silenciosamente a cena.

--

O jovem cobriu a face com ambas as mãos, sentindo-se corroer por sentimentos maiores que o seu ser. Culpa, desespero e uma sobrecarga de outras emoções que não podia nomear. Soluçou como uma criança pequena que se perde da mão materna numa rua movimentada.

"Porquê? Porquê eu?" perguntou desesperadamente, por entre soluços - "...na realidade...eu nunca...nunca quis...matar ninguém...então porquê?" Do fundo da sua mente veio uma reposta, frágil e longínqua: Porque se não fosse, este não serias tu. Não serias tu quem estaria a percorrer este caminho, em busca de uma verdade que também outros homens alcançaram. Não serias tu quem estaria a redescobrir todos os dias uma coisa nova. E este és tu.
O seu pensamento foi subitamente interrompido por um leve safanão. Soujiro abriu os olhos lacrimejantes para constatar que se encontrava rodeado pelas crianças que brincavam alegremente à beirinha da estrada. "Porque choras, senhor?" perguntou uma das meninas, olhando-o curiosamente. Doutro lado veio a voz "O meu pai contou-me que os homens não choram." Soujiro colocou a sua atenção sobre o rapaz que sorria alegremente. "Toma! É para ti!". Soujiro virou o olhar para a direcção donde vinha a voz doce que o chamava. A menina tinha cabelos longos e castanhos, presos por uma bela fita cor-de-rosa. Os seus olhos cor-de-amendoa eram grandes e gentis, sinceros e doces. Na sua mão uma Camélia de Outono. De branco puro, tal como as nuvens que enchem os céus do verão.

Soujiro tomou a flor nas suas mãos e sorriu docemente. "Obrigado...eh..mas..." - foi interrompido pela menina que lhe disse "agora já não vais chorar, pois não?". Os seus olhos ansiosos procuravam a resposta nos do jovem guerreiro. "Oh! Não, não vou!" exclamou alegremente, esboçando um sorriso sincero, lavando todos os sentimentos de culpa da sua alma. Da mesma forma, as lágrimas secaram sobre a pele do seu rosto, e os seus olhos encheram-se da luz única que apenas o Outono possui.

"Vens brincar connosco?" perguntou a menina que lhe havia oferecido a flor, seguindo-se as perguntas das outras crianças que o rodeavam.

"Oh? Mas eu...eu sou muito grande para as vossas brin..." Soujiro começou, mas foi interrompido pelo rapaz, o único do grupo - "Não tem piada brincar só com elas. Estão sempre a chorar e a queixar-se de tudo..."

A menina de olhos grandes e doces puxou Sou-Chan pela mão. Ele acedeu e seguiu as crianças pela estrada fora, correndo e brincando com eles. Afinal, tudo isto era o que lhe havia sido negado durante toda a sua vida. E agora, ele brincava com outras crianças, sob o céu de outono.

"Este sou eu, afinal..."

Fim do Capítulo 1

Agradecimentos: Misau, por fazer o beta-reading deste capítulo e pelas ideias que me deu relativamente aos próximos desenvolvimentos, à minha namorada que reviu a fic em busca de erros gramaticais.