Capítulo 1
10 de Fevereiro de 1840 (segunda-feira)
[…]
"Goodbye Lord M."
"Goodbye Ma'am."
Ele tinha de sair dali rapidamente! Ele tinha de deixar o palácio, chegar a casa, despir aquele maldito uniforme de Corte e despejar uma garrafa de brandy! Talvez assim fosse possível entorpecer o coração e deixar de sentir!
Melbourne subiu para a carruagem e deu ordem para avançar.
Pelo menos agora tudo aquilo tinha terminado. Desde que Albert tinha chegado a Inglaterra e fora pedido em casamento; passando por todos aqueles meses terríveis de preparação do matrimónio; até hoje que se realizara a cerimónia. Agora, também, ele tinha o dever cumprido. Ele tinha sido capaz de guiá-la desde aquela manhã da subida ao trono até este casamento. Ele fora súbdito, secretário privado, primeiro-ministro, mentor, colega de trabalho, pai, amigo, confidente e até o prenúncio de um "companheiro" para uma jovem rainha só. Ele apenas não fora o marido! Aliás, até isso ele tinha conseguido! Recusá-la quando ela se propusera a ser dele e mesmo quando ele próprio a desejava ardentemente! Haveria mais alguma coisa que ele pudesse ter feito por ela? Com certeza não!
A carruagem parou.
Ele desceu e entrou em casa.
"Brandy na biblioteca!" O pedido saiu de imediato para o mordomo que o esperava na entrada.
Melbourne foi ao quarto onde despiu o uniforme que o sufocava, vestiu a camisa de dormir e o roupão e calçou os chinelos.
Ele estava a vê-la neste momento! A chegada à igreja. Linda! De branco, vestida. Uma visão etérea! Para casar com Albert! Ele subira a nave da capela na frente dela, transportando a espada de Estado, e assistira, com a serenidade exterior possível, a que ela jurasse amor eterno para outro homem! A mulher que ele amava!
Melbourne dirigiu-se à biblioteca onde o mordomo já tinha colocado a garrafa cheia e o copo, em cima da mesa de apoio ao lado da sua poltrona preferida.
Sentou-se na poltrona. As costas doíam.
Encheu o copo e bebeu o conteúdo quase todo de uma vez!
"May I kiss the bride?" Ele pedira.
E depois dera-lhe um beijo casto no rosto e isso fora o máximo que pudera obter dela em todo o tempo em que estiveram diariamente juntos. Um beijo apenas! Um beijo no rosto! Isso seria tudo o que ele poderia guardar! E isso fora tão pouco, tão fugaz!
Então ela pegara nas mãos dele, como fizera outras vezes, e eles tinham-se despedido:
"Goodbye Lord M."
"Goodbye Ma'am."
De seguida ela largara as mãos dele e deixara-o a esfregar as próprias mãos uma na outra, na tentativa vã de conservar o toque e o calor dela.
E depois ele ficara ali sozinho a vê-la afastar-se, de costas para si, como naquele dia junto das gralhas! Cada vez mais longe, cada vez mais distante… Se ele pudesse correr e alcançá-la e pedir-lhe para voltar! Mas ele não podia! E a dor dele crescera na mesma medida em que ela se afastava cada vez mais do seu campo de visão, tornando-se cada vez mais pequena, até desaparecer ao fundo da galeria.
Agora ela estaria lá! Com Albert! Oh, isso era insuportável!
Melbourne encheu de novo o copo e despejou-o!
Ela era dele! Dele! Apenas dele! Fora só dele durante um pouco mais do que dois anos! Ela era intocada, pura! Não devia ser tocada por nenhum homem! Só ele devia poder tocar-lhe, mais ninguém!
Todavia, seria aquele principezinho mecânico que iria descobri-la! Que iria usufruir dela! E que lhe iria ensinar o que era um homem! Deus! Ele nem saberia fodê-la! Como é que ele iria fazer isso? Ele seria bruto? Se ele soubesse que ele a tinha magoado partir-lhe-ia a cara com os punhos! Não, Albert não faria isso! Seria delicado? E se ele fosse delicado ela iria gostar? Claro que ela iria gostar! Como não haveria de gostar? Oh, céus! A mulher que ele amava a obter prazer nas mãos de outro homem! Mas Albert saberia excitá-la o suficiente para fazer aquilo sem dor? Aquilo não devia ser uma experiência traumática para ela! Não devia! Albert saberia garantir isso? E conseguiria Albert fazê-la atingir o êxtase? O que perceberia ele disso? Nada! Com certeza, nada! Talvez aquela primeira vez fosse uma desilusão para ela!
Oh, ela merecia o melhor! Se fosse ele faria isso na perfeição! Ela saberia o que era um homem! E como tudo aquilo podia ser tão belo!
Outro copo de brandy desceu-lhe pela garganta.
Como é que ela se sentiria neste momento? Estaria nervosa? Provavelmente, sim. Se fosse ele não deixaria que ela estivesse nervosa!
Ela iria mostrar o corpo a Albert ou o constrangimento iria impedi-la de se despir completamente? Mas se ela não se mostrasse hoje iria mostrar-se noutro dia! E Albert iria sentir o cheiro dela, fresco e doce, as pregas da carne entre as pernas, o aperto dentro dela, a humidade e o calor!
Deus! Ele não podia suportar esta imagem!
Mais um copo de brandy foi despejado.
A cabeça dele doía! O cansaço dos preparativos dos últimos dias e das noites sem dormir, antecipando o dia e a noite de hoje; o sofrimento; a exigência emocional para fazer parecer que tudo estava bem enquanto todo o seu mundo se desmoronava; e agora o álcool!
Como é que ela reagiria quando Albert entrasse dentro dela? Ela iria gemer de dor ou de prazer? Ela aguentaria tudo calada ou ela seria uma mulher ruidosa? Não, hoje ela aguentaria calada, mas quando percebesse como era ela iria ser efusiva. Ele conhecia-a! Mas ela iria gemer de prazer? Como seria o som dos gemidos dela? Só o príncipe mecânico poderia saber!
Mais um copo. Este seria o último!
Ele poderia ficar ali naquela poltrona desgastada pelo uso, mas hoje tinha tantas dores no corpo! Tudo doía. Até as pontas dos dedos e a cartilagem das orelhas. E frio. Agora ele também tinha frio. Era melhor ir para a cama. Talvez deitado isto passasse.
O corpo estava demasiado pesado. Firmou-se nos braços da poltrona para se levantar. Conseguiu ficar de pé.
Deu dois passos na direção da porta, com a intensão de ir para o quarto.
Caiu desamparado sobre o soalho!
Estava tudo nebuloso. Mas havia uma luz. E vozes. Alguém falava com ele. Onde é que ele estava?
A imagem começou a ficar mais nítida.
"Lord Melbourne! Consegue ver-me? Está a ouvir-me?"
"Sim…"
Ele estava na cama e o médico e o mordomo encontravam-se nas imediações. E a puta da dor de cabeça parecia que só tinha aumentado!
O mordomo tinha-o encontrado caído na biblioteca e chamara dois criados para que o pudessem levar para a cama. Depois mandara um deles chamar o médico. Sua Senhoria tinha batido com a cabeça em algum sítio e estava desacordado.
O médico diagnosticou-lhe excesso de álcool, uma gripe e um hematoma na cabeça! Prescreveu-lhe o que era adequado e foi embora pedindo que o chamassem de novo se houvesse febre.
Ele estava a vê-los. Os dois. Victoria e Albert na cama! Ele estava lá! Ele estava a assistir quando Albert a desflorou! E ela gostara! Imagens repetidas e sobrepostas, nítidas e esfumadas passavam na sua frente. Uma cama, os corpos nus…Os gemidos…
Não! Ele estava a sonhar! Era só um sonho. O doutor Copeland estava aqui outra vez e alguém lhe colocava panos molhados na testa.
Eles estavam lá de novo. Victoria e Albert. A cerimónia na igreja, o bolo gigantesco e a cama e os corpos nus….
Ele acordou.
Estava metido na cama e sozinho no quarto. Não sabia que horas eram, mas devia ser tarde…
Aquelas imagens tinham sido apenas um sonho! Aliás, uma sucessão de pesadelos onde o mesmo acontecimento se repetia.
Oh! Não! Mas o facto era verdade! Ela tinha casado com Albert e os dois tinham ido para Windsor passar três dias. A esta hora, independentemente das horas que fossem, aquilo já tinha acontecido!
E ele já devia estar em Brocket Hall e continuava aqui…
O mordomo entrou e explicou-lhe que estava de cama havia dia e meio. Que tivera febre e por isso perdera a noção do tempo.
Sendo assim, já se tinham passado duas noites em que ela tinha dormido com Albert. A sensação era indescritível! Uma dor! Uma revolta! E náuseas! Felizmente, a doença física camuflava a sua mais profunda doença emocional. Eles deviam estar de volta amanhã à noite e ele teria de sair de Londres amanhã de manhã, antes que eles regressassem. Ir para longe era uma busca irracional da diminuição da dor. Como se isso fosse possível! Mas estar longe fazia parecer que o facto era mais distante, como se isso pudesse alguma vez ser-lhe arrancado do cérebro e do coração!
O mais difícil não seria agora nestes dias em que tudo era tão lancinante, mas ela estava lá longe. O pior seria quando ele tivesse de voltar a Londres, quando tivesse que regressar ao palácio e tivesse de olhar para ela depois do que tinha acontecido. Onde é que ele iria arranjar coragem para encará-la depois disso?
Durante uns dias ele poderia ficar lá. Ele tinha pedido uns dias de descanso em Brocket Hall e ela concordara de imediato. Ela notara como ele estava tão cansado com todos os preparativos do casamento e sabia como Brocket Hall era retemperador para ele. Contudo, na verdade, agora que ela se casava devia adaptar-se à sua nova vida doméstica e ele sabia que devia afastar-se dela para não ser um estorvo nesse processo e para que o Príncipe não se sentisse incomodado com a sua presença. Além disso, ele não seria mais o secretário privado dela. Essa função passaria a ser desempenhada por Albert. Também, alguma utilidade aquele marido alemão devia ter… Eles não poderiam ser mais como antes! Eles não poderiam voltar a viver unicamente um para o outro! Isso era passado! E tinha decorrido tão depressa! E ele sabia que não suportaria vê-la feliz ao lado de Albert e por isso era mais fácil ficar afastado. Pelo menos, enquanto isso fosse possível. No entanto, depois, ele teria que voltar. Ele era o Primeiro-Ministro daquela nação. Era impossível permanecer em Brocket Hall.
Ele foi.
Brocket Hall parecia um local sombrio. E demasiado silencioso.
Não era Brocket Hall que era sombrio, sombrio estava o seu coração e por isso não importava onde ele estivesse tudo seria sombrio. Todavia, o silêncio era palpável, por oposição à agitação da vida na Corte e à alegria contagiante de vê-la sorrir e de ouvir o som da voz dela.
"Lord M!"
Aquele chamado especial, cheio de significado, afigurava-se dentro da sua cabeça quando percorria os corredores de Brocket Hall e também durante a noite. Não sabia se tinha sido uma rasteira da imaginação ou se tinha sonhado, pois às vezes não percebia bem se já tinha dormido um pouco ou se ainda não adormecera. A agitação emocional estava a dificultar-lhe a capacidade de discernimento do cérebro.
Observar as gralhas não ajudava.
Ele ficava lá a olhar os pássaros e a constatar como eram livres, mas eles não podiam ser livres como os pássaros que acasalavam com quem desejavam.
Porque é que aquilo tinha acontecido? Como é que ele chegara até aqui? Como se ele não tivesse sofrido já o suficiente na vida! Não era suposto que aquilo acontecesse! Ele era demasiado velho e ela era demasiado jovem, ele era um nobre titulado de patamar baixo e ela era de sangue real… Ele era o Primeiro-ministro! Ela era a Rainha! A única coisa que devia ter existido entre eles era respeito mútuo! E a única coisa que ele devia sentir por ela era fidelidade!
Lembrou-se das estufas e das flores… Ele ainda não entrara lá desde que chegara a Brocket Hall. Não fora capaz. O propósito da reabertura das estufas já não existia. O propósito era ela e agora ela pertencia a outro homem! Para quê cuidar das flores? Agora ele não podia enviar frequentemente flores a uma mulher casada. Mais especificamente: ele não podia enviar frequentemente flores à Rainha casada! Ele poderia fazê-lo, claro, mas isso poderia ser mal interpretado e ela poderia ser prejudicada.
Talvez daqui a algum tempo ele pudesse voltar às estufas. Talvez isso fosse apenas algo que tinha ficado como memória dos tempos felizes e talvez pudesse ainda vir a servir de consolo. Mas hoje não!
Parecia que havia um som de passos nas folhas do caminho atrás de si.
Ele virou-se!
Mas não estava lá ninguém! Claro que não estava lá ninguém! Ela nunca mais voltaria aqui! Mesmo que um dia voltasse a Brocket Hall seria acompanhada por Albert, claro. E ele teria de recebê-los mostrando-se feliz com tamanha honra! A Rainha e o seu Príncipe consorte em sua casa!
Se ela voltasse ali… Se ela aparecesse ali agora… Oh, hoje atuaria de forma muito diferente! Ele mesmo lhe pediria para que ficasse em Brocket Hall e nunca mais partisse! Para que fosse apenas sua e que se lixasse a Inglaterra, o dever e a moralidade!
Mas agora era tarde demais…
Ele estaria a ficar louco? Seria assim que começava?
