- Makai Ouji: Devils and Realist pertence a Takadono Madoka e Yukihiro Utako;

- Esta é uma fanfic yaoi, ou seja, contém relacionamento homossexual entre os personagens. Se você não gosta ou sente-se ofendido com esse tipo de conteúdo sugiro que vá ser feliz lendo shoujo;

- Fanart da capa: .

Esta fanfic originalmente deveria ser uma oneshot, mas ficou demasiada longa e decidi dividi-la em dois capítulos. O segundo será postado na próxima semana (23/02).


Capítulo I

"The devil's voice is sweet to hear" — Stephen King

"A voz do demônio é doce de se ouvir" — Stephen King

Ele inclinou a cabeça para o lado, deixando que seu rosto permanecesse no ângulo perfeito. Naquela posição seu corpo ficaria apoiado em seu cotovelo direito, embora a pessoa ao seu lado o segurasse com braços fortes e firmes. Isso é muito bom... Ameia-luz que vinha da vela acessa sobre a mesa criava um falso senso de iluminação, projetando figuras estranhas e confusas na parede, enquanto o vento batia nas janelas, zumbindo e lembrando-os que uma tempestade se aproximava.

O restante dos alunos provavelmente estava escondido debaixo de suas camas, temendo a chuva que cairia naquela noite. Isaac certamente é um deles. Aposto que ele está enrolado em várias camadas de cobertores, agitando algum pêndulo e pedindo proteção. Ridículo! William Twining também estava em seu quarto, sobre sua cama e protegendo-se da tempestade. Porém, naquela noite, ele sentia tudo menos medo.

Dantalion moveu-se e o eleitor deitou-se. A mão que estivera em suas costas desceu de maneira ousada, tocando a cintura e conservando-se naquela perigosa linha entre o "não tão certo" e o "totalmente fora de limites". Sua perna esquerda moveu-se e automaticamente o joelho do moreno tomou o seu lugar, unindo os corpos.

O suspiro que deixou seus lábios foi tão honesto que ele corou no exato momento, mas não parou o que faziam. Há longos minutos ele e o demônio estavam sobre aquela cama, perdidos em profundos e intensos beijos que fariam as bochechas de qualquer autora de romances juvenis tornarem-se rubras. Eu poderia passar a noite preso nesse beijo. Os olhos esmeraldas se entreabriram devagar, preguiçosos e hesitantes. Os lábios de seu interlocutor tocaram seu queixo e as pontas dos dentes mordiscaram levemente o maxilar.

"Está tarde, William, eu preciso ir." O comentário foi sussurrado e um novo beijo deu lugar ao anterior.

"U... Uh-hum..."

O louro tinha dificuldades em pensar. Todas as vezes que o beijava ele sentia como se suas faculdades mentais se tornassem comprometidas. Os melhores pensamentos, as ideias mais brilhantes... não importava. Quando o Grande Duque do Inferno o visitava durante a noite, ele sabia que não conseguiria resistir.

"William..."

"Hm..."

"Eu realmente preciso ir..."

"Vá..."

No entanto, ele não foi, pelo menos não naquele instante.

Dantalion ainda ficou por mais meia hora até finalmente levantar-se da cama, ajeitando o sobretudo e o colete que faziam parte do uniforme. William sentou-se sobre sua própria cama, abraçando seu travesseiro e tentando esconder o rosto vermelho. As costas diante de seus olhos eram largas e ele as havia visto e sentido com tanta frequência naqueles últimos meses que uma parte nele tinha certeza de que conhecia cada músculo.

"Tem certeza de que ficará bem esta noite? A tempestade que virá será forte."

"Se você tivesse pretensão de permanecer não estaria indo embora." A voz soou afiada. De novo...

A resposta foi um vago meio sorriso. As mãos arrumaram os cabelos negros e ele inclinou-se sobre a cama, depositando um último beijo na testa pálida do louro, que permaneceu imóvel, não demonstrando absolutamente nada com relação à carícia.

"Boa noite, William."

A porta foi aberta com delicadeza e, do mesmo modo como havia entrado, o demônio saiu.

William jogou-se para o lado, afundando o rosto em seu travesseiro e mantendo-se imóvel por alguns minutos. O vento havia se tornado mais forte, batendo contra a janela com violência e fazendo-o tomar conhecimento de que estava completamente só naquele quarto.

Eu poderia pegar um livro e passar algum tempo na companhia de algum excelente autor. Nada como um bom livro para tirar minha mente de certos assuntos. A ideia era interessante e certamente a melhor opção para aquele fim de noite, contudo, ele estava demasiado inquieto para conseguir se concentrar em qualquer coisa que não fosse o cheiro que sua companhia havia deixado no cômodo.

O travesseiro foi abraçado com mais força e o eleitor sentiu-se tremer, repetindo para si mesmo que aquilo era errado. Alguém pode aparecer... Isaac, Kevin, Sytry... ele. A vaga imagem do Grande Duque do Inferno entrando no quarto e o encontrando naquele estado levou uma nova onda de arrepios por seu corpo. Ele mordeu o lábio inferior, deixando que a mão esquerda se soltasse do macio travesseiro e descesse pela perna até tocar seu baixo ventre.

A ereção surgiu no final do beijo e isso porque o louro se esforçou para parecer comportado. Ele deve ter percebido, por isso foi embora. O cinto negro foi aberto, assim como os botões da calça. Os dedos longos e gelados entraram pela roupa de baixo branca, tocando o membro e sentindo-o tornar-se mais rígido.

Os dentes morderam uma parte do travesseiro e William tentou afundar o rosto o máximo possível quando sua mão passou a masturbá-lo.

Não era justo. Se ele tinha um amante, por que precisava tocar-se sozinho em um quarto solitário e no meio de uma tempestade?

Não foi minha ideia! Era uma de suas frases favoritas quando o assunto era Dantalion. Tocar-se após as visitas se transformou em uma atividade rotineira, apesar de que, ao final, um estranho e pesado senso de culpa o assolava.

Tudo começou com um beijo acidental na biblioteca principal.

O eleitor tentava colocar um livro em uma prateleira muito alta, entretanto, o grosso volume teria caído sobre sua cabeça se o moreno não houvesse aparecido, como de costume, simplesmente de lugar nenhum.

Talvez fosse a posição, o clima frio, a proximidade... ele não sabia.

A próxima coisa que o louro se lembrava era que o demônio tinha a língua dentro de sua boca e o beijava com tanto desejo e euforia que por alguns minutos ele esqueceu-se totalmente de quem era e de onde estavam. A realidade, claro, visitou-o eventualmente e a discussão que seguiu o beijo foi tão energética quanto a carícia.

O incidente voltou a acontecer na semana seguinte, e na seguinte, e na seguinte...

William não saberia dizer quando o Grande Duque do Inferno passou a visitar seu quarto, geralmente após o jantar e quando as luzes já estavam apagadas. Inicialmente as visitas eram curtas e os dois apenas conversavam; Dantalion permanecia sentado na cadeira ao lado da escrivaninha, enquanto ele postava-se em sua própria cama. Os beijos só recomeçaram em uma noite em que o inverno rigoroso o fez adoecer.

O moreno passou a noite na beirada da cama, trocando a flanela úmida de sua testa e medicando-o. Ele disse que eu simplesmente o puxei e o beijei. Depois daquela noite o demônio começou a se despedir com um beijo, e da cadeira para a cama só foi preciso um empurrãozinho. Naquele último mês as visitas duravam quase uma hora, e eles passavam basicamente esse tempo todo com os lábios grudados e os corpos unidos.

O gemido que escapou por sua boca foi tão erótico que ele mesmo se surpreendeu por ser capaz de emitir tal som. Seu corpo estava quente, como se estivesse com febre, e nem mesmo a camisa aberta melhorou sua condição. A calça havia sido abaixada até metade dos joelhos, e a mão esquerda masturbava a ereção com rapidez, à medida que a direita tocava um dos mamilos, apertando-o e sentindo-o arrepiar-se.

De olhos fechados o louro imaginava que não estava sozinho naquela pequena cama de solteiro. O cheiro da colônia impregnado nos cobertores o fazia imaginar seu amante abraçando-o por trás e tocando-o de maneira imprópria, enquanto respirava em seu ouvido esquerdo.

A simples menção do calor do corpo do Grande Duque junto ao seu, a respiração quente e, principalmente, os toques ousados, foi responsável por excitá-lo um pouco mais. Os movimentos se tornaram fáceis devido ao pré-orgasmo e ele se perguntava quando finalmente teria a chance de viver suas fantasias.

A verdade era que, além dos longos beijos, eles não haviam feito absolutamente nada.

Dantalion não o tocava de maneira intensa ou dava qualquer sinal de que eles ultrapassariam aquela linha. Por várias vezes William se questionou o que o moreno realmente pretendia com aquilo e temia descobrir que talvez, no fundo, o interesse fosse unicamente no que sua pseudo posição como eleitor poderia oferecer.

Imaginar-se sendo usado pelo demônio não era uma sensação positiva, ainda mais quando ponderava sobre o quão envolvido ele estava naquela estranha e reprovável relação. O louro nunca havia tido namorada (ou namorado!), e o Grande Duque havia sido seu primeiro beijo. Eu me tornei ganancioso. Eu deveria tê-lo rejeitado quando isso começou.

Aquela ideia soava muito mais convincente em seus pensamentos do que na realidade, pois William sabia muito bem que era só aquela criatura entrar em seu quarto que qualquer convicção ou certeza voava pela janela, e tudo o que o louro queria era ser envolvido pelos braços fortes e protetores e sentir os lábios daquele ser juntos aos dele.

O orgasmo aconteceu no exato momento em que a chuva bateu contra o vidro da janela.

O eleitor arqueou a nuca para trás, sentindo o corpo inteiro reagir ao ápice do prazer. Os sons desapareceram e só existia o vazio, parte daquele estado de puro êxtase que percorria cada fibra de seu corpo e o fazia respirar com os lábios entreabertos.

A sensação durou alguns segundos e os olhos esmeraldas se abriram devagar, primeiramente encarando o teto de modo incerto, todavia, focando-se em seguida. O teto branco e alto parecia ainda mais longe e por um instante ele desejou que Dantalion estivesse ali naquela noite. Eu estou cansado de fazer isso sozinho.

O louro voltou a corar, cobrindo o rosto com o braço direito e imaginando quando o moreno o visitaria com o intuito de permanecer durante toda a noite.

x

A tempestade havia sido forte o bastante para destelhar uma parte do dormitório, localizado na parte leste. O Diretor reuniu os monitores e comunicou que os alunos afetados poderiam deixar o colégio por alguns dias, até que a reforma terminasse de reparar as paredes rachadas e as janelas quebradas. Aqueles que não optassem pelo retorno ao lar poderiam dividir o quarto com outro aluno, mas, claro, se ambas as partes concordassem.

Ao deixar a sala do Diretor, William tentou ao máximo ignorar o tumulto que se formou no jardim, bem embaixo de uma das janelas do corredor. Dezenas de alunos se amontoavam ao redor de Sytry, implorando para dividir um espaço em seu quarto. O ex-anjo tinha um saco de pirulitos nos braços e observava a cena sem demonstrar interesse em fazer escolha alguma.

O cômodo do eleitor ficava localizado na área norte e dificilmente alguém ousaria se autoconvidar a passar a noite com ele. O quarto de Isaac também ficava naquela área e o cômodo do Grande Duque do Inferno estava na parte sul. O Chefe dos monitores tem sua própria mansão e provavelmente a chuva nem deve ter caído naquela área.

A manhã estava agitada e os corredores abarrotados de alunos comentando o incidente que ocorrera durante a noite, incertos sobre o que deveriam fazer. Alguns desciam as escadas com malas, esses já decididos a retornaram para casa.

Imagino o que eu faria se meu quarto fosse vítima da tempestade. Minha casa não possui uma cadeira sequer, então eu definitivamente precisaria encontrar um quarto alheio para passar a noite. A imagem de um charmoso demônio de orelhas pontudas e cabelos negros surgiu em sua mente e o louro trincou os dentes, sentindo-se derrotado por ter corado àquele rápido pensamento. Jamais! Eu dormiria no celeiro com os cavalos, mas nunca pediria para passar a noite no quarto daquele sujeito!

A notícia de que os alunos afetados poderiam retornar para casa chegou rapidamente aos quatro cantos do colégio Stradford, ainda que grande parte decidisse ficar. Isaac havia permitido que um garoto do terceiro ano passasse as noites com ele, e a ideia deixou William desconfiado, porém, Sytry garantiu que não deixaria que nada acontecesse ao ruivo.

"Sabe, William, se algo acontecesse ao seu quarto você precisaria escolher... um de nós como companhia." As palavras do Príncipe do Inferno transbordavam segundas intenções e foram seguidas por um sorriso que demonstrava muito e nada ao mesmo tempo.

O eleitor afastou-se ao notar que os fãs de Sytry se aproximavam, decidindo ir para sua aula de História ao invés de perder tempo com possibilidades. Se por ventura a tempestade retornar eu pedirei para passar a noite com Kevin. Tenho certeza de que ele não se importará.

A sala de aula estava um pouco vazia, com parte dos alunos ainda escolhendo onde dormiriam naquela noite.

A manhã passou devagar e aquele ritmo estendeu-se basicamente por todo o restante do dia. Ao pôr do sol a notícia já não era inédita, no entanto, os alunos que geralmente conservavam-se nos jardins até o anoitecer foram convidados a entrar. O céu escuro e os trovões ao longe denunciavam que aquela também seria uma noite tumultuada.

Dantalion visitou o quarto pontualmente às 21h, e após ter certeza de que não havia mais ninguém pelos corredores. O louro encontrava-se debruçado sobre sua escrivaninha, revisando o resumo que fizera sobre um dos romances lidos para a aula de Literatura e certificando-se de que seu texto estava perfeito.

O moreno entrou devagar, como sempre fazia, aproximando-se e ajoelhando-se aos pés da cadeira. Aquele era um estranho e peculiar hábito. Muitas vezes ele se postava ao lado, imóvel e apenas encarando-o com profundos olhos escarlates.

"Eu não vou tomar muito de seu tempo." O demônio poderia ser quem fosse no Inferno, contudo, aquele parado próximo à cadeira e encarando-o de modo tão envolvente e passional era outra pessoa.

"Você já está tomando meu tempo vindo até aqui." Os olhos esmeraldas continuavam na folha de papel entre seus dedos.

"Eu estou preocupado com a tempestade. Evite se aproximar da janela e durma o mais próximo da parede possível."

"Eu ficarei bem; é apenas um pouco de chuva."

"Eu me preocupo com você." O Grande Duque inclinou-se um pouco mais, tocando a perna esquerda. "Talvez seja melhor que eu passe a noite aqui."

"N-Não é necessário." William soltou o pedaço de papel, virando-se decidido. A simples menção de passarem a noite no mesmo cômodo o fazia pensar em coisas que não deveria.

Os olhos escarlates o fitaram por um momento e Dantalion ficou em pé, batendo a calça na altura dos joelhos e meneando a cabeça em positivo. Seus lábios tocaram o alto da cabeça loura e ele desejou um baixo boa noite, dando meia volta e deixando o quarto.

O eleitor encarou a porta fechada por um instante, percebendo lentamente que naquela noite ele não teria seus longos e profundos beijos regados a abraços e apertos. Seu coração sentiu-se um pouco vazio e solitário, como o restante do cômodo.

William pousou os olhos no relatório, terminando de relê-lo e espreguiçando-se logo em seguida. A chuva começou a cair no momento em que ele deitou-se sobre sua cama, entretanto, o eleitor não ficou acordado para ver o espetáculo da natureza.

Sem o moreno para lhe fazer companhia, sua cama não tinha outra finalidade além de abrigar seu sono.

x

Ele acordou com três fortes batidas em sua porta.

Os olhos se abriram, encarando o teto de seu quarto e tentando entender o que estava acontecendo. As batidas se tornaram mais altas e insistentes, e ele colocou-se de pé às pressas, temendo que algo sério pudesse ter acontecido.

A porta foi aberta de uma vez e suas sobrancelhas se juntaram, incertas e duvidosas, enquanto seu cérebro processava as informações em velocidade reduzida. A pessoa que estava do lado de fora entrou no quarto segurando um macio travesseiro e gargalhando alto.

William fechou a porta devagar, virando-se e esperando uma explicação.

"A partir de hoje sou seu colega de quarto, William!" O demônio bateu contra o peito com orgulho.

"O... quê?" A voz soou mais grossa. Espere, espere... o que está acontecendo?

"Infelizmente, claro, meu quarto foi vítima da tempestade na noite anterior," o Grande Duque não parecia se importar com isso, "eu preciso de um teto para dormir esta noite."

"Vá para o inferno... literalmente." O eleitor cruzou os braços. "Aqui você não ficará!"

"Não diga coisas que machucam! Eu serei excelente companhia." Dantalion soava animado com aquele prospecto.

"Eu duvido muito. De qualquer forma, minha resposta é não, agora, por favor..." Ele abriu a porta e apontou para o outro lado. "Saia."

O moreno tentou argumentar, todavia, seu interlocutor estava surdo para os seus pedidos. Ele saiu, mas deixou seu travesseiro para trás e fez questão de, antes de se retirar, curvar-se e sussurrar um baixo "Você ao acordar é incrivelmente adorável", que foi seguido por uma charmosa piscadela.

Aquele gesto enfureceu o louro, que o empurrou para fora e sentiu-se escorregar pela porta quando ela se fechou. Seu rosto estava corado e seu coração batia descompassado, duvidando que conseguisse sair daquela situação. Imaginar-se dividindo o mesmo quarto que seu amante era perigoso, principalmente se ele pretendesse manter-se casto e puro.

Naquele começo de amanhã a confusão do dia anterior parecia ter duplicado e foi através de Isaac que ele soube que a tempestade daquela noite havia atingido alguns cômodos na parte sul e boa parte dos alunos argumentava que se a situação continuasse seria impossível ficar no colégio.

A culpa recaiu nas costas do Diretor, e alguns grupos até mesmo cogitaram falar diretamente com os pais e pedir que fossem transferidos. Ficou a cargo dos monitores tentar apaziguar os ânimos, porém, o que William conseguiu foram comentários maldosos e suspeitos, que diziam desconfiar que a ala norte era estranhamente a única a não ser afetada.

O eleitor sentou-se com barulho em sua cadeira, após retirar-se para o café da manhã. O assunto em todas as mesas era a tempestade e, quando Sytry acomodou-se, ele desconfiava que talvez o assunto permanecesse daquele lado também.

"Você deveria tomar cuidado, William." O ex-anjo disse baixo, colocando quatro pequenas tortas de limão em cima de seu prato, enquanto as decorava com carolinas de chocolate. "Dantalion está planejando alguma coisa."

"Diga-me quando é que ele não está fazendo isso." O louro suspirou cansado. Tudo o que ele queria era ter a chance de degustar sua xícara de chá, devorar aquelas duas torradas com geleia e seguir para sua aula. Sem demônios, anjos ou empecilhos.

"Eu falo sério." Sytry passou a língua pelo canto da boca, limpando o açúcar. "Ele provavelmente vai se convidar para passar a noite em seu quarto, não permita!"

William conservou-se em silêncio, ouvindo os avisos e tentando concentrar-se em seu chá. O motivo de toda aquela preocupação apareceu minutos depois, um largo sorriso nos lábios e sentando-se do outro lado. Sytry não perdeu tempo, ameaçando o demônio e dizendo que ele estava proibido de tentar invadir o quarto alheio naquela noite.

O Grande Duque do Inferno deu de ombros, afirmando que já havia levado suas coisas até o tal quarto alheio e não importasse o quanto seu rival pestanejasse nada mudaria. O louro engasgou, ralhando com Dantalion e avisando que não o queria no quarto e que ele tinha até o final do dia para retirar seus pertences ou os jogaria pela janela.

Isaac chegou tarde para o café da manhã e só presenciou o final da discussão, embora não parecesse surpreso por saber que o demônio havia recorrido diretamente ao amigo.

"Sytry se importa com você, William." O ruivo disse depois de agarrar uma torrada com geleia e colocá-la na boca. Os dois seguiam pelo corredor, cada um na direção de sua respectiva sala de aula.

"Não, não se importa." Ele apenas está com medo que eu escolha Dantalion.

Isaac ainda tentou convencê-lo da real intenção do ex-anjo, no entanto, ele estava surdo à sua opinião. O final do corredor foi responsável por separá-los e William seguiu para sua sala de aula, esperando ter alguns momentos de paz com o conhecimento.

Ele sempre foi adorador da boa Literatura e sentiu-se extremamente afortunado por passar três horas ouvindo sobre Victor Hugo, Goethe e outros autores que estavam sempre na cabeceira de sua cama. O horário do almoço, contudo, não o animou a seguir até o salão principal, e o eleitor escolheu fazer sua refeição na pequena sala ao lado da cozinha, reservada geralmente para aqueles que queriam evitar o tumulto do salão e degustar uma silenciosa refeição.

Naquele final de manhã o louro surpreendeu-se por ser o Monitor Chefe sentado à mesa e uma parte dele previa algum comentário, como o feito por Sytry.

"Eu acredito que não precise lembrá-lo que a decisão de abrigar um aluno vítima da tempestade é incrivelmente nobre, porém, temos dezenas deles pelo colégio." A dúvida tornou-se certeza quando ele terminou o filé de cordeiro ao molho madeira e saboreava seu pudim de chocolate como sobremesa. Pelo menos ele teve o decoro de esperar que eu terminasse a refeição, obrigado!

"Agradeço à sua altruísta preocupação, mas não sei do que você está falando. Eu não tenho interesse algum em abrigar nenhum aluno. Aqueles que foram vitimados pela chuva encontrem algum outro lugar ou retornem para casa. Nada disso tem relação comigo."

"É mesmo?" O rapaz ofereceu um sorriso malicioso. "Corre o rumor de que Dantalion foi aceito de braços abertos e passará esta noite em sua companhia."

"Somente boatos."

Camio ajeitou os óculos, limpando o canto da boca com o guardanapo xadrez e ficando em pé. Entretanto, ele não se afastou, lançando um pesado olhar em sua direção.

"Você está jogando um perigoso jogo, William Twining. Dantalion sempre consegue o que quer e, se me permite um conselho, eu o manteria o mais afastado possível."

"Por ventura esse conselho vem unicamente da imensa bondade em seu coração ou eu deveria interpretar tais palavras como uma nova tentativa rebuscada de me convencer a escolher-te?"

A resposta ficou suspensa no ar e o rapaz de cabelos esverdeados apenas meneou a cabeça e retirou-se.

William afastou a taça de pudim, perdendo totalmente a vontade de continuar a sobremesa. Ele sabe. A ideia de que sua relação com o moreno pudesse ser de conhecimento de todos o deixava irritado.

Ele deixou a sala e seguiu para a biblioteca, procurando um local em que pudesse ter alguns minutos de silêncio e paz. Porém, como esperado daquele tumultuoso dia, o tão esperado sossego parecia cada vez mais difícil de ser alcançado.

"Bocchama!"

A voz de Kevin soou alta e o eleitor parou de andar. Aquele era o caminho mais curto para se chegar à biblioteca e não ficava próximo da capela, então ele deduziu que seu mordomo não estava ali por mero acidente.

"Eu estava tão preocupado, bocchama!" Kevin pousou as mãos em seus ombros e exibiu um meio sorriso.

"Eu estou bem." O louro desviou os olhos.

"Nee, bocchama, eu tenho uma sugestão a fazer." O padre provisório endireitou-se e sua voz soou um pouco falhada. "O que acha de voltarmos para casa? Soube que esta noite devemos ter uma nova tempestade e eu estou preocupado com você. Não sabemos quando seu quarto poderá ser o próximo."

Até você, Kevin? Ele soltou um cansado suspiro e afastou-se sem olhar para trás. Aquele estava sendo um dia maçante e incrivelmente aborrecido e uma parte nele gostaria apenas que as pessoas o deixassem em paz, pelo menos por alguns minutos. Ele não é tão ruim... Dantalion...

William seguia devagar na direção da biblioteca enquanto lembrava-se das inúmeras vezes em que ele e o demônio ficaram conversando, deitados lado a lado sobre a cama e encarando o teto. Às vezes ele me visita com o único intuito de conversar. Não é como se tudo o que fizéssemos fosse...

O pensamento o fez morder o lábio inferior. Seus pés pararam de se mover, não somente pela estranha realização, mas também porque, em frente à escadaria que levava a biblioteca, um velho empecilho o esperava, braços cruzados e uma expressão irritada.

"O seu último aviso continua fresco em minha memória, Sytry. Não há necessidade para nostalgias."

O ex-anjo descruzou os braços e se pôs a andar, aproximando-se com passos vagarosos e parando em frente a ele. Sytry possuía uma estranha e magnética beleza, dono de traços delicados, apesar de firmes, olhos azuis e lábios rosados. Aquela era uma escola para garotos, no entanto, o eleitor já ouvira rumores de que aquele parado à sua frente era tido como ídolo entre os alunos. Esses, claro, eram os boatos mais simples. Havia outros, envolvendo comentários sombrios, que afirmavam que o ex-anjo, às vezes, nomeava um ou outro aluno como seu amante para as noites mais geladas e solitárias.

"Eu sei que você tem permitido que Dantalion visite seu quarto, William." A expressão irritada deu lugar a traços complacentes. Os olhos azuis pareciam até mesmo preocupados. "Ele está te usando. A pessoa que ele vê não é você, William."

O louro engoliu seco, dando um passo para trás.

Ele sabia o que viria em seguida e definitivamente não queria ouvir.

"D-Dantalion vê apenas Salomão. Ele não se importa com você e espera o momento em que..."

"Eu sei!" A voz soou alta e irritada. Tudo o que ele queria era alguns momentos tranquilos na biblioteca... "Eu sei de tudo isso!"

O ex-anjo arregalou os olhos e entreabriu os lábios, contudo, as palavras não saíram.

William passou por ele da mesma maneira como havia feito com Kevin, e subiu os degraus que levavam à biblioteca tropeçando duas vezes. Seu coração batia rápido e o gosto do desapontamento em sua boca afastou o delicioso sabor do pudim que deveria ter sido degustado de sobremesa.

Não havia muitos alunos presentes e ele pegou o primeiro livro, da primeira estante, e seguiu até uma poltrona o mais afastada de portas e janelas possível. Latim, o eleitor fitou a capa do exemplar em suas mãos e ofereceu um vago meio sorriso. Levaria algum tempo para traduzir as sentenças, entretanto, aquilo o manteria ocupado e não havia nada que ele quisesse mais além de não precisar pensar.

Continua...