"If I could start again
A million miles away
I would keep myself
I would find a way"
"Hurt", Johnny Cash
O tempo quente, finalmente, chegara a Rua da Fiação. Não era lá uma tarefa fácil aplacar o clima gélido do lugar, o que tornava tudo ainda mais desconfortável para os moradores já acostumados com frio tiritante e agourento das ruas quase sempre enevoadas. O calor também contribuía para intensificar o odor do malcheiroso rio, que só servia para acumular resíduos tóxicos das fábricas nos arredores e o lixo da população. Perto deste, no alto de um barranco, diversas casas de tijolos cinzentos — acompanhando as cores da paisagem local — adornadas com janelas opacas graças à poeira. As residências passavam a impressão de não habitadas, dado o desleixo em que se encontravam.
A maioria pertencia aos trabalhadores fabris, mas uma delas — dentre tantas — pertencia à certa família, onde o único descendente vivo desta a utilizava para fugir de seus encargos malogrados. Certo homem esguio, de pele macilenta e nariz adunco, com cabelos negros mal cuidados que chegavam aos ombros, emoldurando-lhe o rosto quase sempre com uma expressão severa.
Nesta casa — a última na longa fileira de residências — havia uma pequena sala de visitas no nível térreo, com as paredes cobertas por livros de encadernação escura, que serviam para absorver ainda mais a fraca luz projetada pelo candeeiro preso no teto, e poucos móveis de estofamento puído. Esse era o cômodo que o tal homem mais utilizava, não só para suas leituras e refeições, mas também para descansar seu corpo cansado no sofá velho.
Sobre a mesa bamba repousava uma garrafa de vinho dos elfos pela metade e uma taça vazia. Ele a encheu com sua quinta dose e acomodou-se na poltrona. Sua mente ainda estava límpida, intocada pelos efeitos do álcool. Ficar bêbado era uma tarefa difícil, mas não custava nada tentar. Estava cansado de sempre sentir-se alerta para tudo ao seu redor.
Sentado em sua poltrona, sentia como se as sombras o observassem e o estalar da madeira velha dos móveis fosse um sinal de alerta para a sorrateira aproximação de algum inimigo. Inimigos. Ao longo dos anos conseguira acumular inimizades de ambos os lados, e a situação tornava-se ainda mais crítica com o passar dos dias. Desde o retorno do Lorde das Trevas, tudo o que vinha recebendo era desconfiança, não só dos Comensais, mas também de todos os outros bruxos que sabiam de seu passado obscuro. Dumbledore era a exceção, confiando mais nele do que o próprio em si.
Severus Snape ergueu a taça para o vazio, num brinde silencioso a... Bem, a quem deveria brindar, afinal? A Dumbledore, por toda a confiança depositada em um ex-comensal que traíra, e traía, sua própria natureza para fingir ser algo que não era: bom? Ao Lorde das Trevas, por ser um ególatra estúpido que acreditava na veracidade das palavras de seu suposto assecla que, segundo o protesto de outros seguidores, bandeara-se para o lado do Ministério? Não, não deveria brindar a nenhum deles.
Brindaria a Severus Snape, o espião duas caras que só aceitara passar-se por um homem de bem para redimir-se com seu falecido amor platônico, cuidando de seu detestável filho gerado com o homem que mais desprezara, além de si, em toda sua vida. A Severus Snape, que tornou-se professor de Hogwarts em uma das matérias em que sempre fora considerado um gênio, mesmo preferindo — como era de se esperar — a que mais expressava o seu verdadeiro eu. A Severus Snape, que estava disposto a transformar a vida de todos em um grande inferno, apenas para que tivessem uma pequena amostra de como era viver em um. A Severus Snape, que falhara, falha, e sempre falhará.
Ele virou o líquido rubro para dentro de sua boca e encostou a taça vazia contra a testa quase febril, fechando os olhos e respirando fundo, repassando tudo o que vinha acontecendo em sua medíocre vida. Uma grande sucessão de desventuras ominosas que serviam, apenas, para reiterar o quão fraco era. "Um grande covarde" pensou antes de esmagar a delicada taça em sua mão.
O sangue misturou-se às poucas gotas de vinho que haviam sobrado, em uma mistura carmesim. Apático, Severus observou os cortes, concentrando-se no ardor que sentia, na esperança de experimentar algo que fosse capaz de aplacar o dissabor das lembranças que o afligiam. Infelizmente, nenhum sofrimento físico conseguiria sobrepor a penitência a que era submetido. Nenhuma dor seria mais real do que a da perda de algo que nunca tivera.
As memórias que possuía de Lily eram como uma agulha abrindo buracos constantemente em seu peito. Velhas picadas familiares que o atormentavam até em sonhos, e quanto mais tentasse apagá-las mais lembrava.
Ainda assim, a única coisa que fez foi retirar os fragmentos de vidro da mão — sem magia, com apenas uma pinça — e enfaixá-la. Que o sangue embebesse a atadura assim como a melancolia o fazia com sua alma.
Severus olhou ao redor e suspirou, cansado da visão do lugar onde passara momentos tão deploráveis na infância e adolescência. Nem mesmo em Hogwarts, que fora alvo d'os Marotos, sentia-se tão oprimido.
Incapaz de continuar ali, pegou sua varinha, seu sobretudo e saiu. Do lado de fora, o céu começava a apresentar os matizes avermelhados do entardecer. Ele crispou os lábios em desgosto; dias ensolarados não eram os seus preferidos, ainda mais durante o poente. Aquele tom laranja. "O tom de Lily". Girou nos calcanhares e caminhou até um beco inóspito, dos tantos que existiam nos arredores, desaparatando.
Quando o vórtice dissipou, estava em frente ao xexelento bar-hospedaria Caldeirão Furado. Ao entrar, ignorou os olhares na sua direção; alguns de surpresa, outros de suspeita, mas ninguém foi até ele para cumprimentá-lo. Podia ouvir a intensidade dos cochichos aumentando, pouco importando-se com o que diziam.
— P-p-professor Snape, que prazer em vê-lo. — disse Tom, com sua constante postura encarquilhada, por detrás do balcão. — Como...
— Uma garrafa de uísque de dragão e um copo. — disse, secamente.
— É claro. — o homenzinho correu para providenciar o que fora pedido, sabendo que o outro não era conhecido por sua paciência. — Aqui está.
Severus deixou dois galeões de ouro sobre a superfície suja de madeira do estabelecimento e pegou o que lhe cabia, caminhando em direção à mesa mais afastada do lugar.
Sem pensar muito, começou a encher — e esvaziar — o copo em uma velocidade considerável. A bebida descia queimando por sua garganta e logo sua mente e visão começaram a turvar. Os olhares insistentes na sua direção já passavam desapercebidos pelo mestre de poções, que levantou a manga esquerda de seu sobretudo sem preocupar-se se alguém viria o que escondia sob. Em seu pulso estava a marca de sua vergonha; a cobra saindo pela abertura bucal de um crânio. A marca negra, que carregaria consigo até o fim de seus dias.
Tentara de tudo, desde que voltara-se para Dumbledore, para arrancá-la de sua pele, mas não havia nenhuma maneira de fazê-lo. Estava entranhado em seu corpo, correndo em suas veias e, no momento em que Voldemort regressou, queimava-o de dentro para fora. "O que me tornei, minha doce amiga?" Snape fechou os olhos e tudo ao seu redor pareceu girar. "Perdoe-me, Lily". Sentia como se todos que conhecia fossem embora no final, e só restava-lhe o diretor de Hogwarts.
No momento que a última gota de uísque correu pelos seus lábios, constatou que estava na hora de voltar para sua alcova. Ébrio, cambaleou para fora do Caldeirão Furado, ignorando o chamado de Tom que insistia que não deveria sair daquela maneira.
A noite, enfim, havia caído. Snape respirou fundo o ar veranil pouco antes de sentir seu estômago embrulhar e toda a bebida voltar, regurgitando apenas líquido pois que não comera nada no decorrer do dia. Quando terminou, limpou a boca com o dorso da mão e levantou seu olhar. Ninguém, aparentemente, vira a vergonha que acabara de passar. Era só isso o que tinha para oferecer? Um grande império de sujeira repleto de mentiras, degradação e traição. "Ela teria vergonha de mim, assim como teve antes. Eu a desapontei, a machuquei...".
Enquanto tentava se recompor, pelo canto do olho, um vulto cruzou a calçada em direção à livraria que ladeava o Caldeirão Furado. Nunca dera-se ao trabalho de, ao menos, olhar para o lugar pois tratava-se de livros trouxas. Ainda assim, não pode evitar acompanhar quem quer que tivesse acabado de passar por ele, deixando um aroma floral no ar, contrastando com o cheiro horroroso do vômito. Mesmo sendo algo doce, precisava constatar se não tratava-se de alguém mal intencionado como um comensal.
Quando avistou a tal pessoa, seu coração quase parou e sua boca abriu-se para pronunciar o nome daquela que atormentava sua mente. Os cabelos ruivos pouco abaixo da linha dos ombros, a boina feita de lã tartan, e sobretudo bege que não chegava a cobrir suas pernas brancas e delicadas.
A sineta tocou enquanto a menina adentrava a livraria e Snape a seguiu até parar em frente ao vidro. Do lado de dentro, ela olhava algumas prateleiras, passando os dedos finos pelas lombadas, como uma carícia. Não era possível ver seu rosto, mas seus cabelos; o tom que eles possuíam eram tão familiares que doía no professor.
Uma atendente aproximou-se e, ao que tudo indicava, a chamou. Assim que a menina virou, Snape não conseguia acreditar no que estava vendo. As semelhanças eram tão grandes que parecia estar observando o fantasma da mulher que tanto amara. Os olhos de jade, as covinhas nas bochechas rosadas quando sorria... Todo o seu mundo voltou a girar, obrigando-o a apoiar-se contra a superfície transparente.
"Bêbado, e vendo coisas" ainda assim manteve seu olhar na jovem, temendo que — a qualquer instante — ela fosse desaparecer como fumaça; como um simples devaneio que estava tendo por causa da quantidade de bebida ingerida. Em sua mente uma pergunta pairou, fazendo-o pensar por um instante: E se pudesse começar de novo?
Trôpego, afastou-se da vitrine decidido a deixar de sandices, mas o chão parecia mais fundo e menos consistente do que antes. Sua passada falhou e ele caiu de joelhos. "Era isso o que queria, não?" dizia uma voz em sua cabeça "Queria ficar bêbado para esquecer de tudo o que fizera, mas tudo o que fez foi lembrar e despertar os mortos".
— Senhor! — sentiu um toque delicado em seu ombro e tentou sacar a varinha, mas não conseguia achá-la. — O que aconteceu? Machucou-se?
Snape estava prestes a dizer, no seu tom mais frio e sumário, que não precisava da ajuda de ninguém. Contudo, congelou ao rever os mesmos olhos de antes, observando-o com sincera preocupação. A mesma preocupação que sua querida amiga costumava dirigir-lhe antes dele estragar tudo para ambos.
"E se pudesse começar de novo?" a pergunta voltou a sua mente e soube que, independentemente das milhas e milhas de tempo que tivera que percorrer até chegar aquele momento, se guardaria. Que encontraria a maneira certa de fazer tudo voltar a vale a pena.
— Lily... — murmurou, antes que a escuridão o abraçasse.
