I
Era a primeira vez que eu vinha Inglaterra, mais precisamente a Londres.
Poucos dias depois da minha chegada, um amigo e companheiro de infância, Blaise Zabini, levou me a um passeio pela cidade, mostrando-me como era a vida naquela corte. Conforme o costume, muitas pessoas desfilavam por ali, indo em direção a igreja.
Era ave maria quando chegamos à frente da igreja; perdida a esperança de romper a barreira de gente que murava cada uma das portas da igreja, nos resignamos a gozar da fresca brisa que vinha do mar, contemplando o delicioso panorama da baia e admirando ou criticando as devotas que também tinham chegado tarde e pareciam satisfeitas com a exibição de seus adornos.
Enquanto Blaise era disputado pelos numerosos amigos e conhecidos, gozava eu da minha tranqüila e independente obscuridade, sentado comodamente sobre a pequena muralha e resolvido a estabelecer ali o meu observatório. Para um recém chegado à corte, que melhor festa do que ver passar lhe pelos olhos, à doce luz da tarde, uma parte da população desta grande cidade?
Todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o africano puro; todas as posições, desde as ilustrações da política, da fortuna ou do talento, até o proletário humilde e desconhecido; todas as profissões, desde o banqueiro até o mendigo; finalmente, todos os tipos grotescos da sociedade brasileira, desde a arrogante nulidade até a vil lisonja, desfilaram em face de mim, roçando a seda e a casimira, misturando os perfumes delicados às impuras exalações, o fumo aromático do havana as acres baforadas do cigarro de palha.
Aprendi mais naquela meia hora de observação do que nos cinco anos que acabava de desperdiçar em Paris em todos os meus 22 anos de vida.
A lua vinha aparecendo por cima das montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas sobre o céu azul e estrelado. Admirei lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parecem que vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da alvorada. Estava na sua muda contemplação uma doce melancolia e não sei que ares de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição.
Já vi esta moça! Pensei comigo. Mas onde?...
Ela pouco se demorou na sua graciosa imobilidade e continuou lentamente o passeio interrompido. Meu companheiro cumprimentou a com um gesto familiar; eu, com respeitosa cortesia, que me foi retribuída por uma imperceptível inclinação da fronte.
- Quem é esta senhora? - perguntei a Blaise.
A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo e ironia, que desperta nos elegantes conhecedores da corte a ignorância de um amigo vindo de outro país, novato na ciência das banalidades sociais.
- Não é uma senhora, Draco! É uma mulher bonita. Queres conhecê la? – perguntou-me Blaise.
Compreendi e corei imperceptivelmente de minha simplicidade de recém-chegado, que confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia me ter feito suspeitar a verdade.
Depois de algumas voltas descobrimos ao longe a ondulação do seu vestido, e fomos encontrá la, retirada a um canto, distribuindo algumas pequenas moedas de prata à multidão de pobres que a cercava. Voltou-se confusa ouvindo Blaise pronunciar o seu nome:
- Virginia!
- Não há modos de livrar se uma pessoa desta gente! São de uma impertinência! - disse ela mostrando os pobres e esquivando se aos seus agradecimentos.
Feita a apresentação no tom desdenhoso e altivo com que um moço distinto se dirige a essas interessadas em ouro, e trocadas algumas palavras triviais, meu amigo perguntou lhe:
- Vieste só?
- Em corpo e alma!
- E não tens companhia para a volta?
Ela fez um gesto negativo.
- Neste caso ofereço-te a minha, ou antes a nossa.
- Em qualquer outra ocasião aceitaria com muito prazer; hoje não posso.
- Já vejo que não foi franca!
- Não acredita? Se eu viesse por passeio! – ela disse olhando para o mar.
- E qual é o outro motivo que te pode trazer à igreja? – Blaise perguntou irônico.
- A senhora veio talvez por devoção? - disse eu.
- A Virginia devota! Bem se vê que a não conheces! – Blaise riu com gosto, pousando a mão esquerda sobre meu ombro.
- Um dia no ano não é muito! - respondeu ela sorrindo, um sorriso sincero.
- É sempre alguma coisa - repliquei.
Blaise insistiu:
- Deixa te disso; vem conosco.
- O senhor sabe que não é preciso rogar me quando se trata de me divertir. Amanhã, qualquer dia, estou pronta. Esta noite, não! – ela disse firme
- Decididamente há alguém que te espera.
- Ora! Faço mistério disto?
- Não é teu costume decerto.
- Portanto tenho o direito de ser acreditada. As aparências enganam tantas vezes! Não é verdade? - disse voltando se para mim com um sorriso, dessa vez não tão sincero.
Não me lembro o que lhe respondi; alguma palavra que nada exprimia, dessas que se pronunciam às vezes para ter o ar de dizer alguma coisa. Quanto a Virginia, fazendo nos um ligeiro aceno com o leque, aproveitou uma abertura da multidão e penetrou no interior da igreja, em risco de ser esmagada pelo povo.
Não preciso dizer lhe que acabava de fazer uma triste figura. Não sou tímido; ao contrário peco por desembaraçado. Mas nessa ocasião diversas circunstâncias me tiravam do meu natural. A expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto, ainda mesmo quando os lábios dessa mulher revelavam a cortesã franca e sem vergonha, o contraste inexplicável da palavra e da fisionomia, junto à vaga reminiscência do meu espírito, me preocupavam sem querer. Atribuo a isto ter eu apenas balbuciado algumas palavras durante a conversa, e haver cortejado respeitosamente a senhora, que apesar de tudo ainda me aparecia nesta mulher, logo que a voz lhe expirava nos lábios, o semblante com ares de meiga distinção.
A festa continuou, e fomos acabá la em uma alegre reunião, onde se dançou e brincou até duas horas da noite.
Quando apaguei a minha vela ao deitar me, na visão que oscila entre o sono e a vigília, foi que desenhou se no meu espírito em viva cor a reminiscência que despertara em mim o encontro de Virginia. Lembrei me então perfeitamente quando e como a vira a primeira vez.
Fora no dia da minha chegada. Jantara com um companheiro de viagem, Harry Potter, e ávidos ambos de conhecer a corte, saímos de braço dado a percorrer a cidade. Íamos caminhando distraídos, quando, voltando nos, vimos um carro elegante que levavam a trote largo dois fogosos cavalos. Uma encantadora menina, sentada ao lado de uma senhora idosa, se recostava preguiçosamente sobre o macio banco e deixava pender pela janela do carro a mão que brincava com um leque de penas escarlates. Havia nessa atitude cheia de abandono muita graça; mas graça simples, correta e harmoniosa.
No momento em que passava o carro diante de nós, vendo o perfil suave e delicado que iluminava um sorriso mimoso, e a fronte límpida que à sombra dos cabelos avermelhados brilhava de vida e juventude, não me pude conter de admiração.
Acabava de desembarcar; durante dez dias de viagem e tinha me saturado da poesia do mar, que vive de espuma, de nuvens e de estrelas; povoara a solidão profunda do oceano, naquelas compridas noites veladas ao relento, de sonhos dourados e risonhas esperanças; sentia enfim a sede da vida em flor que desabrocha aos toques de uma imaginação de vinte e dois anos, sob o céu azul da corte.
Recebi, pois essa primeira impressão com verdadeiro entusiasmo, e a minha voz habituada às fortes vibrações nas conversas nas noites no vapor, minha voz excedeu se:
- Que linda menina! Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso! - exclamei para meu companheiro, que também admirava a bela figura.
Um embaraço imprevisto, causado por um carro a frente, tinha feito parar o carro em que ia a bela moça. Ela ouviu me; voltou ligeiramente a cabeça para olhar me, e sorriu. Qual é a mulher bonita que não sorri a um elogio espontâneo e a um grito ingênuo de admiração? Se não sorri nos lábios, sorri no coração.
Tínhamos parado para melhor admirá la enquanto o carro estava parado; e então ainda mais notei a serenidade de seu olhar que nos procurava com ingênua curiosidade, sem provocação e sem vaidade. O carro partiu; porém tão de repente e com tal ímpeto dos cavalos por algum tempo sofreados, que a moça assustou se e deixou cair o leque. Apressei me, e tive o prazer de o restituir inteiro.
Na ocasião de entregar o leque apertei lhe a ponta dos dedos presos na lava de pelica. Bem vê que tive razão quando disse que não sou tímido. O meu gesto a fez corar; agradeceu me com um segundo sorriso e uma ligeira inclinação da cabeça; mas o sorriso desta vez foi tão melancólico, que me fez dizer ao meu companheiro:
- Esta moça não é feliz!
- Não sei; mas o homem a quem ela amar deve ser bem feliz! – ele disse-me de volta.
Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos, admirar alguma das brilhantes plantas parasitas que pendem dos ramos das árvores, abrindo-se ao? E quando, à colher a linda flor, em vez da suave fragrância que esperava, sentiu nela o cheiro repulsivo do inseto que nela dormiu, não a atirou com desprezo para longe de si? É o que se passava em mim quando essas primeiras recordações me vieram diante da lembrança da Virginia que eu encontrara na igreja. Voltei me no leito para fugir à sua imagem, e dormi.
