Lágrimas dos Anjos

"O tempo passa. A saudade aumenta. As lembranças torturam. A distância torna-se real.

Um adeus.

E cada um de nós seguiu com suas vidas."

I: Saudades

Além das luzes dos postes, a luz lunar iluminava a rua naquela bela noite estrelada. As pessoas passeavam tranqüilas, respirando enamoradas o romântico ar de Paris. Ao longe, o som de um violino, cujas notas musicais flutuavam no ar alcançando-lhe os ouvidos como um doce sussurro. As estrelas realmente reluziam no céu. E o ar de Paris... nada se comparava a ele!

Quando era criança, ele adorava passear por aquelas ruas com sua mãe. Ainda se lembrava de cada vitrine das lojas na época – e algumas permaneciam quase intocadas. - e das tardes deliciosas naqueles cafés, onde se sentavam nas mesas na calçada e observavam o movimento dos pedestres. Todos enamorados, sentindo a romântica atmosfera de Paris. Ele ainda se lembrava também das noites glamourosas, em que a mãe o levava aos grandes teatros. Com ela ele aprendera a apreciar clássicos, a ser amante das artes, ainda que de certa forma, a paixão pela verdadeira arte estivesse no sangue da maioria dos franceses. Ela o ensinara muitas das coisas que ainda hoje eram preciosas para ele. E sentado na mesinha de um café, na calçada, exatamente como eles costumavam fazer, ele se lembrava de tudo isso e sentia falta dela. Por que talvez apenas ela e mais ninguém pudesse ouvi-lo e ajudá-lo a lidar com aquela saudade sufocante.

Mas ela estava morta. E provavelmente se ela não o houvesse deixado, nos seus dourados dezenove anos, ele não sentisse tanta falta daquela pessoa quanto sentia agora.

oOo

Chovia tanto que ele mal podia enxergar do lado de fora da janela. Mas ele permanecia ali, sentado na poltrona que arrastara para perto da janela, apenas para ver a chuva cair.

"- A chuva é bela porque lembra as lágrimas dos anjos. É como se uma legião deles chorasse ao mesmo tempo, exprimindo as tristezas daqueles que as guardam para si.

- Você guarda as suas tristezas, não Camus?

- Não. Pois algum anjo as exprime para mim."

Lágrimas dos anjos. Do jeito que chovia naquela noite, provavelmente fora necessário mais de dez anjos para exprimirem as tristezas dele. Por que aquele sentimento continuava perseguindo-o? Por quê os dias passavam e em vez de a saudade diminuir, só aumentava? Que diabos, ele estava se matando por alguém que nem se importara se ele ia ficar bem ou não. Simplesmente fora embora.

"Vai ser melhor para você."

Melhor como? Ele já não agüentava mais sonhar quase toda noite que nada havia acontecido, que não haviam se despedido ou então, que se reencontravam. E as malditas tristezas continuavam guardadas, mesmo que os anjos chorassem um verdadeiro dilúvio, mesmo que ele próprio chorasse... nada exprimia aquilo.

- Lágrimas dos anjos... será que você não está vendo que eles estão exprimindo as minhas saudades?

oOo

Ele olhou para a tela do celular, pensando que se o número de telefone dele estivesse gravado na agenda, naquele momento talvez ele telefonasse. E se o fizesse, o que diria?

"Alô, como vão as coisas? De repente eu me lembrei de você e quis dizer olá!"

Patético. E no entanto, não era o tipo de coisa que Milo faria? Só que Camus apagara seus rastros para que não fosse procurado. Melhor assim, não queria que o grego fosse prejudicado. Era apenas que às vezes ele não evitava de pensar o que teria acontecido se ele não fosse covarde. O que sua mãe teria lhe dito para fazer? Lutar até o fim pelo que era importante para ele. Será que naquele caso ela também diria isso? Será que ela aceitaria que o filho alimentasse aquele tipo de sentimento por outro homem? Será que ela não apoiaria o pai dele na atitude que tomara? Todos não acabariam ficando contra eles, no fim das contas? Fora melhor do jeito que havia sido.

E não haveriam telefonemas agora. Nem aquela voz sempre jovial, mesmo quando a pronúncia do inglês o deixava inseguro. Não haveria mais aquele sorriso que iluminara os dias de Camus na Inglaterra, nem o olhar desafiador e sensual. Não haveriam mais os momentos felizes, engraçados, divertidos ou mesmo aqueles tensos e ruins.

Não haveria mais nada do que ele deixara para trás e nem mesmo aquela atmosfera bela e romântica de Paris poderia dar fim à solidão que se estendia pelos dias, sem fim e desde muito tempo.

oOo

Quando a chuva diminuiu, ele pôde avistar a casa do outro lado da rua. Aquela mesma casa branca com janelinhas pintadas de azul. As luzes estavam todas apagadas, inclusive a da janela para que ele costumara olhar por tantas vezes, procurando aquela conhecida silhueta. Ainda agora, alimentava aquela tola esperança de que um dia ele veria a luz acesa novamente e o desenho perfeito de Camus, parado do outro lado dela, olhando para ele.

Porém a rua escura, exceto pela fraca iluminação dos postes, e vazia o fazia lembrar de um momento que ele daria tudo para esquecer.

"- Puxa, um encontro secreto, parece que isto está ficando ainda mais excitante!

- Milo, não seja bobo. - e ele dera mais um passo na direção do loiro, puxando o próprio capuz para a frente como se não quisesse que ninguém visse seu rosto. - É sério o que eu tenho a dizer e não posso demorar.

- Assim você me deixa desapontado. Só se me disser que pretende me raptar eu ficarei conformado.

- Sinto desapontá-lo então. - olhara-o ternamente, sentindo uma sensação esquisita pelo que deveria dizer. - Falemos sério. Eu vou embora, Milo.

Ele arregalara os olhos e sentira como se houvesse sido apunhalado sem o menor aviso.

- Como assim, embora? Pode ir parando Camus, eu já disse que você não tem o melhor jeito para piadas, nem mesmo as de mal gosto!

- Infelizmente, não é uma piada de mal gosto. É a verdade. Eu partirei logo e não poderia deixar de me despedir.

Conforme as palavras eram ditas, parecia que ele ia sendo apunhalado mais e mais vezes. E não queria acreditar. Com toda sua força ele não quisera acreditar.

- Você não pode estar indo por causa daquilo. E se for, eu irei junto! Eu juro que irei! Eu só sou feliz aqui porque tenho você, Camus. Que se dane o que eles pensam, você não pode ir embora por isso!

- Vai ser melhor para você. - ele abaixara o olhar por uma fração de segundo. - E já prolongamos demais isso, pode ser pior. Eu tenho de ir, Milo. Prometa que você vai ficar bem.

- Camus, você não vai embora. Não sem mim!

Camus apenas se inclinara e dera o beijo que Milo jamais se esqueceria. O último. E tão inesquecível quanto o primeiro.

Quando ele se dera conta de que o gosto salgado que ficara em sua boca era das lágrimas de seu amado, Camus já havia se afastado e atravessado a rua, entrando em casa e fechando a porta atrás de si, sem olhar para trás."

Ainda agora, era como se o gosto houvesse permanecido. As lágrimas do único anjo que ele conhecera. Sentia-se tão imbecil por ter permitido que a pessoa a quem ele amara – e ainda amava, como se aquele sentimento só crescesse, dia após dia – partisse, sem deixar qualquer pista. Por quê não o procurava? Por quê mantinha-se prisioneiro naquela casa, naquela terra que desde o começo ele detestara? Por quê ainda era covarde o bastante para permanecer ali, lamentando o maior erro de sua vida?

Mas tudo o que ele conseguia pensar é que já era tarde demais para tentar qualquer coisa. O que restava agora era deixar que os anjos exprimissem toda sua dor, pelo resto de seus dias.

oOo