Assim que Gina entrou com o carro em Castle Street, avistou a mulher que a esperava em frente à rodoviária. Embora a visse pela primeira vez, estava certa de que era ela. Harry a descrevera com exatidão: cabelo longo e preto, corpo esguio e elegante tudo o que Gina não possuía. Além disso, a estranha parecia ser a dona de qualidades indispensáveis a uma mulher, que Gina precisava aprender a adquirir...
Mordeu os lábios e, pisando no freio, fez os pneus cantarem ao estacionar junto do meio-fio. Observou a mulher com desdém. Não lhe faltasse coragem de desafiar o tio Harry, teria vindo de moto, pensou; mas até que era divertido buscar aquela mulher com ares de madame num jipe todo empoeirado.
Desceu do veículo e fitou a jovem com insistência.
- Srta. Chang? Perguntou, lançando um olhar sobre as duas malas ao lado dela na calçada. - Sou Gina Weasley.
A jovem olhou-a com altivez.
- É mesmo? Exclamou com ironia. - É sobrinha do Sr. Potter? Deus do céu, ele não estava exagerando, não é?
Gina apertou os lábios, engolindo a resposta que adoraria ter dado.
Controlou-se e disse secamente:
- Não quer subir?...
Os olhos horrorizados da srta. Chang caíram sobre o velho veículo.
- Entrar nisso aí? Onde está o Sr. Potter?
- Não pôde vir e me mandou em seu lugar.
- E onde está ele?
- Isso importa?
Gina começou a perder o pouco de boa vontade que ainda lhe restava...
Parecia que a srta. Chang sentia prazer em humilhá-la. Antes tivesse trazido o Mercedes, como Harry ordenara.
- Quer dizer que seu tio mandou me buscar nesse... nisso aí? ¬Gina cerrou o punho, quase enterrando as unhas nas palmas das mãos.
- Sem dúvida, é muito original.
- Harry teve um compromisso urgente no escritório - disse agressivamente. - Podemos ir?
- Bem... Hesitou a srta. Chang, olhando ao redor na esperança de que Potter aparecesse.
Gina deu a volta e, resistindo ao impulso de pegar na direção e deixá-la sozinha, entrou na parte de trás. Se o Land Rover era ruim demais para a moça, que ela própria encontrasse o caminho para o Matlock!
- Como é, vem ou não vem comigo? Indagou Gina, abrindo a porta e esperando com impaciência.
A srta. Chang não se moveu. Olhou para a bagagem com ar de que não estava acostumada a carregar nada mais pesado que uma bolsa a tiracolo e ergueu os ombros com indiferença. Bolas! Gina pensou. Nem pôr as malas no jipe ela podia?
O tempo estava passando... Quando voltassem, não queria encontrar o Mercedes de Harry parado em frente aos portões de casa e muito menos que ele descobrisse o que tinha feito.
A srta. Chang passou a bolsa e a jaqueta de um braço para o outro e olhou para a calçada, ainda com esperança de se livrar daquele incômodo.
Permaneceu imóvel.
Cada minuto mais aflita, Gina avistou o padre Carlos saindo do presbitério e caminhando na direção delas. Harry não era religioso, mas às vezes convidava o padre para jantar, e a última coisa que Gina desejava naquele momento era o que o padre a interpelasse. Aí sim, estaria perdida!
Soltando um suspiro, desceu do carro, deu a volta e, escancarando a porta de passageiros, indicou a srta. Chang que entrasse. Em seguida, com a agilidade própria de uma adolescente, jogou as duas malas na parte traseira do Land Rover. A porta foi fechada com violência segundos antes de o padre alcançá-las. O jipe arrancou, deixando atrás de si uma espessa nuvem de poeira.

Gina só se sentiu mais tranqüila quando já estavam a algumas quadras de distância, avançando pela High Street e sacolejando perigosamente ao virar a esquina rumo a Church Lane. Em poucos minutos, os arredores da aldeia ficaram para trás, e Gina começou a pisar mais leve sobre o acelerador enquanto subia Starforth Bank.
- Dirige há muito tempo? Perguntou a srta. Chang, sentindo-se mais segura agora.
- Há nove meses - Gina respondeu com displicência, recusando-se a ceder à tentativa de comunicação da jovem. Matlock Edge, a enorme propriedade de Harry, ficava a apenas oito quilômetros de Starforth, entretanto não desejava distrair-se conversando naquela estrada bastante tortuosa.
- Nove meses! - a srta. Chang repetiu, surpresa. - Mas se não me engano, seu tio me disse que você completou dezessete anos recentemente.
- Seis meses atrás - respondeu Gina, defendendo-se. - Mas comecei a dirigir a anos... Quer dizer. Fui aprovada no teste um mês depois do meu aniversário.
- Verdade? Retrucou a srta. Chang, sem estar realmente impressionada. - Imagino que aprendeu a dirigir com tratores ou coisa assim.. .
- Não, com o Mercedes de Harry - Gina replicou com arrogância. - Ele mesmo me ensinou, nas horas de folga.
- Harry? Você quer dizer o Sr. Potter, não? Seu tio Tiago?
- Sim. - Concordou dando um suspiro e encolhendo os ombros. ¬Ninguém o chama de Sr. Potter... Bem, praticamente ninguém. Ele não liga para isso.
- Compreendo - comentou a srta. Chang, dobrando a jaqueta metodicamente. - É um nome muito bonito... aliás Potter é uma pessoa encantadora!
- Foi por isso que veio para cá, srta. Chang? Por que acha meu tio encantador?
- Ora, Gina... - começou a srta. Chang, fitando-a com olhos frios. Depois deixou escapar um risinho. - Entendo agora o que seu tio quis dizer quando falou que você precisa de mais disciplina! Se embaraça os hóspedes dele do jeito que está me embaraçando, imagino quanto você deve ser problemática!
- As senhorita não é uma hóspede! Afirmou Gina, as mãos que seguravam o volante suando muito. Falara mais que a língua, pensou com tristeza. Harry ficaria furioso quando soubesse de seu atrevimento...
Provavelmente, mais uma vez ameaçaria mandá-la estudar na Suíça...
- Creio que você se engana - respondeu a srta. Chang. Alisando uma dobra da saia. - Seu tio foi bem claro ao dizer que eu deveria ser considerada membro da família e que, como preceptora, eu teria de corrigir o seu caráter...
Gina ficou chocada com essas palavras e nada respondeu. Aquilo era típico de Harry, pensou. Contratara uma preceptora prepotente e embonecada para corrigi-la e em vez de se preocupar com a sobrinha, preocupava-se com a estranha! Gina não imaginava o que se passava com Harry nos últimos tempos, mas ele vinha se comportando de maneira esquisita. Os passeios a que a levava tomaram-se cada vez mais raros e quando ele recebia visitas, quase nunca a convidava para reunir-se com elas no jantar: Em outros tempos, apresentava-a a todos os amigos, até mesmo às mulheres que entravam e saíam de sua vida, e que não foram poucas. Bem, Gina admitiu, pelo menos a respeito de uma coisa a srta. Chang tinha razão: Harry era um homem encantador e não havia mulher que resistisse a seu charme. Mas não se casou e, aparentemente, não pretendia fazer isso. Na opinião da Sra. Gittens, a governanta, era exatamente um bom casamento o que lhe faltava.
Talvez fosse Gina a responsável por aquele estado de coisas. Durante as intermináveis noites no internato, havia alimentado a esperança de que Harry apenas a esperava crescer para se confessar loucamente apaixonado por ela. Naquela época, era invejada pelas colegas que, nos períodos de competições esportivas e entregas de medalhas, teimavam em que o tio bonitão lhes fosse apresentado... Quanto a ela, acostumara-se a aguardar férias e feriados com ansiedade, a fim de poder gozar mais plenamente da companhia dele. Mas sua esperança acabou por revelar uma simples fantasia. Ao completar dezesseis anos, depois de insistir muito, conseguiu com que ele consentisse em sua saída da escola, mas uma vez em Matlock começou a evitá-la. Chegou até a acusá-la de "irresponsável, incorrigível."
Em parte ela havia contribuído para reforçar essa opinião. A indiferença dele fez com que procurasse formas de chamar atenção, e que nem sempre eram muito sensatas... Quando Harry a presenteou com uma moto, pelo décimo - sexto aniversário, não esperava que ela saísse dos limites da casa, e muito menos que percorresse as propriedades dos vizinhos como se estivesse disputando uma corrida, destruindo jardins, pomares, hortas... Afinal, pensou ela, que graça teria andar a trinta por hora sempre no mesmo lugar?
Como resultado dessas travessuras, viu-se privada da motocicleta durante dois meses, e, ao pegá-la de novo, grande parte de seu interesse havia desaparecido. Um mês e meio mais tarde, passara no exame de motorista e jamais ousara repetir aquelas loucuras.
No entanto, o castigo não a fez desistir das provocações. Um dia, subiu numa macieira do pomar e fingiu ser incapaz de descer. Só que seu plano falhou, Harry, em vez de subir para ajudá-la, pediu a Sra. Gittens que chamasse o corpo de bombeiros. Gina teve então a embaraçosa experiência de ser carregada nos ombros de um jovem bombeiro como se fosse um saco de batatas.
Mas se um incidente fez o tio ficar realmente furioso foi quando, numa abafada noite de verão, Harry surpreendeu-a saindo da piscina inteiramente nua!
Gina olhou de esguelha para a srta. Chang. Apostava como ela jamais nadara nua uma só vez na vida! Não conseguia imaginar a imaculada srta. Chang desafiando normas de boa conduta...
As estradas estreitas de Starforth deram no belo bosque de Jacob Hollow, e, mais adiante, no vale do rio Pendle. Ao sul e a oeste ficavam as áreas industriais de Yorkshire e Lancashire, mas Matlock Edge situava-se no vale de Pendle, cuja única marca do século XX eram as chaminés do moinho de Deacon. Os Potter se estabeleceram no ramo têxtil. O avô de Harry fundara a companhia e o fio de lã penteado de Potter vinha sendo produzido em West Riding desde 1908. O fato de que a West Riding passou a se chamar West Yorkshire não fazia a menor diferença. A Potter's Worsted conservava seu nome pela qualidade, e, embora o pai de Harry tivesse diversificado seus empreendimentos, e o próprio Harry possuísse outras participações em várias indústrias, o moinho original continuava a produzir com a maquinaria modernizada. Harry usara parte dos lucros de suas outras empresas com o fim de manter os padrões de atividade e de ocupação de mão-de-obra, nos quais o avô sempre insistira. Embora durante a recente recessão muitos moinhos tivessem chegado a falir, o de Potter conseguira se manter firme.
- Está longe ainda?
A pergunta da srta. Chang despertou Gina de seus devaneios.
- Não - respondeu, reduzindo a marcha para contornar melhor as curvas de Matlock Bank. Em seguida, encolhendo os ombros com displicência, acrescentou: - Lá está a casa. - Apontou. - Mais dois quilômetros e estaremos dentro da propriedade.
Com visível interesse, a jovem examinou a construção de pedra que se avistava na distância, contra o céu. Gina reconhecia que a propriedade era de fato muito bonita. A casa erguia-se imponente com seu estilo aristocrático. Quem não gostaria de possuir uma casa dessas? Gina se perguntou. Ela própria orgulhava-se de morar nela e poder mostrá-la a visitantes... Contudo, pressentia que com a srta. Chang as coisas iriam mudar... Pressentia que aquela jovem lhe traria problemas... Ah, como gostaria que Harry a julgasse incompetente como instrutora!
A estrada baixou de nível ao pé de um barranco e a casa escondeu-se por detrás das cercas vivas. A srta. Chang recostou-se, deixando escapar um risinho pelo canto dos lábios.
- Estamos em Matlock Edge, então - observou em voz baixa, como se falasse para si própria. - Seu tio deve ser um homem muito rico.
Gina preferiu não responder, ciente de que a srta. Chang seria outra pretendente... Cerrou os dentes furiosa. Seria possível que Harry se interessasse por ela? Sem dúvida, existiam outras mulheres que ele poderia escolher e não havia razão para envolver-se com a companheira de sua sobrinha! Seus lábios começaram a tremer incontrolavelmente. Afinal, por que se preocupava tanto com os casos amorosos de seu tio? Perguntou-se irritada consigo mesma. Já havia se defrontado com namoradas dele! E por certo haveria outras, e mais outras... Oh, Gina, Gina, o que estava vendo de especial na srta. Chang?
Havia um motivo que a incomodava em particular, agora: desde que saíra da escola, nenhuma mulher pisara em Matlock Edge, pelo menos não por longo tempo. As únicas visitas femininas se restringiam às esposas ou namoradas de homens de negócios e colegas de trabalho. E com estas não precisava encarnar o papel de garotinha travessa, como costumava fazer na frente das mulheres que cobiçavam a atenção de Harry.
Gina sabia que o maior interesse daquelas mulheres era sexo. Nunca fora menina precoce, mas aos poucos, à medida que seu próprio corpo se desenvolvia, e amadurecia como mulher, começou a compreender os motivos pelos quais todas elas não se afastavam dele. Harry era atraente, muito atraente fisicamente... Alto e esguio, não especialmente musculoso, mas gracioso e flexível, extremamente sensual nos movimentos... A pele fresca e jovem contradizia os cabelos já um pouco grisalhos... Mas eram os olhos verdes penetrantes que reforçavam o magnetismo sensual; saltavam das sobrancelhas espessas e pretas e cravavam-se como setas de aço nas pessoas, submetendo-as fatalmente. Gina lembrava-se da primeira vez que deparara com aquele olhar, quando seus pais morreram. Sua madrasta era irmã de Harry, e a órfã de apenas três anos acabou ficando com o único parente que lhe restou. Lembrava-se com ternura nos olhos de Harry, dos braços fortes que a seguravam, procurando embalá-la e fazê-la esquecer a morte dos pais, esmagados entre as ferragens do carro colhido por um caminhão de carga. Desde então, pensou Gina, ele parecia ainda embalá-la, de uma forma ou de outra. . .

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