Ninguém estava de vigília quando aquela luz incindiu no topo do santuário de luz fraca e pálida como o brilho de uma estrela solitária. Como se rasgasse uma dimensão ela surgiu sobre o leito de Saori Kido e foi caindo com a leveza de uma pena até o chão.
Saori despertou de um sono breve e com certa autoridade de uma Deusa em seu próprio templo apertou os olhos e a fitou:
-Hades...
A luz se expandiu e ganhou forma,de um ponto pálido e incandescente se moldou em um plasma negro até assumir uma forma quase humana.
-A que devo essa visita?A guerra acabou Hades. Voce perdeu.
-Sim.
Falou a massa negra disforme,com uma voz distante como se a fonte estivesse em outra sala,ou mesmo em outra dimensão.
-Eu perdi.
Tomou forma e dela já se podia distinguir uma boca,olhos profundos,azuis e altivos.
-Portanto vim curvar-me a vencedora desta guerra santa. Athena...vim lhe fazer uma proposta.
O plasma como varrido por um vento magico se dissipou e dele surgiu o Imperador do mundo dos mortos,com cabelos tão negros quanto é possível a uma mente mortal imaginar.
Saori pousou os olhos sobre os de Hades,esperando por um único brilho de raiva ou vingança mas tudo o que via era resignação.
Ele se curvou para ela,seu punho tocando o chão com delicadeza e a cabeça baixa como se de um servo se tratasse.
-Levante-se Hades. Não quero que se humilhe,esta guerra esta vencida,mas não sei o que sera de mim na próxima.
Levantou-se do leito e com uma estranha humildade caminhou até seu sólio. Um comportamento a que todos os outros deuses admiravam pois era curioso como ela sabia o seu lugar e como tal não se gabava dele.
-Diga-me rapidamente sua proposta pois não posso permitir que macule por mais tempo o meu templo.
O imperador do inferno pôs-se de frente para ela,seus olhos agora tão fixos que por um momento Saori deixou-se fraquejar,apertou com mais força o cetro e devolveu-lhe o olhar insistente.
-Athena,a justiça e a piedade com que vela os mortais a muito tem sido notadas por todos os deuses que reinam sobre este mundo...
Athena o ouvia,fitando-o do topo da escadaria onde o trono divino estava,porem,tais palavras não conseguiam mudar sua expressão.
Da mais sincera e santa virtude.
-Você tem assumido guerras,sacrificado a si mesma para manter esta paz tão frágil. Não perguntarei o porque,todos precisam ter um hobby.
Ela franziu o sobrolho,mas continuou calada,pacientemente a ouvir.
-Desejo que casa-se comigo,bela filha de Júpiter,sei que nunca de fato conseguirei imperar sobre seu cetro,seus domínios,para mim e para todos os outros,permanecerão intocáveis até o fim dos dias. Seja minha em uma união diplomática.
E subiu as escadas com os rufares de seu manto purpura sendo o único som a ser ouvido ao fundo daquela ampla sala.
E perante ela ajoelhou-se novamente,tomando-lhe a mão e cobrindo-a com o mais honrado beijo que um homem pode oferecer a uma mulher.
-Seja minha até o fim das é que a morte se torne tão poderosa que a tudo é que domine a mim,aquele que deveria ser seu eterno senhor.
-Uma união deste tipo deve satisfazer as duas partes.
-Você será satisfeita,em todos os sentidos que desejar como minha Rainha e como a Deusa dos Homens.
O semblante da deusa não se alterou. E a imagem da vitoria não poderia ser mais exata do que naquele momento. Na sua mão esquerda Saori tinha a deusa da vitoria transfigurada em um cetro do ouro mais dourado que o olimpo poderia produzir. Do outro seu arqui-inimigo curvado e submisso,a beijar-lhe as mãos a prometer tudo que uma deusa e uma mulher poderia desejar.
Seria fácil para qualquer um perceber uma possível impostora no lugar da Senhorita poderia derreter-se em jubilo,deixar-se envenenar por belas palavras e elogios. Entregar-se-ia a arrogância e ao narcisismo.
Mas não ela.
Athena.
A mais querida filha.
A mais virtuosa de todas.
-Como poderia ser como a Deusa do Homens?
Perguntou enquanto observava impaciente o rosto irretocável do deus intruso.
-Você os ama como se fossem criação sua. E eles a amam de fato...-e fez uma pausa com o intento de aguçar sua curiosidade-...até o momento da finitude,quando entram nos meus domínios,onde suas orações não são ouvidas por sua santa protetora...
E com um sorriso malicioso,quase maligno ,continuou:
-Onde sua luz não chega,minha bela.
Os olhos da deusa então se abriram,surpresa como se uma verdade obvia que a muito ignorava lhe escancarasse as portas da razão.
-É tamanha a dor que sofrem quando percebem que não lhe podem mais recorrer. Que seus pecados serão medidos com todo cuidado pelos meus juizes e então punidos com todo o rigor,sem a concessão do perdão.
A mão que segurava o cetro fraquejou. E antes que se desse conta,a voz sedutora de Hades estava a poucos centímetros de seus ouvidos com seus lábios roçando levemente seu rosto.
-Não seria fantástico se seu manto materno os tocassem mesmo após a morte?Livrando-os da dor e da duvida em sua santidade?Por que,sim,eles gritam seu nome,minha querida,com toda a força de seus pulmões descarnados durante muito tempo...e choram,pedem...e após dias de castigo solitário,sem nenhuma resposta,começam a xingar-lhe de todos os nomes que conheceram nas suas vidas terrenas. Todos os que são usados para manchar a honra de uma mulher,e isso durante toda a eternidade,até que enfim passam a pensar se você realmente um dia existiu.
Com tais palavras a face de pedra,tal qual ao mármore finalmente se moveu. Ela,boquiaberta de espanto e tristeza ergueu-se de um salto de seu trono,libertando a mão que o outro segurava,levando-a a boca que a muito custo conseguira em seguida fechar.
-Entende agora?-disse o deus da morte,erguendo-se com ela e a observando com um certo deleite que não conseguia mascarar na voz.
Ela não respondeu,tentava recobrar o controle enquanto seu olhar perdido vagava pelo chão do santuário.
-Eu sei,talvez você não se importe tanto com eles...-Voltou a discursar Hades com um pesar fingido e malicioso na voz.
-Eu me impor...-começou a dizer.
-Eu também não me importaria,afinal não os conheço a todos,mas alguns,os que sacrificaram suas vidas por mim em guerras passadas,ah esses com certeza eu gostaria de recompensar,do contrario,é claro,seria uma grande ingratidão.
-Chega!
Saori gritou,voltando-se para ele com olhos irados,mas que no fundo estavam cobertos de tristeza. Ela no fundo sabia que tudo era verdade.
Então calou-se sobressaltado,mais devido a uma onda de euforia que o inundava do que pela ordem da outra. Tudo estava correndo as mil maravilhas,o coração de Athena já era seu.
-Tenma,Shion,Dohko,onde você acha que estão todos eles e todos os outros?
Hades acabou por se sentar no sólio de Athena,enquanto ela escandalizada pela ousadia e paralisada pelo seu sorrido acusador nada podia fazer.
-O que será dos outros,dos rapazes que me derrotaram. Voce não espera que um gato seja gentil com um rato que mordeu-lhe a pata não é mesmo?
E pela primeira vez Saori pode ver por debaixo do véu resignado nos olhos dele um brilho vingativo.
E vendo que ela nada dizia,com apenas um olhar inconsolável e ascoso ele prosseguiu:
-Qual é mesmo o nome daquele cavaleiro,o de Pegaso. Ah sim,Seya...Nunca me esquecerei desse nome.
E no fim desta frase Athena fora vencida. Abaixou os olhos e o cetro.
-Serei sua Rainha,Nobre Imperador do Submundo,será seu o reino da terra e meu o das trevas.
Todo o semblante dele então iluminou-se vitorioso. Caminhou até Athena e lhe ergueu o rosto delicadamente com uma das mãos,selando aquele contrato com um beijo.
…...
-Seya,deite-se agora!
Disse Marin,empurrando Seya de volta pelo peito obrigando a se deitar na cama dura de seu alojamento,próximo a casa de Aries.
-Marin,eu juro,vi uma luz saindo do templo de ser um dos espectros.
-Não senti nenhum cosmo Seya,alias ninguém sentiu,o santuário esta em paz. Voce esta delirando.
-Não estou!-gritou Seya,forçando seu corpo a sair da cama e sendo novamente empurrado para ela.
-Aposto que enfraqueceu o cosmo para nos enganar. Chame o Shun,o Shiryu,chame todos,precisamos proteger Athena.
-Seya!-gritou Marin de volta-...se continuar assim a ferida vai abrir.
Mas ele não a ouvia,se retorcia e lutava contra ela,desvencilhando-se de seus braços.
-Sinto muito Seya.
E dizendo isso Marin lhe aplicou um golpe no ombro,desmaiando-o.
Lagrimas dolorosas escorriam por fora de sua mascara. Ele tinha feito tanto por todos,estava se recuperando bem mas de repente começou a gritar e a clamar o nome de Athena.
Era isso que ganhava por dar sua vida a ela?A loucura?
Por fim,tirou a mascara e enxugou a rosto. Abriu a porta e saiu do pequeno alojamento. Precisava avisar os outros de seu súbito excitamento.
…...
O cavaleiro de pégaso despertou. Não sabia quanto tempo havia passado,se varias horas ou uns segundos. Mas estava ciente do desmaio provocado pela sua mestra e com todas as forças que conseguiu reunir naquele estado resistiu a ele.
-Saori...-gemeu
-Athena...eu estou...
E caiu da cama,batendo os dentes no chão de pedra.
Pôs toda a vontade que possuía nas pernas e nos braços para se levantar e sem se preocupar com as dores antigas e novas jogou-se sobre a porta da cabana,para o mundo frio de inverno la fora,e para as escadas do santuário.
Mu não guardava a primeira casa. Com Kiki fora para o monte Fuji reconstruir e reviver as armaduras dos cavaleiros que lutaram na Guerra santa.
Nas outras casas não fora notado,provavelmente devido ao seu cosmo familiar e também muito fraco, impossível de ser notado,tal qual aquele,e sendo assim galgou uma por uma das intermináveis escadarias do santuário,de punho pressionado contra a ferida que ameaçava se abrir a cada novo passo.
Por fim chegou ao jardim das rosas,estas cobertas pela neve,tendo o efeito do perfume sido retardado. De qualquer forma sua respiração fraca não seria capaz de absorvê-lo.
"De qualquer forma,ela precisa de mim"
Quando chegou no fim as portas do saguão principal sua visão estava embaçada,a dor latejava por todo seu corpo e seus olhos lacrimejavam em resposta.
Nu,sem armadura ou proteção alguma arrastou-se feito um zumbi para a porta grandiosa diante de si. Não poderia deixar de ir. A certeza de que alguém invadira os aposentos de Saori era absoluta na sua mente e na sua alma. Tinha que protegê-la!
Dera tudo de si,desde seu inicio como cavaleiro,desde tempos remotos em outras vidas que a memoria não podia alcançar.
Dera tudo para ela e estava pronto para se sacrificar de novo. Estava sempre pronto para morrer por ela.
-Saori- murmurou
E empurrou a porta com o corpo,caindo sobre o ombro ferido do outro lado.
E quando ergueu os olhos,deparou-se com o sólio vazio,assim como todo o resto,deserto como se nenhuma alma nunca tivesse habitado aquele lugar.
Na soturnidade caminhou,galgando outra vez mais degraus com o destino aos aposentos pessoais de sua deusa,gritando com pausas pequenas o nome mortal dela.
-Saoriiiiii
E engasgava
-Saoriiiiii
E novamente chamava.
Até que a voz dela,de dentro do quarto respondeu:
-Seya
Pronunciou docemente seu nome.
E antes que pudesse tocar a porta do quarto esta foi aberta pela própria deusa,coberta pelo seu vestido simples e não pelo manto sagrado que como deusa deveria usar.
Ele sorriu,não se dando conta a primeira vista de seus olhos baixos e tomados pela vergonha.
-Seya...
-Saori,eu...
-Saia!
E os olhos dela se encontraram com os dele,tentando demostrar autoridade mas sem conseguir de fato encobrir um ínfimo ponto de tristeza bem ao fundo de todos os sentimentos que tentava demonstrar.
-Mas...Saori
-Vá embora mortal.
E do fundo do quarto,como se ocultasse toda luz que de lá emanava surgiu no umbral a figura sombria de Hades.
-Não vê que esta sendo inconveniente.
E com uma risada zombeira mirou-o com um desprezo vitorioso.
-Hades!Maldito,pagara por ter maculado o templo sagrado de Athena!
Gritou preparando o meteoro de pégaso com o punho que apertava o ferimento,mas devido a força que reunia este acabou abrindo numa explosão fazendo-o berrar e se ajoelhar de dor.
-Seya-
Engasgou de tristeza ao pronunciar o nome do seu bem intencionado protetor,de olhos novamente baixos não tendo como encarar os olhos dolorosos de Seya nem os cobertos de jubilo de Hades.
-Vá,por favor,ele não é mais uma ameaça. Entramos em um acordo,confie em mim e vá se recuperar.
-Entraram...e..m..um...acordo?
Gemia o cavaleiro tentando a todo custo se levantar,mas sendo obrigado a prostrar-se toda vez que tentava.
-Mas que espetáculo patético.
Seya ouviu a voz de Hades dizer:
-Espectro,retire já este retalho humano do templo da futura rainha do submundo.
Então ele a puxou para dentro do quarto fechando a porta com um baque forte que ricocheteou por todo o santuário.
Subitamente uma forma negra materializou-se diante dele e ele pode reconhecer os olhos cruéis de Radamanthys.
O espectro o ergueu no braço e o jogou sem qualquer cuidado sobre os ombros,como um saco de lixo muito pesado,e antes que pudesse dar-se conta estava de volta nas escadarias da casa de Aries onde foi deixado.
Radamanthys desapareceu e ele,o cavaleiro de pégaso continuou ali deitado,dessa vez sem forças para se levantar com a neve caindo como sempre cairá desde o inicio dos tempos sobre sua ferida aberta.
