7VERSE : REALIDADE 5
EPILOGO VIDA 5: SOBREVIVENDO AO INFERNO
CAPÍTULO 39
A PAZ DOS MORTOS
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INFERNO
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Um coração não é capaz de formular pensamentos ou expressar emoções. Esses são atributos da mente ou, para quem acredita, da alma.
Mas, um coração responde a emoções. Medo. Ansiedade. Paz de espírito. As emoções ditam o ritmo do coração.
Medeia, extasiada, observa a transformação que acontece à sua volta. Não foi fruto da sua vontade, mas trazia bem estar ao seu corpo e o bem estar do corpo faz bem ao espírito e melhora o humor. E Medeia tinha todos os motivos para estar de bom humor. Vencera a batalha e tornara-se a Rainha absoluta do Inferno, primeira e única. Um reinado que perduraria por toda a eternidade.
Nada no Inferno é real, mas seus habitantes reagem como se fosse. Como se realmente respirassem ar seco e sulfuroso. Como se a aspereza das bordas cortantes de seu solo rochoso e árido realmente ferisse seus pés. Como se os seguidos cortes na pele realmente sangrassem. Nada no Inferno é real, mas tudo ali causa desconforto, sofrimento e dor. Não é real, mas tudo é sentido de forma bastante realista.
Sempre foi assim. Mas, o Inferno começava a mudar. E Medeia encontrava-se no epicentro da mudança. Começara com ela, naquele exato local, mas a mudança já se fazia sentir por toda a parte. O que sempre fora, breve não mais seria.
O corpo de Medeia reage ao ar fresco impregnado com a fragrância do capim molhado que brota aos seus pés. Não foi fruto da sua vontade, mas seu corpo agradece à suavização do ambiente.
Não apenas Medeia, mas também as milhões de almas que absorveu. Almas que há milênios só conheciam dor e sofrimento experimentam um alívio que não fizeram por merecer.
Medeia, sentindo-se segura, se permite um minuto de relaxamento e, em seu peito, o coração de Jasão desacelera, passando a bater cadenciado. O coração que fora de Jasão e agora batia no peito de Medeia estava finalmente apaziguado.
O Coração não pensa. Não desde que abriu mão de sua condição humana. A alma que o habitava ainda persiste em seu entorno, mas sem uma noção clara de sua identidade original ou das identidades que, por um tempo, compartilhou. O Coração não pensa, mas de alguma forma ele SABE. Sabe que cumpriu o seu destino. Que sua tarefa está encerrada.
E, com isso, o poderoso feitiço de Idmon entra em ação. Um feitiço sofisticado gravado no subconsciente de cada argonauta sem que eles suspeitassem.
Quando Idmon apareceu de surpresa na mansão das Rochosas de Palemon e fez o gesto de pedir tempo, ele fez mais do que simplesmente paralisar seus antigos companheiros para esses não o atacassem enquanto ouviam suas explicações. Ele parou o tempo, foi até cada um deles e, tocando-os na têmpora, recitou o feitiço de transporte que seria ativado automaticamente assim que o argonauta que tivesse a convicção pessoal que cumpriu sua missão ou que não tinha mais meios de contribuir para concluí-la.
Aquele feitiço era uma porta de saída do Inferno. Pessoal e intransferível. Não abria um portal para não permitir que alguma outra entidade escapasse. Mas, o feitiço também precisava permitir que Adam Winchester fosse resgatado ou todo o esforço seria em vão. Se Idmon estivesse com Adam no momento do resgate, ele próprio poderia recitar o feitiço e trazê-lo consigo. Mas, e se não estivesse? Não era o ideal em termos de segurança, mas o feitiço precisava permitir o argonauta transportar mais alguém. Essa segunda parte do feitiço agiria sob duas condições: o argonauta precisava querer trazer a pessoa e estar em contato físico com ela.
Idmon tinha certeza que seu feitiço funcionaria, mas sua visão profética, embora poderosa, não mostrava de que forma isso se daria ou quem escaparia do Inferno. O feitiço funcionou. Mas, de uma forma totalmente inesperada. O coração que fora de Jasão, e que entrara no Inferno como se fosse o próprio Jasão, retorna ao plano material levando com ele Medeia e as almas de todos os condenados à danação eterna, demônios inclusive.
A forma física de Medeia havia se expandido para acomodar as almas dos condenados e ganhara a altura de quarenta metros. Era algo perfeitamente possível no Inferno. O Inferno tem suas próprias leis. Lá as leis da natureza podem ser subvertidas.
No plano material, não.
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PLANO MATERIAL
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Um coração humano bombeia sangue para o cérebro garantindo assim a oxigenação que mantém vivas as células cerebrais. Mas, há um limite para a capacidade de bombeio do sangue na direção vertical por um coração humano.
Ao materializar-se em sua propriedade do Oregon, nas cercanias de La Grande, a mulher de 40 m de altura ficou tonta, cambaleou, mas conseguiu se reequilibrar e permanecer de pé. E isso lhe foi fatal. Seu coração sentiu a ação da gravidade e da pressão atmosférica tal como são no mundo real e não mais como eram ilusoriamente percebidos no Inferno.
O sangue deixou de circular no cérebro e isso levou a mulher à inconsciência em segundos. E da inconsciência para a morte em poucos minutos. Uma morte rápida e indolor que Medeia não merecia ter pelo muito de sofrimento que causara em vida a tantos inocentes.
Medeia, mais do que todos, merecia o Inferno, mas esse velho Inferno, de punição e castigo, não mais existia. E, mesmo, que existisse, Medeia não seria mandada para lá. O Inferno é para quem acredita nele. Para quem foi criado em contato com a ética judaico-cristã e com a noção de pecado. Medeia acreditava em velhos deuses pagões, mesmo não os reverenciando. Sua fé fora forjada na infância, numa época em que a magia do Olimpo ainda se fazia presente no mundo dos homens.
Jasão conviveu com semideuses, filhos bastardos de deuses do Olimpo, e os Olímpicos foram os únicos deuses que conheceu e venerou em vida. Poseidon, em especial. Seu coração conservou esse vínculo de fé. A alma que esse coração criou também.
E foi assim que as almas do Coração de Jasão e de Medeia se viram subitamente na entrada do Portal do Hades, em Idaion Antron, onde foram recebidos pessoalmente pela deusa Hécate, a Senhora da Noite.
- Μηδεια, filha de Αἰήτης, princesa da Cólquida. Entre. O Hades a aguarda há milênios.
- O que eu estou fazendo aqui, Hécate? Eu estava no Inferno. Como posso ter vindo parar aqui? Quando eu atravessei o Portal do Hades rumo ao Inferno, eu estava viva. VIVA! Como posso estar morta? Quando e como isso aconteceu? Meus feitiços me tornaram imortal antes mesmo de eu me tornar uma Deusa. A Deusa Suprema do Inferno dos Cristãos. Meu lugar não é no Hades. Nunca será.
- Você adquiriu um imenso poder, Feiticeira. Um poder tão grande que rivalizava com os poderes dos Grandes de nosso panteão. Mas, assim como veio, esse poder se foi. O poder que você absorveu ficou no Inferno e está, neste exato momento, transformando o Inferno num segundo Paraíso. Não graças a você, mas foi você quem tornou isso possível. E também você, Coração de Jasão. Sua participação foi essencial.
- Meus companheiros argonautas ... Eu os convenci a me seguirem até o Inferno. Prometi a eles uma grande aventura e tudo que eles encontraram ..
- Não lamente por seus companheiros, Coração de Jasão. Eles tiveram a grande aventura que tanto almejavam. Uma aventura que inflamará seus egos pelos próximos milênios.
- Então, eles escaparam a tempo? Eles sobreviveram?
- Chega de spoilers. O que importa aqui e agora é o SEU destino final e, como lhe prometi, você será recebido no Hades como um verdadeiro Homem. Não apenas como parte de um.
- Obrigado, Senhora da Noite. Sinto-me honrado com a deferência. Me atrevo, no entanto, a lhe fazer um último pedido. Peço que leve a eles uma mensagem minha de agradecimento e despedida.
- E nós, Deusa da Morte dos Antigos Gregos? Nós não devíamos estar aqui. Não somos gregos. Não veneramos seus deuses. Não a conhecemos pelo nome. Esse não é o nosso lugar.
- Não, feiticeiro. Não é. Mas, o Inferno fechou suas portas para as almas humanas. E, na falta de outro lugar, o Hades receberá os que assim o desejarem. Para os que não sabem, há uma diferença fundamental entre o Hades e o Inferno. O Inferno é - ou era - um lugar de sofrimento e punição. O Hades é um lugar de esquecimento. A lembrança de tudo o que foram e fizeram será apagada. Suas histórias pessoais não mais serão fonte de culpa e seus crimes - os crimes que os condenaram ao Inferno - não mais serão objeto de punição. Aqueles de vocês que anseiam pela paz dos mortos poderão atravessar o Portal do Hades se assim o desejarem. Darei um dracma a cada um de vocês para que possam pagar o barqueiro pela travessia. Mas, o momento da decisão é agora. Esse oferecimento, se recusado, não será refeito. Os que adentrarem no Portal, ainda poderão reconsiderar sua decisão, mas apenas se não estiverem no barco de Caronte quando este partir. E, um vez que pisem a outra margem do rio Estige, não há mais volta possível.
- Essa minha aparência ... um humano velho e frágil. Eu era um demônio poderoso. Moldei minha aparência para refletir como verdadeira natureza. Para incutir medo e respeito. E estou aqui como o velho que eu nem mais lembrava ter sido um dia.
- Vocês, demônios, ganharam poder absorvendo uma parcela da energia presente nas almas humanas que barganharam. Quando esse poder foi removido, vocês retornaram à sua condição humana original. Todo o poder que acumularam foi absorvido por Medeia e esse poder foi liberado antes que vocês deixassem o Inferno. Vocês perderam sua natureza demoníaca e, como espíritos de homens mortos, não têm os meios de recuperá-la.
- Não vou abrir mão do poder que eu tinha. Ou da posição que conquistei no Inferno. Eu vou recuperar tudo o que perdi. Mesmo que precise recomeçar do zero.
- Sinto informá-lo, pequeno ex-demônio, que a transformação de um homem em demônio só é possível de acontecer no Inferno e, como já disse, as portas do Inferno foram fechadas para vocês. Os espíritos dos mortos que vagam pela Terra não se tornam demônios.
Houve muito burburinho e muita revolta pela "injustiça" daquilo tudo, mas, ao final, a imensa maioria dos condenados, mesmo que contrariada, aceitou a oferta. Os poucos que recusaram se espalharam pelo mundo como espíritos inquietos e raivosos. Vários cruzariam o caminho de caçadores nas décadas seguidas e teriam suas existências definitivamente encerradas.
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NOVO INFERNO
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Nenhum demônio. Nenhum condenado.
Nenhuma alma nascida humana.
Os humanos caídos tinham sido banidos do Inferno. Desde então, nenhuma alma humana recebeu permissão para entrar.
Isso não significa que o Inferno se tornou um lugar morto e silencioso. O Inferno ainda fervilhava de vida ou algo que se passava por vida.
O antigo Inferno era o habitat de uma infinidade de entidades que tinham alguma correspondência de forma e comportamento com animais e vegetais que existiam ou existiram no plano material. As feras e os insetos infernais, as plantas assassinas e entidades como os diabretes não portavam almas humanas. Comportavam-se como seres vivos, mas sua real natureza e sua origem eram desconhecidas. Ninguém sabe como ou quando estas entidades chegaram ao Inferno. Se foram criadas junto com o próprio Inferno ou se evoluíram lá numa dinâmica semelhante à da vida na Terra. O que se sabe é que estavam lá desde sempre e lá permanecerão por toda a eternidade. O Inferno é fluido e está em permanente reformulação. Isso não mudou. O ambiente hostil as moldou em formas monstruosas e comportamento agressivo. O novo ambiente suavizaria suas formas e comportamentos.
Também íncubos e súcubos nunca foram humanos. Eles próprios não guardam a lembrança, mas chegaram ao Inferno como refugiados. Eram originários de um plano espiritual onde o caos imperava e o desejo sexual moldava o próprio tecido da realidade. Fugiram pouco antes daquela dimensão colapsar e desaparecer da existência. Chegaram ao Inferno depois que vários dos condenados à danação eterna tinham sido elevados à categoria de demônios e, em pouco tempo, foram escravizados por eles.
Odiavam os demônios, mas gostavam de participar de seus joguinhos perversos com os condenados.
Podiam até mesmo, por conta própria, fazer a travessia e invadir os sonhos dos mortais. No plano onírico, seduziam e copulavam com humanos. Mas, não controlavam humanos despertos nem assumiam uma forma física no plano material.
Finalmente livres do jugo dos demônios, íncubos e súcubos, teriam que descobrir o que realmente queriam se tornar, agora que eram os governantes de fato do novo Inferno.
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NOVA IORQUE
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Nova Iorque. Um lugar de que todos falam. Um lugar que todos querem conhecer. Não é o Paraíso na Terra, mas vale a visita.
Times Square e suas luzes fascinantes. Sua vibe única.
Mas, mais do que a noite e as luzes artificiais, o que impressionou o recém-chegado foi a luz do Sol e o céu nem tão azul da cidade. Encheu os pulmões e saboreou o momento. O céu e o ar que seus habitantes não davam tanto valor por saberem ou por ouvirem dizer que existiam milhões de lugares onde o céu era mais azul e o ar menos poluído.
Já para o recém-chegado, tudo era novo e especial. Estava maravilhado com tudo que via. O Sol e a Luz eram muito mais impressionantes do que poderia conceber dos relatos que ouvira na Escuridão.
Sabia do alto preço que teria que pagar, mas aqueles poucos momentos ali lhe trouxeram a certeza de que valera a pena. Estava livre. Podia ir aonde bem entendesse e queria ir a muitos lugares, conhecer muitas pessoas e fazer muito sexo.
Sorriu maliciosamente para o homem que vinha em sua direção deixando o sujeito constrangido e a mulher a seu lado indignada.
O homem amava a mulher e gostaria de poder esquecer aquele sorriso. Era um heterossexual convicto e não era dado a aventuras e traições. Mas, fora enfeitiçado pelo estranho e seu sorriso. À noite, depois de fazer sexo com a esposa, sonhou que se entregava àquele homem misterioso e que tinha com ele o sexo mais prazeroso de toda sua vida.
Depois daquele breve encontro e do sonho perturbador, a vida daquele homem nunca mais foi a mesma.
O íncubo que personificara Samuel Winchester no Inferno estava gostando do seu novo lar. Gostando muito.
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27.02.2021
