AVISO LEGAL: Infelizmente os personagens não são meus, só os contrato para realizar performances por aqui. Pertencem ao Kurumada, à Toei e outros donos. Se meus foram, viveriam todos no universo de Simplesmente Amor (Love Actually).

Ainda que eu falasse a língua dos homens ...

A primeira neve do ano caía mansamente. Pelos vidros da janela, podia-se ver os flocos brancos contrastando com o escuro da noite quando eles refletiam a luz que vinha do interior da sala.

"Alguém deveria proibir esse tipo de exibição." Pensava, tentando prestar atenção ao texto de acupuntura que o Mestre lhe indicara. "É impossível me concentrar."

Ele procurava manter a discrição, toda a sua atenção centrada na descrição dos pontos energéticos da orelha esquerda.

"Só pode ser brincadeira."

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

Porque a menção dessa parte do corpo fez seus olhos viajarem para a orelha de pele branca, no momento refletindo o dourado alaranjado da lareira. Acompanharam a mão, que viera realocar alguns fios do cabelo escuro atrás da bendita orelha, viajando pelo rosto e o pescoço, alojando-se novamente no colo dela. Esse movimento o fascinou um ponto de deixar-lo sem ar.

Ao perceber o que estava fazendo, seu coração pulou e seus olhos buscaram o Mestre Ancião. Soltou um suspiro silencioso por ele estar sentado no seu sofá, muito entretido com um dos pergaminhos que encontrara naquela tarde e que dissera estar perdido há mais de 120 anos.

Engoliu em seco, respirando devagar para tentar se acalmar. Ouvia a madeira estalar.

"Em algum momento, pode ser imperativo." A neve formava pequenas montanhas brancas nos parapeitos e ele cogitou a possibilidade de expor o rosto em uma das janelas. "Será que ela não tem consciência do que está fazendo?"

A temperatura da sala estava aconchegante e ela viera de seu quarto para costurar, alojando sua cadeira de trabalho do lado oposto de onde ele se encontrava, de modo a incorporar o calor da pequena lareira. Assim que ela sentou, ele soube que estava perdido.

"É incrível como parecem estrelas." Os grandes olhos azuis refletiam as chamas, provocando cintilações que faziam as mãos de Shiryu formigarem.

- Shunrei, quer que acenda mais uma lamparina para você? - ele se assustou com a pergunta do Mestre. Baixou os olhos e cruzou como pernas, tentando disfarçar onde estivera sua mente. - Shiryu, pode colocar uma outra lamparina perto dela?

"Devo estar alucinando ... Parece que o Mestre está se divertindo demais com esse pergaminho antigo." O tom de voz era muito suspeito, mas ele tinha que manter a impassividade.

- Claro. - ergueu-se devagar, pegando uma lamparina que estava inútil perto da porta. Virou-se a tempo de vê-la tirar o dedo indicador dos lábios. Ela demorou demais para desviar o olhar dele e abriu um sorriso. - Onde fica melhor para você, Shunrei?

- Pode colocar aqui na mesa à minha direita. - o perfume suave de jasmim dos cabelos dela invadiu suas narinas assim que ele se curvou para alcançar a mesinha atrás dela. Seu cérebro lutou para manter o foco. - Obrigada, Shiryu.

Ele voltou às lições dos pontos energéticos. Tinha acabado de conseguir ler a primeira linha quando ela emitiu um gemido de dor. Ele abriu a boca para se solidarizar e a voz se recusou a se mostrar. Ela colocara a pontinha do dedo na boca para estancar o sangue. O rosto dela todo parecia feito de ouro e, ao mesmo tempo, envolto em mistério porque as cores dançavam, felizes por tocarem uma face tão linda, nesse momento movendo os lábios em volta do dedo injuriado.

"Tenho certeza que ela está fazendo isso de propósito." Shunrei virou-se para ele e, tirando o dedo da boca, mostrou.

- Foi só um furinho. - ele tinha certeza que seu rosto esquentava mais a sala do que a fogueira. Assentiu rapidamente, retornando ao livro.

"Nem sei mais o que está escrito aqui."

Ele fechou os olhos para tentar clarear os pensamentos, notando imediatamente que uma péssima idéia. Sua mente, claramente sem controle do local onde estava, encheu-se das imagens que ele só via em sonhos, quando sua consciência não estava presente.

Antes que uma tragédia ocorresse, ele preferiu a realidade. Queria bater em si mesmo.

"Você a está desrespeitando!"

A mão dela pousou no braço da cadeira enquanto ela descansava da costura. Começou a mover os dedos e, de alguma forma estranha, os movimentos de flexão coincidiam com os movimentos do fogo.

"Devem ser macios." Acompanhou a nova jornada dos dedos, agora desfazendo a trança e desembaraçando os cabelos longos dela. Os olhos dela pareciam hipnotizados pelas chamas, um sorriso displicente surgindo em seus lábios.

- Shiryu, em qual órgão você já está?

- No coração. - ele respondeu sem pensar, a voz num murmúrio. Balançou a cabeça e virou-se para o Mestre. - Na orelha, Mestre. Orelha esquerda. - O Mestre ergueu uma sobrancelha.

- Mas esse é o primeiro capítulo. Você está tendo dificuldades com os ideogramas? - ele negou.

Forçou seus olhos a ficarem na página, consciente da presença luminosa de Shunrei. Ela estava há cinco passos dele.

"Mas poderia estar na Lua."

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

Desde que completara 11 anos, não, muito antes, ela já o preenchia e esvaziava. Estava bastante consciente de que a atenção de Shunrei garantia o dia de entusiasmo e leve contentamento. Igualmente, sabia que a ausência dela fazia seu coração ficar ansioso e inseguro. E pensar que um dia a deixaria para trás fazia seu peito doer até perder a capacidade de inspirar e expirar.

A carta da Fundação chegara no dia anterior e ele ainda não mostrara a ela. Eram os últimos três meses dele ali nos Cinco Picos Antigos de Rozan.

"Sinto que a estou traindo." Ela voltara ao trabalho. Pela cor do tecido, era uma das camisas que ele usava nos treinos, e que tinha mais remendos que o tecido original. Não importava, ela se empenharia em deixar a costura impecável. Porque era uma roupa dele. Uma umidade surgiu em seus olhos, a tristeza parada atrás da máscara da impassividade de seu rosto. "Dói."

Às vezes, ele achava que Era quando ia para o meio do bosque e tentava meditar, ou bater em alguma árvore. Uma vez, tentou falar com um pássaro. Na maioria das vezes, tomava um banho gelado nas quedas d'água de Rozan.

"Com quem eu posso falar sobre isso?" sua lista era bastante reduzida. Considerar esse um assunto extremamente íntimo não ajudava.

- Vou fazer um chá para nós. - ela anunciou, esperando a concordância dos dois. - Shiryu, veja se a camisa ficou boa. - entregou uma peça ao passar para a cozinha e os dedos deles se tocaram.

Ele sentiu um pequeno choque subir pelo seu braço, arrepiando sua nuca.

"Será que eu vou ter coragem de voltar?" A sala pareceu mais escura sem ela.

Os flocos de neve continuavam a cair silenciosos. Ele a ouvia se mover na cozinha, colocando a chaleira no fogão, colocando a mistura de ervas que ela inventara no bule, dispondo as xícaras na bandeja. Já a vira muitas de vezes fazer isso.

"Ela é muito elegante." Os movimentos delicados e precisos o admiravam. "A delicadeza e a determinação em pessoa."

Do fundo da memória, retornaram as vezes em que ele, pretendendo ser gentil, a deixara ganhar nos jogos de xadrez. Ela percebera e o Mestre o repreendera.

- Você a está julgando como mais fraca, Shiryu. Jamais faça isso novamente. Quando você subestima as pessoas, você as magoa e humilha. Era isso que você queria? - ele negou com veemência, desculpando-se solenemente.

"E ela foi generosa ao se empenhar em nunca perder um jogo. Como em tudo o mais." Ela trazia a bandeja de chá e ele apressou-se a ajudá-la, fechando definitivamente as lições por aquela noite.

- Está bom? - ela perguntou, sentando-se ao lado dele agora. - É aquela mistura para recompor as forças depois de um treino rigoroso. - ele confirmou.

O líquido morno levou a tristeza que estacionara em seu rosto para o estômago.

"É doce e dolorido." Ela começou a ler o livro que ele descartara. Os lábios dela se moviam numa leitura silenciosa, provocando o acendimento de pequenas fogueiras em todas as extremidades do corpo de Shiryu.

- Lembro de você testando com a minha boneca de pano.

Os olhos azuis o observavam por cima das páginas até que ele não mais desviou os seus próprios. Ele os assistiu piscar e serem apertados quando ela sorriu e ruborizou. Seus dedos flexionaram de vontade de tocá-la.

"Deve ser crime previsto na legislação o que ela está fazendo."

- Está um calor aqui dentro, não está? - ela comentou, indo até uma das janelas e abrindo uma fresta. Começou a aparar os flocos brancos, emitindo seu risinho tímido que mexia com as entranhas dele.

- Shunrei, cuidado para não constipar. - o Mestre alertou. Ela assentiu, voltando para perto da lareira.

"Amanhã falarei com você." O corpo dela voltara a ser tingido pelos núcleos cálidas que tanto combinavam com seu coração grande e generoso. "Só espero que não diminua a sua luz."