Oceano Antártico, Próximo as Ilhas Órcades do Sul, dois anos antes
Algo de estranho estava acontecendo. Os rapazes da meteorologia haviam previsto que hoje o mar estaria mais calmo. Ninguém havia previsto que a Corrente Circumpolar Antártica iria dar de presente para os jovens pesquisadores uma bela de uma ventania capaz de abalar até mesmo os navios do Serviço Antártico Britânico, que estavam na região, mais uma vez, realizando pesquisas sobre o aquecimento global.
Tudo estava enigmático, e Kanon sabia disso. Kanon sentia.
Os homens do navio tentavam voltar para as Ilhas Órcades do Sul, aonde a base de pesquisa britânica se fixara, mas estava difícil. E Kanon, embora filho de uma típica mãe grega ortodoxa, e ele próprio não acreditasse em nenhum deus, fez uma pequena prece mental para Poseidon, para que ele acalmasse os mares e o fizesse chegar são e salvo na base.
E foi ali, no meio da prece, que ele a viu.
Uma mulher. No meio do mar.
Embora ele estivesse distante dela, conseguia ver que ela era uma mulher branca, com longos cabelos loiros. Ela tentava, a todo custo, se livrar da fúria do mar, se agarrando em um grande iceberg. Ela estava nua, e Kanon não entendia como aquela mulher não havia morrido de hipotermia ainda. Mas na hora que ele a viu, gritou para os companheiros a ajudarem.
- JOGUEM UM COLETE SALVA-VIDAS PARA ELA! – gritou John, seu parceiro de pesquisa, enquanto corria pelo navio.
Jogaram um colete salva-vidas para ela, e mais uma vez, Kanon contrariou as suas próprias crenças, e fez mais uma prece para Poseidon, para que ele salvasse a mulher, para que ele a trouxesse para o navio sã e salva. Mas o colete não chegou até ela, pois as ondas do mar o jogaram para longe, brincando com a sorte da mulher que tentava se agarrar a vida.
Kanon teve uma ideia terrível.
- Peguem um bote, um colete e um remo! Eu vou até lá! – gritou para os rapazes.
- Você tá louco? – perguntou John – Você vai morrer junto com ela! Não podemos fazer nada Kanon!
Mas Kanon já desprendia o bote, de colete já pronto, por cima de seu casaco grosso e com o remo na mão, foi, junto com o bote, enfrentar a fúria do Oceano Antártico. A sua sorte é que o bote estava preso a uma corda dentro do navio, o que poderia lhe salvar, caso não conseguisse salvar a mulher.
E dessa vez, Kanon disse sua prece em voz alta, enquanto remava o maldito bote em direção a mulher.
- Poseidon, me ajude. Por favor, me ajude. Eu te imploro.
Ele era bom remador e um excelente nadador. Quando estudava na sua alma mater, a Universidade de Atenas, chegou a participar de alguns torneios pela faculdade, no remo, mas principalmente na natação, que gostava muito. Eram bons tempos, no qual ele participava dos jogos universitários, e depois ia comemorar em festas, com bebidas de procedência duvidosa, substâncias ilícitas de procedência mais duvidosa ainda, e depois voltar bêbado para casa e ouvir sermões de Saga, seu irmão gêmeo certinho e exemplar.
Estava conseguindo, estava chegando próximo da mulher. Seria Poseidon ouvindo suas preces?
- SEGURA A MINHA MÃO! SEGURA MINHA MÃO! – disse Kanon, rezando para que a mulher entendesse inglês.
E aquele era o pior momento possível, mas ele reparou. Ela era linda. Provavelmente a mulher mais linda que ele viu no mundo, em toda a sua vida. Os poetas gregos jamais seriam capazes de descrever tamanha beleza na vida. Ela tinha um longo cabelo loiro e liso, que estava um pouco mais escuro, pois estava encharcado. Tinha um corpo esbelto e admirável, com cintura fina e quadris mais largos. Suas mãos, agarradas no gelo, eram delicadas, com dedos finos e longos. Seus lábios eram grandes e rosados, e pareciam tão macios quanto um travesseiro de penas, tão doces quanto uma fruta em sua estação. E os olhos eram de um azul da cor do mar, mas não esse mar agitado, mas dos mares quentes e calmos do Mediterrâneo, do mar de sua casa.
A mulher olhou, assustada. Talvez não imaginasse que ele cometeria a loucura de resgatá-la, de enfrentar o mar revoltoso para salvar a sua vida, que seria apenas mais uma entre tantas. Entretanto, ele faria, mil vezes se pedissem, pois ela era a mulher mais linda do mundo, e mulheres lindas não mereciam ter a sua beleza engolida pelo mar.
Mas os deuses não estavam do seu lado.
O bote virou e ele caiu no mar. Mas ele conseguiu pegar o colete em suas mãos e se agarrando ao iceberg, tentou colocar nela, que achou o movimento muito estranho e invasivo.
- Eu estou tentando te salvar! – disse Kanon – Você entende o que estou falando? Entende inglês?
Ela balançou a cabeça, assustada. Entendia. Mas por que não queria colocar o maldito colete?
A resposta nunca veio. Uma onda violenta veio sobre si e o puxou para baixo. Tentou nadar, mas a fúria do mar se jogou contra ele, o arrastando, o sufocando.
A última coisa que viu foi uma longa cauda de sereia, fios loiros e olhos azuis, tentando salvá-lo.
Tinha algo em seus lábios. Eram macios, mais doces que as uvas frescas. Estavam o beijando? Se fosse isso, queria que o beijassem o resto da vida, queria que aquilo não acabasse. Mas não pareciam que estavam tentando beijá-lo. A pessoa estava tentando forçar ar dentro de seus pulmões, com seu hálito quente e reconfortante, tentando salvá-lo.
Mas ele não queria ser salvo. Ele queria aqueles lábios, aquele beijo, pelo resto da eternidade.
Então ele abriu os olhos lentamente. E lá estava ela, sua sereia, com o rosto levemente sujo com a areia escura da praia, com os cabelos encharcados, com os lábios rosados e os olhos azuis, tão doces e preocupados olhando para ele. Suas mãos macias estavam na lateral de seu rosto e Deus, que pele macia e quente.
- Kanon! Meu Senhor Kanon! Você está vivo! Meu Senhor Kanon, me escuta!
Ela falava sua língua natal, que ele sentia tanta falta de falar, o seu amado grego. E Kanon, tonto e fraco pela falta de ar, tremendo de frio, com pontos escuros dançando sobre suas vistas, disse, bem baixinho, o que ele queria ter dito desde que colocou os olhos nela:
- Você é o paraíso?
Por um segundo ela ficou assustada com o que ele havia dito, e arregalou seus enormes olhos azuis. Depois, olhou para ele, da forma mais carinhosa que uma mulher olharia um homem, como se todo o amor tivesse refletido nos olhos da cor do mar e sorriu, o sorriso mais doce do mundo, indescritível e feliz, por tê-lo ali.
Kanon mataria e morreria para que ela o olhasse assim pelo resto da vida. Ele não precisaria comer, beber e nem dormir. Ele só precisava dela ali, da sua sereia.
- Não se lembra de mim Meu Senhor? Não se lembra?
Kanon queria responder, mas seu corpo não deixava. Estava ficando pesado.
- Kanon, eu sou a...
E a escuridão levou Kanon.
