Nota: Decidi traduzir os meus fics de Banana Fish porque sim.

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'A vida não é justa' era uma frase que resumia quer a imaturidade mais insensível, quer a realidade mais pura e dura. Podia ser usada para justificar o inimaginável, livrando-se de qualquer amostra de responsabilidade como quem sacode o pó da roupa; mas era uma implacável, dura e inescapável verdade.

A ténue linha entre ambos os lados parecia inexistente. Às vezes, era simplesmente mais prático mantê-la - de novo, aquele livrar-se de responsabilidade, de não pensar demais no assunto.

Outras vezes, a linha ténue era berrante, explicita e obscena.

Blanca viu-a claramente quando encontrou Ash naquele colchão sujo e gasto no motel para onde seguira o rapaz e o outro capanga. Aquela linha traiçoeira estava ali, agora com o seu novo e feio contorno - hipocrisia; afinal, Blanca sabia quem era o Monsieur, o que ele fazia. Mas quem era Blanca, um assassino mercenário, para fazer acusações? No entanto, por mais que não se tivesse particularmente debatido na sua vida contra aquele frágil equilíbrio - escolhendo normalmente ignorá-lo, acenar-lhe aquiescente - momentos como estes não provocavam qualquer hesitação.

Admitir a injustiça da vida não significava que lhe fosse indiferente. Não quando a hipocrisia e pragmatismo eram confrontados com o seu real, e terrível, resultado.

Blanca não pensou, não analisou nada disto na altura. O seu corpo simplesmente reagiu por instinto, por alguma empatia tão profundamente entranhada no cerne da sua natureza que ele por vezes se esquecia dela - ou que escolhia reprimir. Quanto soldados vira ele quebrar, os seus corpos a desistir sob a pressão da mente aguentar, perdendo contra o peso esmagador de tudo aquilo? Reconheceu-o demasiado bem, o momento em que viu a raiva e a vergonha de Ash transformarem-se em pânico, quase conseguiu sentir os pulmões do rapaz fechar e comprimir e o seu coração ser esmagado entre eles, como se os seus próprios pulmões estivessem em sintonia. Como Blanca sempre odiara ataques de pânico; a maneira com o corpo desliga, os membros falham sendo considerado inuteis, o corpo a cair como uma pedra, o ar subitamente transformado em cimento. Como a mente se mantém totalmente consciente para sobreviver, mas e vez disso só sente cada segundo de tudo aquilo, de estar aprisionado e esmagado e a afogar na sua própria jaula, apenas pensando que vai acabar, pára, morre. Meu Deus, dói, não consigo respirar. não consigo respirar. Quantas vezes Blanca testemunhara aquilo.

Blanca segurou Ash perto, mais perto, superando aquele primeiro instante de pânico sincronizado e ficando totalmente calmo. A sua mão moveu-se em círculos lentos, seguros, nas costas do rapaz. Uma suavidade que ninguém lhe devia mostrar há tanto tempo, Ash já nem devia sequer lembrar-se que existia. Falou numa voz baixa e tranquila, assegurando o rapaz que ia ficar bem, que ia passar. Ash tinha poucos motivos para acreditar nele; ele, um estranho, ele, um homem adulto, um mercenário, um empregado do seu maior atormentador. Mas por alguma razão, Ash acreditou. Porque Ash era apenas uma criança, e as crianças sempre são atraídas por carinho e atenção, não importa o quão débeis essas demonstrações possam ser.

Todo aquele aço que revestia a pessoa de Ash, forjado por dor e sangue, desapareceu durante aqueles longos minutos até ele conseguir recuperar o fôlego, chorar, ansiar por aquele conforto e segurança que Blanca lhe deu tão facilmente, sem querer nada em troca. Esses minutos passaram, no entanto, e lentamente, as barreiras voltaram a erguer-se de uma forma que quase pareceu física a Blanca; como o corpo de Ash começou a fechar, a pele nua a gelar ao toque contra o corpo de Blanca, exaustão a dar lugar a uma aceitação induzida, como se esperasse ter de dar algum género de retribuição por este momento. Blanca viu o flash de confusão naqueles olhos verdes quando Blanca desenlaçou os braços do corpo de Ash e se afastou, sugerindo ao rapaz tomar um duche e voltando prontamente as costas para lhe dar a privacidade necessária.

Que mundo era aquele que fazia com que crianças assumissem que ninguém as ajudaria a menos que fosse em troca de algum favor sexual.

Blanca pensou nisso agora, enquanto ouvia distraidamente o som de água corrente na casa de banho. A vida de violência que Ash tinha sofrido e iria continuar a percorrer sem escapatória; a vida de alegria e diversão que ele poderia ter tido. Era particularmente flagrante quando Ash sorriu pouco depois ao regressar ao quarto; era simultaneamente inspirador e assustador, como ele podia estar tão ferido e ainda assim tão intacto algures sob aquelas ruínas.

De que servia pensar tanto naquilo? O rapaz não escaparia das garras do Monsieur. Aquele punho de ferro poderia eventualmente providenciar-lhe algo semelhante a uma boa vida; mesmo que fosse paga de todos os modos nocivos. Mas que mais haveria com que o rapaz ambicionar? Cada momento de dor e sofrimento do seu passado iria ficar ali para sempre, e ele não conseguiria sobreviver sem o amor ou ódio do Monsieur.

Já o capanga, esse estava claramente a esquecer-se do seu lugar, e isso era algo que poderia ser resolvido com muito mais facilidade. O interesse do Monsieur em Ash era obviamente muito além de um simples chulo ou traficante humano; quão bem iria isso misturar com o facto de um dos seus homens estar a servir-se da sua preciosa propriedade nas suas costas? Mas aí, seria Blanca a esquecer-se do seu lugar; o seu trabalho era assistir e treinar Ash, não descobrir ou questionar-se que outras actividades o rapaz fazia, com quem, ou quão voluntariamente. Os negócios do Monsieur eram problema dele. Como ele lidava com os seus homens e a sua propriedade eram problema dele.

O que significava que Blanca podia ter uma palavrinha com o capanga em questão. Off the record, de forma estritamente não profissional. Para distração pessoal, fosse. Ninguém poderia dizer nada contra; não o Monsieur, nem o capanga Marvin, nem Ash. Nem o próprio Blanca.

Como é que isso mudava de facto a realidade em que Ash vivia? Poderia ser como deitar uma única, desdenhosa gota de água na boca de um esfomeado. Um acto miserável que só reacendia a raiva e a vontade de aguentar mais um pouco.

Num mundo ideal, Ash (e qualquer outra pessoa, para que conste) não deveria viver assim. Uma coisa, propriedade de outra pessoa, cujos benefícios e gratificações não apagavam o facto de ser um animal de estimação, uma criança molestada e magoada de maneiras inimagináveis. Mas o mundo não era ideal, afinal de contas, e onde estaria Blanca se fosse? O mundo priorizava a sua existência acima do bem estar e segurança de crianças - e ele não estava totalmente contra isso.

Infelizmente, a vida não é justa.

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fim

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Obrigado por lerem, se acharem erros por favor digam.

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