Nota: Decidi traduzir os meus fics de Banana Fish porque sim.
Avisos: menções de violação/estupro, autoaversão e autoculpabilização. O Ash tem 16 aqui por isso é uma criança, o que torna tudo isto ainda pior.
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Ash esperava que a confusão e barulheira familiar da cidade nocturna desaparecesse atrás de si ao entrar no apartamento, mas não desapareceu. A porta e as paredes grossas que ele se certificara ter no apartamento para a sua privacidade e a de Griffin tinham bloqueado totalmente as vozes do exterior, por isso só as ouviu no segundo em que a porta se moveu, e toda a exaustão e dor foram substituídas por adrenalina ao puxar a pistola. Só aí reconheceu as vozes, e um flash de raiva atravessou-o.
Atirou com a porta atrás de si e de imediato Skipper e Shorter saltaram, voltando os rostos e sorrindo abertamente.
- Oh, Ash! - cumprimentou-o Skipper. - Finalmente voltaste! Nós-
- O que é que estão a fazer aqui, caralho? - cortou ele, olhando para Shorter mas referindo-se a ambos.
Shorter tinha estado a sorrir também, e demorou uns segundos a mais do que Skipper, sempre muito mais observador do que o rapaz mais velho, a reparar na nota assustadora na voz de Ash e no quão diferente era a expressão na sua cara.
- A-Ash, demoraste mais do que tinhas dito- - tentou o rapaz dizer, mas Ash não queria saber. Não conseguia fazer isto, não podia ver ninguém, não agora, eles não tinham direito nenhum a estar aqui.
- Saiam.
- Whoa, o que é que se passa? - tentou Shorter, e foda-se porque é que ele estava aqui?! Não era suposto ele estar aqui, no seu apartamento, onde o seu irmão estava! - Podes baixar a arma, somos só nós. Nós-
- Eu disse para saírem!
- Ash- - tentou Skipper novamente, mas dessa vez foi interrompido pela pancada estridente da arma a voar e a bater no chão com violência, rodopiando loucamente e fazendo com que quer ele quer Shorter saltassem e dessem um grito.
- Whoa, Ash! C'um caralho! O quê que se passa contigo?! Acalma-te!
- SAIAM!
Shorter continuou a gritar-lhe mas Skipper agarrou-o pelo braço e puxou-o para a frente, os olhos esbugalhados e culpados e assustados e Ash não conseguia fazer isto agora, não conseguia olhar para ele, não conseguia sentir-se culpado por o assustar daquela forma, não conseguia olhar para ninguém, eles não deviam estar aqui para começar e para o verem naquele estado. A porta fechou-se atrás dele e o silêncio pelo qual rezara chegou finalmente, mas agora foi preenchido por um grito frustrado que lhe arranhou a garganta e que ele teve de reprimir de seguida ou então a barragem em torno de todos os seus pensamentos e do seu ódio iria quebrar e seria demais.
Não acontecera nada de especial. Nada fora do normal. Nada que ele não esperasse. Marvin sempre tinha sido o pior tipo de porco à face da terra, o pior numa pilha de merda em que classificações mal pareciam importar ou existir, e Ash estava habituado a isso. Não importava que ele tivesse de ter lidado com o Dino uma hora antes. Não importava que Marvin tivesse sempre mantido os seus comentários e escárnios, as suas indirectas e a sua luxúria nojenta, embora já se tivesse passado um tempo desde que tentara fazer algo além de agarrar o braço de Ash. Inevitavelmente, ele haveria de ficar frustrado, e inevitavelmente chegaria o dia em que ele haveria de ter uma recordação dos 'bons velhos tempos' mesmo que Ash já não fosse tão pequeno como Marvin gostava ou se lembrava.
Nada disso importava. Ash estava habituado, e esperava que acontecesse. Afinal, era sempre assim. Toda aquela luxúria, sempre a culparem-no a ele, ele é que quisera. Era só mais do mesmo.
Hoje, fora simplesmente demais.
Já não queria saber.
Naquele momento, era simplesmente demais. Não queria saber, tudo parecia demais e a única coisa gritante e dominante na sua mente naquele momento era a necessidade de desligar. Não era lavar-se, ou despir-se, não era nada a não ser cair na cama e não voltar a acordar. Até se esqueceu que os pesadelos iriam tomar as rédeas. Naquele momento, era simplesmente demais e ele não conseguia aguentar mais.
Mal olhou para a cama desfeita, os lençóis numa pilha para lavar e a almofada atirada para um canto. A simples ideia de agarrar uns lençóis quaisquer e estendê-los sobre o colchão parecia ser a coisa mais difícil e inútil neste mundo. Era demais. Estava demasiado cansado. Ash nem descalçou os sapatos, simplesmente se enterrou no colchão áspero completamente vestido, sujo e manchado e nojento como tudo nele era, enfiando a cabeça na almofada e sentindo cada pontada de exaustão como agulhas nos olhos e uma tonelada de peso sobre o corpo. Uma parte dele tentou dizer-lhe o quão nojento ele era, como até a mais básica higiene humana era algo que ele rejeitara, não achava digna de si, mas Ash desligou-a.
Foi essa exaustão que conseguiu fazê-lo dormir em apenas alguns minutos depois de cair na cama. Foi um sono curto e agitado, cheio de imagens que dançavam na fina linha entre pesadelos e memórias, reacordados agora não pelo que acontecera há horas atrás mas sim pelo seu corpo em contacto directo com o colchão áspero sob ele, forçando a sua mente para outros tempos e lugares sem qualquer restrição, para motéis e pensões em becos para onde o atiravam, ou para onde entrava contrariado, onde o prendiam de cara para baixo contra colchões ásperos tais como este uma e outra e outra e outra vez, todo o suor e saliva entranhadas no colchão a entorpecê-lo e todo o pó e sujidade a cobrir a sua boca quando gritava contra a cama.
Acordou num salto, coberto de suor frio e a tremer, a garganta áspera e horrivelmente seca, o corpo a doer e pesado. Demorou os segundos habituais a recuperar totalmente a consciência e noção de onde estava e onde não estava, o que era realidade e o que era pesadelo embora, em alturas como esta, fosse difícil distinguir uma da outra. Ainda a arfar, Ash tentou engolir e inspirar, acalmar o coração e a mente estúpida, mas era culpa sua; claro que devia ter estado à espera daquilo, deveria saber que ia acontecer. Quando muito, só tinha piorado e aumentado todos os estímulos à sua volta. Quer nos pesadelos quer na realidade, era sempre, outra vez, culpa sua por deixar as coisas acontecerem e as piorar.
O olhar de Ash caiu sobre o seu corpo, o colchão descoberto sob ele, lutando contra os tremores que o queriam quebrar e perdendo. Sentiu o peso da bexiga também, gritante, e isso seria mesmo o que lhe faltava, não era? Mijar na cama como um miúdinho assustado - oh como aquele cabrão porco do Marvin iria adorar isso, como ele adorava, como todos eles adoravam usá-lo e quebrá-lo como o lixo humano que era. Rangendo os dentes para não gritar, enterrou os dedos no cabelo e puxou com força. Mas as lágrimas que se acumularam nos seus olhos não eram de dor, por isso ele continuou a puxar até que fossem, até estarem a cair pelo seu rosto e ele estar reduzido a gemidos e arquejos e soluços.
Griffin atravessou a sua mente de repente, mais um prego para martelar as lágrimas dos olhos, mas mal olhou de relance para a porta fechada. O medo e culpa de o seu irmão ouvir o seu choro do outro lado daquela porta rapidamente se transformaram em indiferença cansada. Os seus patéticos soluços agora não seriam de certeza mais altos do que os seus gritos antes, ou mais angustiados do que todos os seus rogos para ele voltar, para falar, para ouvir, para o proteger de novo. Só cairiam em ouvidos moucos.
Forçou-se a levantar e a arrastar até à casa de banho, lutando contra o relance do seu reflexo no espelho pelo canto do olho, fazendo o que tinha para fazer e rapidamente voltando para o quarto. Só se apercebeu de quanto frio tinha quando olhou para o edredon atirado sobre uma cadeira, e pegou nele e embrulhou-o à sua volta antes de se atirar de cabeça de novo para a cama.
Voltou a acordar por causa de uma batida alta na porta (ou mais uma pancada) e uma voz familiar muito baixa e abafada que quase foi capaz de fazer Ash grunhir contra a almofada e reclamar no seu mau-feitio matinal habitual. Depois ponderou ignorá-lo, deixando que o som o embalasse de novo para uma amostra de descanso porque o seu corpo ainda não tinha recuperado, estava mais cansado do que antes, mas por todas as qualidades que Shorter pudesse ter, compensava-as por ser teimoso como o caralho. Por isso quando as batidas escalaram além do que era razoável e plausível, Ash levantou-se preparado para atirar a primeira coisa a que deitasse as mãos.
Felizmente para Shorter, essa coisa foi a sua almofada transpirada e babada, que o atingiu em cheio na cara. O cumprimento do adolescente foi por isso interrompido, óculos de sol a voarem e um ganido abafado pela almofada, e quando sacudiu a ligeira tontura e recuperou os óculos escuros estranhamente intactos, encarou Ash com uma expressão séria, tornada mais pesada por estar de facto a revelar os olhos.
- Estás com péssimo aspecto.
- Vai à merda, Shorter.
Tentou bater com a porta antes de virar as costas, mas sabia que Shorter a tinha agarrado e em vez disso estava a fechá-la sem fazer barulho. Ash tirou-se de volta para a cama num casulo de edredon.
- Dormiste assim? - perguntou Shorter, e parecia estar mais a pensar em voz alta do que a falar com Ash. - Ei, Ash. Diz qualquer coisa. Eu... desculpa por ontem. O Skip não fez nada de mal. Tinha saído só para ir buscar qualquer coisa para comer no quiosquezinho aqui ao lado e eu estava a passar. Eu sei que este é o teu espaço e que não devia estar aqui. Não culpes o puto.
- Não sou estúpido - respondeu Ash de debaixo do cobertor. Sabia que Skipper não tinha culpa; Ash tinha-se atrasado, muito além do que tinham combinado, ainda que não tivesse sido culpa sua. Isso não significava que estivesse feliz por Shorter saber deste sítio, deste lugar em específico, mas era só mais uma coisa que estava fora do seu controlo.
- Ash. Levanta-te, meu. Precisas de tomar um banho. Precisas de descansar devidamente. Como é que dormiste nesse estado?
O seu mau humor estava a desaparecer rapidamente, assim como a adrenalina, deixando-o cicatrizado e magoado e mais exausto do que antes. Quase ao ponto de o fazer ouvir Shorter, de deixar o outro rapaz guiá-lo com as palavras que Ash ignoraria se partissem da sua própria mente. Mas Shorter era teimoso, mas do que Ash. A sua persistência forçou Ash a sair do casulo, para fora da cama, para a casa de banho e com ordens para 'vestir um pijaminha' depois. A t-shirt que Shorter arranjou às pressas do armário de Ash não era nenhum pijama, mas não ia discutir sobre isso agora.
Sozinho e com a porta fechada firmemente por Shorter, Ash não tinha forma de evitar o espelho à sua frente agora, e a sua cara encarou-o do outro lado, inchada por falta de sono e com olheiras escuras e arroxeadas sob aqueles olhos brilhantes, fazendo-os sobressair de forma doentia. O cabelo estava um caos, o suor seco a incomodá-lo e a reacordar cada vestígio de sujidade no seu corpo e fazendo-o sentir que estava a arder.
Arrancou as roupas do corpo, atirou-as num monte no chão, só então vendo por fim as nódoas negras na pele através do reflexo, entrando no chuveiro e ligando a água quente até ela queimar tudo o resto.
Lentamente, como se a água a escaldar estivesse a bombear determinação nas suas veias, lavou e esfregou e até se tornar mais fácil respirar. Secou a pele e vestiu as roupas que Shorter lhe tinha atirado, e então voltou a olhar ao espelho. Ainda esfarrapado, ainda mal tratado e quebrado, mas a reunir os pedaços de novo.
Quando saiu, a cama estava feita com lençóis lavados e o seu edredon tinha sido substituído por uma manta mais fina, mas uma que não estava coberta de suor e com o fedor da noite. Shorter estava sentado numa cadeira , os óculos escuros no topo da cabeça e a espalmar parte da sua crista.
- Vês? Muito melhor.
Ash não respondeu. Shorter também não disse nada durante algum tempo, olhando para Ash de uma forma que não o deixou desconfortável, não exactamente, ainda que não fosse familiar, não era o tipo de desejo e lascívia que Ash sabia que devia esperar dos outros, não era nojento pelo menos. Não tocou em Ash, não se levantou, não fez perguntas que provavelmente queria. Ou talvez não quisesse; Shorter sabia coisas sem que Ash precisasse de elaborar mais do que algumas palavras. Tinha o visto no reformatório. As palavras que acabaram por sair foram:
- Vais ficar bem?
Ash respondeu sem pensar, um reflexo mais do que uma resposta honesta. Shorter assentiu.
- Precisas de alguma coisa?
- Trata das coisas por mim hoje.
- Claro.
- E diz ao Skip que peço desculpa.
- Vou dizer-lhe que queres falar com ele.
Shorter ficou lá durante mais algum tempo até perceber que Ash não se ia deitar até estar sozinho. Levantou-se a correr e desejou-lhe boa noite (às onze da manhã) e fechou a porta devagar. Ash não lhe agradeceu, apesar de saber que o devia ter feito, mas palavras como aquelas não podiam sair da boca de alguém como ele, de alguém tão desprezível como ele.
Mas gostava mesmo de conseguir. A sensação da cama era tão incrivelmente diferente agora que parecia quase cómico, surreal. Parecia abraçá-lo agora em vez de o magoar, o calor dos lençóis e da manta muito mais confortável do que o edredon pesado alguma vez poderia ser. Por isto, por pessoas como Shorter e Skipper, que por alguma razão absurda pareciam preocupar-se com ele, Ash quase desejava poder ser diferente. Que pudesse compreender isto e deixar esse sentimento dominá-lo da mesma forma que o ódio e o desespero o dominaram na noite anterior, que pudesse deixá-los ajudá-lo em vez de os afastar para que eles nem tentassem.
Um dia, talvez.
Por agora, ia ficar bem. Ficava sempre. Era só mais do mesmo.
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fim
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Obrigado por lerem, se acharem erros por favor digam.
disclaimer: don't own Banana Fish
