Ao discutir sobre alfabetização científica, Chassot

(2003) considera-a domínio de conhecimentos cien-

tíficos e tecnológicos necessários para o cidadão de-

senvolver-se na vida diária. Em trabalho anterior so-

bre o mesmo tema, Chassot (2000) apresenta a ciência

como uma produção cultural marcada principalmen-

te por uma visão ocidental caracterizada pela nossa

educação eurocêntrica. Nessa visão, pode-se consi-

derar que sua origem cultural remonta ao século XVI.

Em suas proposições, Francis Bacon (1561-1626) já

apontava o papel da ciência a serviço da humanida-

de. A partir do século XIX, tanto na Europa como nos

Estados Unidos, a ciência incorporou-se ao currículo

escolar (DeBoer, 2000). Também a partir daquele sé-

culo, eram encontradas na Inglaterra e nos Estados

Unidos publicações de livros e artigos sobre ciências

destinados ao público geral, bem como artigos que

destacavam a importância do estudo da ciência pelo

público (Hurd, 1998; Layton, Davey Jenkins, 1986;

Shamos, 1995). Layton, Davey e Jenkins (1986) ci-

tam obras científicas para o público datadas do sécu-

lo XVIII.No início do século XX, a alfabetização ou letra-

mento1

científico começou a ser debatido mais pro-

fundamente. Desses estudos iniciais, pode-se destacar

o trabalho de John Dewey (1859-1952), que defendia

nos Estados Unidos a importância da educação cientí-

fica. Esses estudos passaram a ser mais significativos

nos anos de 1950, em pleno período do movimento

cientificista, em que se atribuía uma supervalorização

ao domínio do conhecimento científico em relação às

demais áreas do conhecimento humano. A temática

tornou-se um grande slogan, surgindo um movimento

mundial em defesa da educação científica.

Na revisão de estudos sobre o significado do processo de

alfabetização científica e tecnológica, tomou-se como referência

artigos da literatura inglesa que empregam o termo literacy, que

pode ser traduzido para o português como alfabetização ou como

letramento (ou literacia, no português de Portugal). Mais adiante

será apresentada uma discussão em torno de significados que po-

dem ser atribuídos a esses dois vocábulos. Assim, neste artigo são

empregadas as duas denominações, usando o termo letramento

apenas quando o seu significado se referir ao uso social do conhe-

cimento científico, na acepção adotada por Soares (1998).

No Brasil, a preocupação com a educação cien-

tífica foi mais tardia. No século XIX, o currículo es-

colar era marcado predominantemente pela tradição

literária e clássica herdada dos jesuítas. Apesar do

incentivo de dom Pedro II (1825-1891), um cultor das

ciências, e de discursos positivistas de intelectuais

brasileiros em favor da ciência, como Rui Barbosa

(1849-1923), o ensino de ciências teve pouca priori-

dade no currículo escolar (Almeida Júnior, 1979). Esse

ensino passou efetivamente a ser incorporado ao cur-

rículo escolar nos anos de 1930, a partir de quando

começou um processo de busca de sua inovação

(Krasilchik, 1980). Esse processo de inovação teve

início com um processo de atualização curricular e

depois continuou com a produção de kits de experi-

mentos na década de 1950 e com a tradução de proje-

tos americanos e a criação de centros de ensino de

ciências na década de 1960, culminando com o início

da produção de materiais por educadores brasileiros

na década de 1970 (idem, ibidem). Foi também a par-

tir dos anos de 1970 que teve início efetivo a pesqui-

sa na área de educação em ciências no Brasil, a qual

se foi consolidando nos últimos 35 anos, de forma

que hoje se conta com uma comunidade científica

atuante em mais de 30 programas de pós-graduação

em ensino de ciências, com a realização regular de

congressos científicos específicos nessa área e com a

publicação de periódicos acadêmicos sobre a temáti-

ca, tendo sido produzidas cerca de 1.100 dissertações

de mestrado e teses de doutorado entre 1972 e 2003,

de acordo com pesquisa de Megid Neto, Fracalanza e

Fernandes (2005).

A preocupação crescente com a educação cien-

tífica vem sendo defendida não só por educadores

em ciências, mas por diferentes profissionais; seus

objetivos têm tido uma grande abrangência. Ocorre

que, tendo surgido essa temática em diferentes con-

textos, os autores estão longe de chegar a um con-

senso (Jenkins, 1990, 1997; Laugksch, 2000). Isso

pode ser explicado pelo fato de a educação científica

ser um conceito amplo que depende do contexto his-

tórico no qual ela é proposta (DeBoer, 2000;

Laugksch, 2000) e por depender de pressupostos ideológicos e filosóficos (Aikenhead, 1997; Champagne

Lovitts, 1989).

Nesse sentido, torna-se importante discutir os

diferentes significados e funções que se têm atribuí-

do à educação científica com o intuito de levantar re-

ferenciais para estudos na área de currículo, filosofia

e política educacional que visem analisar o papel da

educação científica na formação do cidadão. No pre-

sente artigo, é apresentada uma revisão de estudos

desenvolvidos no âmbito da educação em ciências,

visando contribuir para uma reflexão sobre as suas

diferentes funções. Essa revisão fornece elementos

para estudos críticos de processos avaliativos de ní-

vel de alfabetização da população brasileira e da qua-

lidade do ensino de ciências; de análise e proposição

de programas de reforma curricular; de estudos sobre

políticas públicas na área de formação de professores

de ciências e programas de melhoria da qualidade

desse ensino, como programas de livros didáticos. Isso

se torna essencial, no momento em que resultados de

exames nacionais apontam como grande desafio a

busca pela melhor qualidade da educação básica.

Educação científica:

enfoques e perspectivas de análise

Merton (1910-2003), em seus clássicos trabalhos

de sociologia da ciência, já considerava as condições

sociais de produção e apropriação do conhecimento.

Mesmo ao tratar a ciência do seu ponto de vista inter-

nalista, com relação às normas de seu funcionamento,

Merton (1968) destacava as pressões sociais sobre a

autonomia da ciência, sobretudo nos países de regimes

totalitários. Com diferentes perspectivas sobre as rela-

ções entre ciência, tecnologia e sociedade, os estudio-

sos da sociologia da ciência foram ampliando as pro-

posições analíticas sobre a base da organização e

interação dos praticantes da ciência. Kuhn (1922-1996)

destacou o papel da comunidade científica no estabe-

lecimento dos paradigmas científicos. Bourdieu (1930-

2002) afirmou que "a verdade científica reside numa

espécie particular de condições sociais de produção;

isto é, mais precisamente, num estado determinado da estrutura e do funcionamento do campo científico"

(Bourdieu, 1994, p. 122). Ampliando a análise desse

campo, outro grupo de sociólogos, como Latour e

Woolgar (1979) e Knorr-Cetina (1981), identificou as

condições sociais internas de produção do conhecimen-

to científico, demonstrando como o fato científico é

construído no contexto sociopolítico, no qual tomam

parte vários atores, incluindo cientistas e não-cientis-

tas, e reunindo argumentos técnicos e não-técnicos.

Fugindo do propósito de aqui fazer uma revisão

das várias correntes filosóficas que tratam da pers-

pectiva da ciência na sociedade, pode-se tomar a ca-

racterização de Gerard Radnitzky (1970) da ciência

como um sistema social essencialmente relacionado

ao desenvolvimento do conhecimento. Esse sistema,

ilustrado na Figura 1, é bastante útil para compreen-

der os diferentes significados que têm sido tomados

para a educação científica. No sistema apresentado,

incluem-se, entre outros componentes, os produtores

(cientistas), o processo de pesquisa, os produtos etc.

Para Radnitzky (1970), na análise desse sistema, pode-

se enfocar cada um de seus componentes com pers-

pectivas diferentes. O enfoque nos produtos, enquan-

to sistemas simbólicos, pode levar a uma análise de

aspectos lógicos, semânticos, teóricos e epistemoló-

gicos da ciência, enquanto o enfoque nos produtores

e usuários terá uma perspectiva centrada na ciência

em sociedade, com estudos de aspectos sociológicos,

psicológicos, historiográficos, culturais e políticos.

Certamente a análise de cada um desses componen-

tes apresentará significados e razões diversas para o

conhecimento científico.

Considerando, então, que a ciência engloba di-

ferentes atores sociais e que a compreensão desse cam-

po depende da análise das inter-relações entre esses

atores, pode-se considerar que a compreensão dos

propósitos da educação científica passa por uma aná-

lise dos diferentes fins que vêm sendo atribuídos a

ela pelos seus diversos atores.

Na área de pesquisa de ensino de ciências

(Gilbert, 1995), estudos sobre educação científica vêm

sendo desenvolvidos com a denominação scientific

literacy, estando também associados a estudos sobre