E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria
A manhã estava clara e o céu muito azul, sem nenhuma nuvem.
Ela aspirava o ar frio, uma sensação boa da brisa em sua pele.
"Tão bom ficar gelada e depois entrar dentro da casa quentinha."
A neve começava a derreter com os primeiros raios de sol. Do mirante ela via as montanhas ao redor brilharem, as águas faiscarem enquanto continuavam sua jornada milenar no fluxo do rio. A natureza a relaxava tanto porque se sentia acolhida.
"Quase posso ouvi-la cantar."
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Ouviu passos quebrando a relva congelada e soube quem era antes de ele arranjar-se ao seu lado. Ouviu-o respirar fundo, como ela fizera antes.
O calor do corpo dele era intenso e arrepiava sua pele. Abriu a boca para expirar, tentando diminuir a pressão no peito quando seu coração decidiu tentar quebrar seu esterno. Uma pequena nuvem se formou quando a respiração quente encontrou o ar frio.
"Será que esconde o meu rosto vermelho?" Ela se lembrava do fogo que os olhos dele atearam nela à noite passada. "Vou cobrar pelas horas de sono roubadas."
Ela o sentia imponente ao seu lado, uma brisa distribuindo o perfume almiscarado pelas cercanias. A pele morena parecendo sedosa e fazendo as pontas de seus dedos formigarem.
"Esse passou na fila da beleza umas vinte vezes." Ela relutava em virar-se completamente para ele, preferindo uma abordagem mais indireta. "Devia vir com uma plaquinha: alto risco de comprometimento psíquico."
Ela deixava de raciocinar quando ele estava perto. Tinha consciência disso e não se importava.
"Com ele, a minha anatomia fica doida ... Sou toda coração." Shunrei sabia exatamente quando fora capturada. No instante em que ele se virou para cumprimentá-la pela primeira vez. Na época, ela pensara querer apenas ajudá-lo no seu propósito. Com o passar dos anos, aprendera que querer ajudar alguém não provocava as reações misteriosas de seu corpo à simples audição da voz desse alguém.
"Será que ele tem noção do efeito que provoca?" Porque ele chegava e sua pele arrepiava. Ele falava e ela desejava o sussurro em seu ouvido. O simples toque em qualquer parte de seu corpo causava pequenas explosões em seu cérebro. "O esforço para continuar sã é imenso. Acho que vou pedir reparação por danos emocionais."
- Acordou cedo. - os olhos verdes também bastante interessados na paisagem do mirante. - Procurei você lá dentro. - era o tom de voz que ela associava a carinho. Emitiu um meio sorriso.
A mente dela estava sendo inundada de serotonina. O coração decidira agora atrapalhar sua conversação, se alojando na garganta. Suas pupilas dilatavam.
"Ainda bem que ele não segurou o meu pulso."
- Vim ver o nascer do Sol. - ela informou, calculando se era seguro virar-se para ele.
Não era.
"Reprimir um sentimento só o torna mais forte." Nos últimos meses, ela mal conseguia manter uma pose da serenidade quando ele se aproximava. E mesmo assim, não se permitia agir além do limite que se impusera. E ele estava muito próximo dela nesse bendito mirante. Engoliu em seco, contemplando os cabelos longos e pesados dançando suavemente com a brisa e as micro-expressões que ela se acostumara a distinguir no rosto dele.
Shiryu também se virou para ela, deixando metade de seu corpo exposto ao sol e metade na sombra. Ele sorriu, mas seu sorriso não chegou aos olhos. No leve franzir da testa, ela soube que ele estava preocupado ou contrariado.
Era algo natural para ela, enxergar o que ele não conseguia expressar.
"Virei PhD em Shiryu."
Seu desejo era abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem porque ela sempre estaria ao lado dele. Mas ela não faria isso. Ainda.
O Mestre Ancião estava sempre falando sobre o respeito que um devia ao outro. E ela levava isso muito a sério. O único deslize fora no jogo de xadrez.
Ela pedira para aprender e o Mestre colocara os dois para treinarem. Shiryu, por pena, não se empenhava e a deixava jogar errado, concedendo-lhe falsas vitórias. Isso a incomodara e ela reclamara com o Mestre. Parecia que ele não a levava a sério.
"Amizade. Confiança. Integridade." O Mestre o fizera repetir várias vezes. "Confio que ele é capaz de enfrentar qualquer destino como o homem que se tornara."
- Recebi uma carta da Fundação Graad. - ele tentou soar casual, sem nenhum sucesso. O corpo dela entrou em alerta, saindo do embotamento sonhador da serotonina. - Precisarei retornar após o inverno. Haverá um torneio.
Sentiu as lágrimas tentando romper uma barreira da máscara de neutralidade. Ela conseguira trancar o receio pela partida dele durante muito tempo. "Parece que ele conseguiu liberdade condicional."
Assentiu lentamente, notando que as mãos dele tremiam. Ele as apertara em punho tarde demais. Instintivamente, deu um passo para longe. Racionalmente, dois passos para perto. Emocionalmente, manteve o contato visual, todo o seu Ser imbuído da tarefa de confortá-lo.
"Devia ter me preparado, não fingido desconhecimento." Seu coração parara de bater por medo que as rachaduras o partissem de vez.
- Então vamos tornar esse inverno inesquecível. - ela murmurou, forçando seus músculos a sorrir.
- Ele será. - a voz dele estava embargada e isso a preocupou. Shunrei estava acostumada às micro variações de tom de voz e de expressões.
"Dói em mim também. A sensação de finitude deve ser a mesma da morte." Porque ela sentia que desfaleceria. Bateu o pé no chão com força, sentindo a mandíbula rilhar. Era a alma dela que doía.
- Shiryu, - falou querendo conjurar o Cavaleiro. Virou a palma da mão iluminada pelos raios novos de Sol para ele. - Se você olhar o céu, verá o mesmo sol e as mesmas estrelas que eu.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo amor
Ele sorriu para ela.
- Nem todos os dias há alegria, mas em todos os momentos pode haver beleza, se nos esforçarmos. - ele sinalizou que compreendia.
A mente dela girava sem parar, em busca de algo que ela não sabia o que era. Os olhos azuis dardejavam para todos os cantos até que viu, à salva do calor matinal.
"Vamos começar os trabalhos de inscrição de momentos, na alma ou no caderninho de falhas incomensuráveis."
Rapidamente, pegou um montinho de neve, fez uma bola, e acertou o peito dele. A expressão de Shiryu abriu de espanto. Ela aproveitou para jogar uma no ombro.
- Perdeu o juízo, Shunrei?
- Completamente! - outra se chocou com a cara confusa dele. Ela riu alto. - E você vai fazer o que a respeito? - suas entranhas reviraram quando um sorriso malicioso apareceu. Sentiu suas pernas recebendo muito oxigênio. Atirou uma bolinha, que errou por já estar se virando para correr. - Não se atreva!
"As mãos dele são maiores. E ele treina pontaria à longa distância."
Shunrei sentia as bolas molhadas em suas costas, os dois correndo para dentro de casa. Correram em volta do sofá onde o Mestre Ancião já estava.
- Vocês vão me deixar tonto. - Shunrei gritava e Shiryu tentava pegá-la com uma enorme quantidade de neve. Os dois rindo. - Crianças! - os olhos do Mestre estavam semicerrados, mas ele tinha um esboço de sorriso nos lábios.
Os dois sentaram, ofegantes. Os olhos brilhavam.
Os narizes, as mãos, as peles estavam geladas como aquela manhã.
Os corações estavam quentes como a noite passada.
FIM
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Inspiração total de Monte Castelo, da Legião Urbana. ;-)
Um dos sonetos mais conhecidos de Luís de Camões, publicado em 1598, ajudando a embalar os corações no século 21.
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