Retorno
I
Shaina
Reuniões e mais reuniões... O dia seguia enfadonho como todas as vezes que as amazonas eram convidadas ao único templo de toda Grécia que continha uma deusa em carne e osso. Nada poderia seguir o fluxo natural quando envolvia uma viagem próxima a cidade de Atenas, a desconfiança de um ataque iminente deixava o clima tenso e cada passo era decidido cautelosamente. Considerando o número das comitivas convidadas dessa vez... Tsc. Shaina preferiria mil vezes lutar em um campo aberto a aguentar a polêmica anual dessa convocação.
Era por isso que ela nunca foi considerada para o cargo de líder, jamais teria a ponderação que Marin exibia a cada discussão. As duas amazonas tinham talentos distintos e, sem dúvida, o de Shaina não era ali sendo a intermediária de uma líder destemida e as fracotes novatas. Independente do título que lhe dessem, jamais teria paciência de ficar observando um mapa para evitar problemas. Se aparecesse alguma ameaça, ela simplesmente a resolveria com uma boa luta.
Os últimos dois anos se resumiram a treinar os mais jovens e isso trazia uma satisfação muito diferente da luta contra um inimigo forte. Era estranho, mas enquanto lutava, enquanto perseguia um desafio, não tinha tempo para pensar nas pessoas que perderam durante a guerra. Não queria pensar em nenhuma delas hoje, contudo, as lembranças lúgubres tendiam a tomar conta toda vez que reencontrava os Cavaleiros de Ouro.
Observou Sisifos, o Cavaleiro de Sagitário contava às amazonas presentes sobre a quantidade de guerreiros que viriam, mas a única coisa que Shaina conseguia pensar era se ele conseguiria dissipar seu saudosismo. Com um bom treino após aquela discussão, é claro.
A última vez que trocaram socos foram repreendidos pela própria Atena, mas aquilo não foi uma disputa amigável. Muito pelo contrário. Lembrava-se da expressão surpresa do cavaleiro quando o primeiro soco o atingiu. Ela não tinha nada a ver com o que Marin decidiria sobre o futuro de Régulus, mas não se conteve quando ouviu aquela proposta cretina. Nunca pensou que ele seria como Aiolos, mais preocupado com as promessas de sua família do que com o bem-estar do próprio irmão. Sisifos quem teve aquela ideia idiota. Privar Aiolia de saber da existência do filho, pois isso o deixaria confuso sobre seu papel na proteção do Norte... Há... Que decepção. Consideravam as amazonas frias, mas não foi Marin a responsável por essa ideia. Nunca entendeu como ela aceitou isso, se queria manter a distância emocional daquela situação, tudo bem, era o que uma amazona deveria fazer. Mas isso incluía divulgar para o mundo o resultado de um filho do Ritual de Solstício. Especialmente se ele era descendente de uma linhagem dourada tão especial.
Sorriu ocultamente atrás da máscara. Marin poderia ter ouvido em silêncio a proposta de Sisifos, mas ocultou sua rebeldia na escolha do nome. Qualquer um que lutou lado a lado com o casal, faria aquela conexão ao ouvir o nome da criança. "Régulus" era uma das estrelas da constelação de Leão. Sábia e discreta rebeldia, totalmente coerente com o espírito estratégico da ruiva. Shaina jamais pensaria algo assim na época, era uma tola impulsiva. Ora, hoje também não pensaria assim.
Filho ou não de amazonas, todos os bebês abandonados no Templo de Artêmis eram criados com a mesma dedicação e tinham a oportunidade de virarem guerreiros. Shaina tinha um apego especial pelas crianças que cresciam entre elas, contudo sentia-se extremamente protetora do filho de Marin. Saber que em breve ele iria embora para ser treinado por Sisifos só a fazia querer mais um novo conflito com o Cavaleiro de Sagitário.
Como se adivinhasse seus pensamentos, o dourado a encarou desconfortável. A princípio achava que ele havia notado seu olhar ferino, entretanto o silêncio repentino de Marin a fez concluir que na verdade ambos sentiam algo de diferente no lugar. E sim, era uma energia calorosa e constante como só o cosmo de um cavaleiro dourado vibrava. E não era qualquer um, era um que há muitos anos não sentia.
Ela suprimiu o som de susto quando o Cavaleiro de Leão entrou na tenda. Os fios claros estavam mais curtos e uma barba fina emoldurava seu rosto, mas seu olhar esmeralda continuava o mesmo. Os traços assustadoramente similares ao de Sisifos. E ao de Régulus.
O guerreiro de Sagitário se levantou para abraçar o irmão e Shaina percebeu que as garotas de prata ficaram inquietas com a interrupção da reunião, cochichando algo inaudível. A amazona de cabelos claros ignorou que elas esperavam uma explicação e cravou o olhar em Marin.
Isso era terrível, reencontrá-lo dessa maneira, na frente de todos. Ou melhor, reencontrá-lo através da criança que era a prova do que viveram. Tsc, os deuses não cansavam de brincar com a vida deles?
- Bem, acho que vocês já o conhecem, não é? - ouviu Régulus murmurar para a mãe.
A ruiva respondeu um sim quase inaudível e se ajoelhou determinada a examinar os ferimentos do menino. Régulus estava sujo e ferido, o curativo antigo estava arruinado, dar atenção para isso serviria agora para ignorar o que estava acontecendo ali, mas por quanto tempo a amiga manteria essa pose serena? Podia ver o leve tremor em suas mãos ao tocar o filho e sentiu vontade de sequestrá-la para que tivesse seu tempo de processar tudo isso:
- Rolou ladeira abaixo, menino? - Shaina debochou dando um passo em direção aos dois – Como você consegue se machucar tanto toda vez que sai para buscar água?
- Tinha uns ladrões no caminho e -
- Ele foi muito corajoso, resolveu defender um casal de idosos sozinho. – A voz de Aiolia interrompeu sua justificativa, Silsifos finalmente o largara e ele diminuiu a distância do trio.
- Corajoso e inconsequente como sempre. – Shaina murmurou fingindo mau-humor e provocando um sorriso maroto na criança.
Voltou-se para Aiolia e lhe deu um abraço breve. Não tinham tanta intimidade, mas era o mínimo a fazer ao reencontrar alguém que lutou ao seu lado por tantos anos. Mentira, sua motivação fora apenas ganhar tempo para Marin entender que sim, isso estava acontecendo e ela teria que se levantar e falar diretamente com ele:
- Olá, Leão, não sei se você lembra de mim, disseram que alguém rachou a sua cabeça, mas meu nome é...
- Shaina - ele sorriu divertido – difícil esquecer esse seu gênio, Amazona de Ofíuco.
- É verdade – Marin murmurou, pôde ouvi-la respirar fundo antes de se levantar e dar um passo à frente de encontro ao loiro. Se Marin continuava a representatividade da frieza na Terra, Aiolia era o oposto, seu olhar brilhava ao fitar a ruiva. Todos que o visitaram lhe contaram que o Cavaleiro de Leão ainda tinha dificuldades para entender sua memória, mas não era isso que ela via ali. Sua expressão ao fitar a amiga era similar ao que vira tantas vezes antes. Ele ainda a amava depois dos tortuosos anos longe?
Marin ajeitou os ombros e inclinou o queixo ganhando imponência para fazer o que Sisifos não se lembrou:
- Amazonas, esse é o Cavaleiro de Leão, Aiolia. - ela aguardou o loiro cumprimentar, com um sorriso, as pupilas de prata e então tocou sua mão. Disse em um tom mais fraco que o usual – É bom te rever, Aiolia. Sua comitiva está aí?
Ele sorriu e contou brevemente o que aconteceu pelo caminho. Em nenhum momento largou os dedos de Marin e foi uma surpresa a amazona não esquivar daquele toque. Shaina instintivamente apertou o ombro de Régulus, a criança que não fazia ideia do que presenciava. Sentiu o coração aquecer ao vê-lo tão atento ao que o dourado falava. Se ajoelhou ao seu lado e observou o curativo manchado. O sangramento pareceu cessar, mas precisava ser trocado logo para não infeccionar. A conversa agora se resumia às instruções de Sisifos sobre qual caminho a comitiva do Norte poderia seguir. Sua presença e a de suas discípulas não era mais necessária ali, então a Amazona de Ofíuco aproveitou e sussurrou para a criança:
- Vamos lá achar a Shunrei para consertar essa bagunça que você fez?
- Mas minha mãe não vai ficar brava? - ele murmurou desconfiado bem no momento de completo silêncio na tenda.
Marin percebeu sua proposta e se apressou em falar suavemente:
- Pode deixar Shaina, eu refaço. Acho que vocês não vão precisar da nossa ajuda agora, certo? Podemos continuar a reunião depois?
Sisifos hesitou em dar a resposta e Shaina desconfiou que somente naquele momento ele processou a fragilidade daquele reencontro. Ora, Cavaleiro, você não entendeu ainda que deveríamos deixar os dois a sós. Agora?! Tsc, duvidava que ele captou seu olhar agressivo quando a fitou, contudo foi Aiolia quem tomou a iniciativa para responder:
- Ahm, acho que antes de irmos, eu posso ajudar o garoto... – ele se virou para a ruiva com um sorriso misterioso – O que acha, Marin?
- Você diz... usar seu cosmo?
O loiro assentiu com a cabeça e observou Régulus com tamanha intensidade que Shaina não duvidou que ele já sabia do parentesco:
- É uma ótima ideia - Sisifos atestou e se direcionou para a saída da tenda – vou arrumar os homens e te espero lá fora, Aiolia.
Shaina aproveitou a iniciativa e se despediu. Acenou para as amazonas a acompanharem deixando o trio sozinho. Saiu com o coração apertado imaginando tudo que a amiga estava passando. Enquanto as meninas se ajeitavam para levar a água que Régulus trouxe, a amazona seguiu seu caminho e quase trombou com Sisifos. Não se sensibilizou sua expressão preocupada e muito menos esperou qualquer palavra sair de seus lábios. Se não poderia lutar com ele agora, ao menos suas falas o atingiriam:
- Vocês fizeram tanta questão de proteger Aiolia sobre a existência dessa criança e olha aí, os deuses estão pouco se importando para o que você ou sua família acha melhor. - Sussurrou, ferina. - Não duvido que o próprio Apolo esteja se divertindo com esse encontro.
- Acho que já brigamos o suficiente sobre isso. O que é melhor ou pior não interessa mais, só espero que … - parou como se percebesse que estava se abrindo mais do que devia para ela.
Shaina riu:
- Você não quer que Aiolia te condene por isso, não é? Bem, pois eu espero e torço para que ele o faça – estreitou os olhos verdes para enfatizar sua raiva e se afastou.
