CAPÍTULO UM

1990.

O elevador estava cheio. Ginny Weasley tentava equilibrar os três copos na caixa sem derrubar café no chão. Talvez se aprendesse bem a técnica, ela pensou, poderia se juntar a um circo e se apresentar no palco. As tampas dos copos de isopor não estavam presas direito — como sempre. O homem que trabalhava no balcão da pequena farmácia não olhava duas vezes para mulheres como Ginny. Quem se importaria se o café caísse sobre uma mulher magra e desinteressante num terninho cinza fora de moda?
Ele provavelmente a considerava uma mulher de negócios — alguma radical que odiava homens, com uma lista de títulos após o nome, e uma carreira ao invés de marido e filhos.

Não ficaria chocado se a visse à vontade na fazenda do avô, de jeans cortado e regata, descalça, sua massa vermelha de cabelos ruivos alcançando a cintura? O terninho era mera camuflagem. Ginny era uma garota do campo, o único amparo do avô aposentado e dos dois irmãos mais novos. A mãe morrera quando tinha 16 anos, e o pai só aparecia para uma visita quando precisava de dinheiro. Ele tinha se mudado para Londres alguns anos atrás e ninguém tivera notícias dele desde então. Ginny não se importaria se nunca mais ouvisse falar do pai outra vez. Ela tinha um bom emprego. Na verdade, a recente transferência da firma de advocacia para Devon funcionava a seu favor. O escritório, agora no complexo industrial nos arredores de Devon, ficava a uma curta viagem da fazenda do avô, onde todos eles moravam. Era como estar em casa, já que sua família vivia em na'Toca há mais de cem anos.

Não tinha o que reclamar do trabalho, mas gostaria que os patrões lembrassem de comprar uma máquina de café nova o quanto antes. Aquela rotina de descer várias vezes até a cafeteria da farmácia estava começando a ficar cansativa. Havia na firma outras duas secretárias, uma recepcionista e duas assistentes, mas já trabalhavam lá há mais tempo. Ginny tinha de fazer o trabalho pesado. Fez uma careta enquanto rumava para o elevador, esperando não se deparar com seu merecido castigo a caminho do sexto andar.

Seus olhos castanhos esquadrinharam a área rapidamente. Ginny relaxou assim que percebeu que o homem alto não aguardava perto dos elevadores. Como se já não bastasse o olhar gélido, ou o aparente ódio pelas mulheres em geral e por ela em particular, o homem ainda fumava aqueles desagradáveis charutos pretos e finos. Num elevador, isso era um verdadeiro inferno. Desejava que alguém o lembrasse da existência de um decreto municipal proibindo o fumo em lugares públicos. Ela mesma falaria se não estivesse sempre cercada por uma multidão. Apesar da firmeza de espírito, Ginny ficava tímida em público. Mas um dia seria apenas ela e aquele homem, e então Ginny diria o que pensava daqueles charutos fedorentos.

A mente vagava enquanto ela esperava que o lento elevador descesse. Tinha problemas piores que o homem do charuto, lembrou-se. O avô ainda se recuperava do ataque cardíaco que há dois meses interrompera de maneira abrupta suas atividades como fazendeiro. Agora Ginny sentia o quanto seu fardo estava maior. A menos que aprendesse a guiar o trator e a plantar, e ainda continuasse trabalhando como secretária seis dias na semana, a fazenda do avô estaria totalmente perdida.

O irmão mais velho, Rony, estava no último ano do colégio, vivia arranjando problemas, e não ajudava em nada em casa. Percy estava na quinta série e tinha notas baixas em matemática. Estava sempre disposto a ajudar, mas era pequeno demais para fazer qualquer coisa. A própria Ginny tinha 24 e jamais tivera qualquer vida social. Mal havia terminado a escola quando a mãe morreu e o pai partiu para paragens desconhecidas.

Ginny deixou que seus pensamentos vagassem por um momento, imaginando como sua vida poderia ter sido. Haveria festas, roupas bonitas e rapazes que a convidassem para sair. Sorriu ao pensar que não existiriam pessoas que dependessem dela.

— Com licença — uma mulher com uma pasta de couro murmurou, quase derrubando o café em Ginny.

Ela acordou de seu devaneio a tempo de entrar no elevador, já cheio por ter vindo da garagem. Conseguiu se apertar entre uma mulher excessivamente perfumada e dois homens que discutiam, bem alto, os benefícios de dois computadores de marcas rivais. Foi um verdadeiro alívio quando eles, e quase todos os outros, inclusive a mulher perfumada saíram nos terceiro e quarto andares.

— Oh, Deus, odeio computadores — Ginny disse suspirando, enquanto o elevador seguia lentamente para o sexto andar.

— Eu também — uma voz áspera e entediada soou atrás dela.

Ginny quase derramou o café ao virar-se para olhar quem tinha falado. Pensava estar sozinha no elevador. A grande pergunta era como não percebera aquele homem. Ela estava apenas ligeiramente acima da estatura média, mas ele devia ter pelo menos 1,88m. Porém não era só a altura — era a constituição daquele homem. Ele era musculoso, com um físico que orgulharia qualquer atleta profissional. Tinha bonitas mãos morenas, pés grandes e, quando não estava fedendo a charuto, usava a colônia mais sexy que Ginny já cheirara. Mas sua beleza masculina terminava por aí. Não lembrava de ter visto um homem de aparência tão rude.

O rosto era todo impetuosidade, cheio de ângulos pronunciados. Tinha espessas sobrancelhas pretas e olhos fundos, estreitos e verdes, peculiarmente penetrantes. O nariz era reto e elegante. Possuía o queixo fendido — não em demasia, mas notável. O rosto era um tanto comprido e magro, com os malares salientes. A boca era larga e bem feita, mas Ginny jamais o vira sorrir. Ele estava na faixa dos trinta, possuía algumas rugas no rosto, mas tinha uma frieza de modos que a deixavam com calafrios. A melhor qualidade dele era a voz. Profunda, clara e muito Gregórioora, ela se projetava facilmente — o tipo de voz que podia acariciar ou ferir, dependendo do humor.

Ele estava bem-vestido, num caríssimo terno risca-de-giz cinza, com camisa de algodão branco e gravata de seda por baixo. Tinha pensado tê-lo evitado, pelo menos uma vez. Talvez este fosse seu carma.

— Oh, é você de novo — ela disse com resignação. Fechou direito as tampas soltas dos copos de café. — Por acaso você é dono do elevador? Toda vez que eu entro, você está aqui, fazendo cara zangada e resmungando. Você nunca sorri?

— Quando eu encontrar algo que me faça sorrir, você será a primeira a saber — ele respondeu, inclinando a cabeça para acender um charuto. Ele tinha o cabelo mais escuro, liso e bagunçado que Ginny já vira. Parecia ser italiano, exceto pelos malares salientes e pelo formato do rosto.

— Detesto fumaça de charuto — ela disse, para quebrar o silêncio.

— Então pare de respirar até a porta abrir — ele respondeu sem se incomodar.

— Você é o homem mais grosso que já conheci! — ela exclamou, virando-se furiosa para ver os andares aparecendo no painel do elevador.

— Você não me conhece — ele apontou.

— Que sorte a minha!

Ginny ouviu um som abafado às costas.

— Você trabalha neste prédio?

— Não preciso trabalhar. — Ela olhou por cima do ombro com um sorriso malicioso. — Sou amante de um dos advogados da Malfoy & Lestrange Co.

Os olhos do homem foram descendo pelo corpo esguio, coberto por um terninho bem convencional, até visualizarem os sapatos de salto baixo, então voltaram para o rosto dela, que não tinha qualquer sinal de maquiagem. Os bonitos olhos castanhos combinavam com os cabelos ruivos. Possuía as maçãs do rosto pronunciadas, uma boca carnuda e um nariz reto, mas o rosto era um tanto modesto. Poderia parecer mais atraente caso se esforçasse.

— Ele deve ter problemas de visão — comentou enfim.

Os olhos de Ginny faiscaram enquanto ela segurava com pulso firme a caixa com os copos e controlava o próprio gênio. Seria uma alegria ensopá-lo com café quente, mesmo que ela tivesse provocado o comentário. Mas tal gesto só lhe traria consequências desagradáveis. Precisava do emprego, e ele talvez conhecesse seus patrões.

— Ele não é cego — ela replicou em tom altivo, virando-se um pouco na direção dele. — Compenso minha falta de atrativos com uma técnica de sedução fantástica. Primeiro, espalho mel sobre ele — ela sussurrou em tom conspirador, aproximando-se dele — e então trago formigas especialmente treinadas...

O homem levou o charuto à boca, deu um trago e soprou uma grossa nuvem de fumaça.

— Espero que tire as roupas dele antes. Não é fácil tirar mel de tecido. Este é o meu andar.

Ginny deu um passo atrás para que ele saísse, encarando-o zangada. Não era o primeiro encontro deles. Ele fazia comentários desagradáveis e caçoava dela desde o primeiro dia em que Ginny pisara naquele prédio. Já estava cansada dele — fosse quem fosse.

— Tenha um bom dia — ela falou em tom meloso, arrastando as palavras.

Ele nem se virou.

— Teria, se você não tivesse aparecido.

— Por que não pega esse charuto e enfia no...?!

Depois de as portas cortarem a última palavra, o elevador a levou contra a vontade ao décimo quarto andar, onde um homem e uma mulher esperavam para descer.
Ginny suspirou ao ver o número no painel. Aquele homem estava arruinando sua vida. Por que ele tinha que trabalhar naquele prédio, com tantos outros em Devon?
O elevador desceu e, desta vez, abriu a porta no sexto andar. Ainda furiosa, Ginny foi para o pródigo escritório dos patrões, vendo Lilá e Parvati, as outras duas secretárias, concentradas no trabalho, cada uma em lados opostos do escritório. Ginny tinha um cubículo ao lado da sala de Neville Longbottom. Ele era sócio júnior e seu principal chefe.

Sem bater, entrou na grande sala e encontrou Neville e dois outros sócios juniores, Simas e Roger, esperando impacientes pelo café. Neville falava irritado ao telefone.

— Obrigado, Ginny. Coloque isso em qualquer lugar — ele disse bruscamente, a mão tapando o fone. Olhou os colegas de relance. — Potter acabou de chegar. Isso que é ligar na hora certa, não?

Ginny entregou calmamente os copos de café a cada um e recebeu uns murmúrios de agradecimento por parte de Simas e Roger. Neville recomeçou a falar ao telefone.

— Ouça, Potter, tudo o que quero é uma reunião. Tenho algumas evidências novas que quero que veja. — O chefe bateu o punho sobre a mesa e seu rosto moreno ficou vermelho. — Droga, homem, precisa ser tão inflexível? — Suspirou irritado. — Certo, certo. Estarei aí em cinco minutos. — Bateu com o telefone no gancho. — Meu Deus, estou rezando para que ele não concorra à reeleição. Só estou lidando com ele há duas semanas e já estou cortando um dobrado! Antes fosse o Marcos Flint!

Marcos Flint era o promotor de justiça da vara distrital de Devon. Ginny sabia que ele era um homem agradável. Mas ali em Ottery St. Catchpole o promotor era Harry Potter. Talvez, ela pensou de maneira otimista, seu patrão só tivesse começado com pé esquerdo com Potter. Talvez ele se mostrasse tão agradável quanto Marcos Flint quando o conhecessem melhor. Pensava em apontar isso ao sr. Longbottom quando Simas principiou a falar.

— Quem pode culpá-lo? O homem já recebeu mais ameaças de morte no último mês do que qualquer presidente por causa dessa guerra às drogas. Ele é durão, não vai recuar. Já tive uns casos por aqui antes, conheço a reputação de Potter. Não pode ser comprado. É a lei e a ordem dos pés à cabeça.

Neville recostou-se na cara cadeira de couro.

— Tenho calafrios só de lembrar como Potter interrogou uma das minhas testemunhas no tribunal certa vez. Precisou ser tranquilizada depois do testemunho.

— Esse sr. Potter é assim tão ruim? — Ginny perguntou por curiosidade.

— Sim — Longbottom respondeu. — Nunca o viu, não é? Ele está trabalhando aqui neste prédio, temporariamente, enquanto seu gabinete é remodelado. Faz parte da reforma do tribunal, a que foi aprovada pela comissão do condado. É muito mais conveniente para nós subir um andar do que ir ao tribunal. Potter está odiando, claro.

— Potter odeia quase tudo, inclusive as pessoas — Roger exibiu um largo sorriso. — Dizem que esse gênio ruim é hereditário. Ele é parte índio — cherokee, para ser exato. A mãe veio viver com a família Potter quando o pai dele morreu. Ela morreu logo depois, então Potter ficou sob a tutela do tio, que era chefe de uma das famílias fundadoras de Devon. Fez Potter ser aceito pela sociedade local, literalmente. Era juiz federal — acrescentou sorrindo. — Aposto que foi como Potter descobriu seu amor pela lei. Afinal, ninguém comprava o tio.

— De qualquer forma, pretendo subir e oferecer minha alma em favor de nosso duvidoso cliente — Neville Longbottom disse. — Simas, importa-se de pegar a petição do caso Carrow? E Roger, Ernesto está no gabinete do secretário trabalhando naquele processo que você está preparando.

— Certo. Estou indo trabalhar — Simas disse com um sorriso. — Poderia mandar Ginny subir para lidar com Potter. Talvez ela consiga abrandá-lo.

Longbottom riu gentilmente.

— Ele a comeria viva no café-da-manhã — respondeu. Então se virou para Ginny. — Se importaria de ajudar Lilá enquanto estou fora? Precisamos organizar alguns arquivos.

— Certo — ela disse, sorrindo. — Boa sorte.

Ele assobiou, sorrindo em resposta.

— Vou precisar.

Ginny o observou ir embora com um suspiro melancólico. Ele era uma boa pessoa, mesmo que tivesse o humor de uma barracuda.

Lilá mostrou-lhe o que precisava ser arquivado com um sorriso indulgente. A mulher miúda e magra estava na firma há vinte anos, sabia de todos os segredos. Ginny às vezes imaginava que era por isso que Lilá tinha estabilidade no emprego, já que tinha língua afiada — sabia ser severa tanto com os clientes quanto com as secretárias mais novas. Felizmente, ela e Ginny se entendiam muito bem — até almoçavam juntas de tempos em tempos. Lilá era a única pessoa com quem ela podia conversar, exceto o avô.

Parvati, a loira elegante do outro lado do escritório, era a secretária do sr. Roger e do sr. Simas. Ela apreciava ser a única a fazer hora-extra para o sr. Roger — ele não era casado, nem tinha perspectiva de casar tão cedo — e estava sempre muito arrumada. Ana Abbott era uma das assistentes — uma jovem loira recém-casada com sorriso amigável. Susana Bones, uma negra, estudante de direito, era a outra assistente. A recepcionista era Cátia Bell, uma morena animada que era solteira e não tinha pressa de mudar de estado civil. Ginny se dava bem com todos no escritório, mas Lilá ainda era sua favorita.

— Aliás, vão comprar uma nova máquina de café — Lilá comentou enquanto Ginny cuidava dos arquivos. — Acho que sairei para comprá-la amanhã.

— Posso ir, se quiser — Ginny se ofereceu.

— Não, querida, eu compro — Lilá disse com um sorriso. — Quero aproveitar para escolher um presente para minha cunhada. Ela está grávida.

Ginny sorriu, mas com desânimo. A vida estava passando e ela nunca tivera nem um encontro, exceto ir ao baile do Clube dos Veteranos de Guerra com o neto de um amigo do avô, o que fora um verdadeiro fiasco. O garoto fumava maconha e gostava de farrear, e ainda por cima não entendia por que Ginny não gostava dessas coisas.

Comentavam no escritório que Ginny era uma menina antiquada. Numa sociedade tão restrita, era raro encontrar um solteiro adequado, e os poucos que restavam não estavam interessados em se casar tão cedo. Com a mudança do escritório para Devon, Ginny teve esperanças de ter um pouco mais de vida social. Para uma área suburbana, o lugar tinha a atmosfera de uma cidade pequena. Mas mesmo que encontrasse com quem sair, como poderia pensar numa relação séria? Não podia deixar o avô sozinho. E quem cuidaria de Rony e Percy? Devaneios,pensou com tristeza. Estava se sacrificando para cuidar da família, não havia outra saída. O mais difícil de aceitar era a atitude do pai — ele sabia o quanto ela estava sobrecarregada, mas não parecia se importar nem um pouco. Desaparecera há dois anos e nem ligara ou escrevera para saber como estavam as crianças.

— Esqueceu dois arquivos, Ginny — Lilá disse, interrompendo seus pensamentos. — Não seja descuidada, querida — acrescentou com um sorriso carinhoso.

— Certo, Lilá — Ginny murmurou, concentrando a mente no trabalho.

Já estava tarde quando chegou em casa naquele dia, dirigindo seu Thunderbird branco. Era um dos modelos mais antigos, com bancos individuais e chassi pequeno com capota. Tinha assentos de veludo vinho e janelas elétricas. Apesar das prestações, era a coisa mais elegante que ela já dirigira. Ela o amava.

Ginny teve de ir ao centro da cidade para pegar alguns arquivos com um dos advogados que deixara a firma antes da mudança. Ela odiava o centro de Devon, estava feliz de não trabalhar mais ali, mas hoje a cidade parecia mais agitada que o normal. Encontrou uma vaga num estacionamento, pegou os arquivos, e apressou-se em tomar o caminho de volta — bem a tempo da hora do rush. O trânsito depois da saída da Tenth Street estava horrível, e ficou ainda pior depois do Omni. Começou a melhorar nos arredores do Grady Hospital e, depois de passar pelo estádio e pela saída para o Hartsfield International Airport, Ginny conseguiu relaxar novamente.

Após vinte minutos seguindo a estrada, estava em Ottery St. Catchpole e, cinco minutos mais tarde, contornava a praça de Devon, a um curto trajeto do impressionante complexo comercial onde se localizava o novo escritório de seus patrões.

Devon parecia ter mudado muito pouco desde a Guerra Civil. A tradicional estátua do soldado confederado guardava a praça da cidade com seu mosquete, cercada por bancos onde idosos podiam se sentar nas tardes ensolaradas de sábado para passar o tempo. Havia uma farmácia, um armazém, uma mercearia e um cinema recém-reformado.

A cidade ainda possuía seu antigo e magnífico tribunal de tijolos vermelhos com um imenso relógio. Era ali que o Tribunal Superior e o Tribunal Estadual se reuniam para suas sessões. Era ali também que ficava o gabinete do promotor de justiça, que diziam estar sendo reformado. Ginny estava curiosa quanto ao sr. Potter. Conhecia a família Potter, lógico — todos conheciam. O primeiro Potter fizera fortuna com transporte de mercadorias em Savannah antes de vir para Devon. Ao longo dos anos, a riqueza diminuíra, mas Potter dirigia um Mercedes-Benz e vivia numa mansão. Seria impossível manter isso com o salário de promotor de justiça. Curiosamente, diziam que ele tinha optado por esse cargo quando, tendo em mãos um diploma em Direito pela Universidade da Geórgia, poderia ter seguido carreira e feito milhões.

Harry Potter fora indicado pelo governador para completar o tempo de mandato do promotor de justiça anterior, que morreu em exercício. Um ano depois, ao fim de seu mandato, Potter surpreendeu a todos ao vencer a eleição. Não era comum em Ottery St. Catchpole que pessoas nomeadas conquistassem apoio eleitoral. Mesmo assim, Ginny nunca se mostrou muito interessada no promotor. Suas obrigações não exigiam que soubesse do que acontecia no tribunal, tampouco assistia ao noticiário em casa porque sempre estava muito ocupada. Por isso, Potter era apenas um nome para ela.

Sua mente vagava enquanto ela olhava a área residencial através do para-brisa. Havia várias casas imponentes na rua principal da cidade, rodeadas por carvalhos, pinheiros e cornisos, que na primavera exibem suas flores brancas e rosadas com rico esplendor. Nas estradas secundárias ainda existiam várias fazendas, cujos celeiros e casas decadentes eram testemunhas silenciosas da teimosia orgulhosa dos georgianos que as mantinham há gerações, ao custo de muitos sacrifícios.

Uma dessas antigas fazendas pertencia a Arthur Weasley, o terceiro a herdá-la numa genealogia que datava da Guerra Civil. Os Weasley sempre conseguiram encontrar meios de manter sua propriedade de cem acres, mas a fazenda estava em ruínas atualmente, com uma casa revestida de tábuas brancas que carecia de tudo. Possuíam tevê, mas nada de canais a cabo porque era muito caro. Tinham um telefone, mas era uma linha compartilhada com mais três vizinhos que nunca desocupavam o aparelho. Contavam com serviço de água e esgoto, uma sorte pela qual Ginny sempre agradecia, mas o encanamento costumava congelar no inverno e parecia nunca haver óleo suficiente para aquecer a casa até terem dinheiro para comprar mais.

Ginny parou o carro no barracão que servia de garagem e se deixou ficar olhando ao redor. As cercas quase desabadas, enferrujadas, sustentavam-se por mourões praticamente apodrecidos. As árvores estavam desfolhadas, já que era inverno, e o campo fora tomado por capim e carrapicho. A terra precisaria ser revolvida antes do plantio na primavera, mas Ginny não sabia operar o trator e não podia contar com Rony, que andava muito rebelde. Havia bastante feno no palheiro do velho celeiro para alimentar as duas vacas leiteiras, bastante farelo para alimentar as galinhas, e milho para aumentar o volume da ração dos animais.

Graças aos incansáveis esforços de Ginny no último verão, o grande frigorífico estava cheio de legumes e a despensa, de conservas. Mas tudo teria acabado no verão, e precisaria ser reposto. Além disso, Ginny precisava trabalhar. Sua vida era uma interminável rotina de trabalho. Nunca fora a uma festa, a um baile. Nunca tivera um vestido de seda ou um perfume caro. Nunca tivera seus cabelos e unhas tratados por profissionais, e provavelmente não os teria. Envelheceria cuidando da família, desejando encontrar uma saída para seus problemas.

Sentia-se culpada por sua autopiedade. Amava o avô e os irmãos, não devia culpá-los por sua falta de liberdade. Afinal, recebera uma criação que a impediria de desfrutar qualquer tipo de estilo de vida moderno. Não sairia dormindo com qualquer um porque era contra sua natureza tratar como casual algo tão intenso. Não podia usar drogas ou se embebedar porque era fraca com álcool, mesmo pequenas quantidades a faziam dormir.

Ginny abriu a porta do carro e saiu. Não podia nem fumar porque se engasgava. Ela era um caso perdido, refletiu.

— Você não nasceu para jatinhos e computadores — falou com as galinhas que a olhavam do terreiro. — Nasceu para algodão e camurça.

— Vovô! Ginny está conversando com as galinhas novamente! — Percy gritou do celeiro.

O avô estava sentado no lado ensolarado do alpendre, sorrindo para a neta. Vestia camisa branca e suéter com seu macacão, e parecia mais saudável do que nas últimas semanas. Estava quente para uma tarde de fevereiro, quase primaveril.

— Desde que elas não respondam, está tudo bem, Percy — ele respondeu ao sorridente rapazinho ruivo.

— Fez o dever de casa? — Ginny perguntou ao irmão caçula.

— Ah, Ginny, acabei de chegar em casa! Preciso alimentar meu sapo!

— Desculpas, desculpas — ela murmurou. — Onde está Rony?

Percy não respondeu. Desapareceu bem depressa no celeiro. Ginny viu o avô desviar os olhos e brincar com o canivete enquanto ela subia os degraus, bolsa em mãos.

— O que foi? — perguntou ao avô, colocando a mão de maneira carinhosa sobre seu ombro.

Ele deu de ombros, a cabeça com cabelos brancos abaixada. Era um homem alto, muito magro e curvado desde o ataque cardíaco, moreno dos anos de trabalho ao ar livre. As marcas da velhice eram aparentes nas costas das mãos de dedos longos, as rugas no rosto semelhantes a estradas sulcadas pela chuva. Tinha 66 anos agora, embora parecesse muito mais velho. Levara uma vida muito dura. Ele e a avó de Ginny tinham perdido dois filhos numa inundação e outro de pneumonia. Só o pai de Ginny, Carlinhos, dos quatro filhos, alcançara a idade adulta, tornando-se uma constante fonte de aborrecimentos para todos. Inclusive para a esposa. A certidão de óbito da mãe dizia que a causa da morte era pneumonia. Mas Ginny tinha certeza de que ela simplesmente desistira de viver. A responsabilidade por três crianças mais um velho doente, adicionada à própria saúde fraca e à incessante jogatina e traições de Carlinhos, derrotara seu espírito.

— Rony saiu com aqueles irmãos Crabbe-Goyle — o avô enfim respondeu.

— Gregório e Vincent? — Ginny suspirou.

Os irmãos Crabbe-Goyle estavam no fim da adolescência e tinham licença para dirigir. No caso deles, era uma licença para matar. Ambos usavam drogas, e Ginny ouvira rumores de que Gregório as vendia. Dirigia um grande Corvette azul e sempre tinha dinheiro. Largara a escola aos 16. Ginny não gostava desses garotos e já falara disso com Rony. Mas, aparentemente, ele não estava ouvindo os conselhos da irmã, já que tinha saído com aqueles tipinhos.

— Não sei o que fazer — Arthur Weasley murmurou. — Tentei conversar, mas ele não escuta. Disse que tinha idade para tomar as próprias decisões, que eu e você não temos direitos sobre ele. E praguejou contra mim. Imagine só, um garoto de 17 anos praguejando contra o próprio avô!

— Isso não é nada típico de Rony. Foi depois do Natal que começou a ficar tão desobediente. Desde que começou a andar com esses irmãos Crabbe-Goyle, na verdade.

— Não foi à escola hoje — o avô acrescentou. — Não vai há dois dias. Ligaram da escola querendo saber onde ele estava. A professora ligou também. Disse que as notas estão tão baixas que pode ser reprovado. Não vai se formar se não melhorar. Então o que será dele? Um outro Carlinhos — disse abatido. — Outro Weasley que vai para o mau caminho.

— Oh, meu Deus. — Ginny sentou-se com vontade nos degraus do alpendre, deixando que o vento soprasse em suas bochechas. Fechou os olhos. De mal a pior, não era o que dizia o ditado?

Rony sempre fora um bom garoto, tentando ajudar com as tarefas e cuidando de Percy, o irmão menor. Mas começara a mudar nos últimos meses. As notas tinham caído. Andava mal-humorado e retraído. Ficava fora até tarde e às vezes não conseguia nem acordar para ir à escola. Os olhos viviam avermelhados e, certa vez, ele chegou em casa rindo feito uma garotinha, sem qualquer motivo — sintomas, Ginny viria a descobrir, do uso de cocaína. Ela nunca vira Rony usando drogas, mas tinha certeza de que ele fumava maconha, pois sentira o cheiro nas roupas largadas no quarto dele. Rony negara, e Ginny nunca encontrou qualquer evidência. Ele era muito cuidadoso.

Ultimamente ele reclamava cada vez mais da interferência da irmã em sua vida. Era apenas a irmã dele, Rony dissera justamente duas noites atrás. Não tinha qualquer autoridade sobre ele, não poderia mais dizer o que ele devia fazer. Já estava cansado de viver como pobre e nunca ter dinheiro para gastar, o que não acontecia com os irmãos Crabbe-Goyle. Ele encontraria seu próprio lugar no mundo, e ela que fosse para o inferno.
Ginny não contara nada disso ao avô. Já era bem difícil inventar desculpas para o mau comportamento e os frequentes sumiços de Rony. Sua única esperança era que ele não se tornasse viciado. Existiam locais de tratamento, mas eram para pessoas rica. O melhor que poderia arranjar para o irmão seria algum centro de reabilitação mantido pelo governo, mas o avô não admitiria tal coisa, mesmo que Rony quisesse ser tratado. O avô não gostava de nada que lhe parecesse caridade. Era orgulhoso demais.

Então ali estavam eles, Ginny pensou, fitando a terra que pertencia a sua família há mais de cem anos, completamente endividada, e com Rony metido em problemas. Diziam que nem mesmo um alcoólatra poderia ser ajudado se não percebesse que tinha um problema. Era o caso de Rony. De qualquer forma, essa não era a melhor maneira de encerrar um dia que já começara ruim.