relação à atividade científica. Já as categorias de f) a k) referem-se a conhecimentos, habilidades e valores
relacionados à função social da atividade científica, incluindo categorias de natureza cultural, prática e democrática. Esses dois grandes domínios estão centrados no
compreender o conteúdo científico e no compreender a função social da ciência. Apesar de serem enfatizados de formas diferentes pelos autores que discutem
educação científica, eles estão inter-relacionados e imbricados. Pela natureza do conhecimento científico, não se pode pensar no ensino de seus conteúdos de forma neutra, sem que se contextualize o seu caráter social, nem há como discutir a função social do
conhecimento científico sem uma compreensão do seu conteúdo. Afinal, como afirma Morin (2000), há um
tecido interdependente e inter-retroativo entre o objeto do conhecimento e o seu contexto. Isso, contudo, não tem sido a característica da educação científica na educação formal, que desde o ensino fundamental até a pós-graduação vem sendo abordada cada vez mais com fragmentação e especialização. Dessa forma, as discussões sobre educação científica muitas vezes acabam por priorizar um domínio em relação a outro.
Sem querer propor uma dicotomia entre os dois domínios, no presente artigo, caracteriza-se essa distinção adotando a mesma categorização que se vem
usando para alfabetização e letramento nas ciências lingüísticas e em educação. Para Magda Soares (1998), o termo alfabetização tem sido empregado com o sentido mais restritivo de ação de ensinar a ler e a escrever; o termo letramento refere-se ao "estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas
cultiva e exerce práticas sociais que usam a escrita"(p. 47).
De acordo com essa conceituação, uma pessoa alfabetizada, que sabe ler e escrever, pode não ser letrada, caso não faça uso da prática social de leitura, ou seja, apesar de ler, não é capaz de compreender o significado de notícias de jornais, avisos, correspondências, ou não é capaz de escrever cartas e recados. Isso é o que se tem chamado de analfabetismo funcional. Ao contrário, uma pessoa pode não ser alfabetizada, mas ser letrada se tiver contato diário com as informações do mundo da leitura e da escrita, por meio
de pessoas que lêem ou escrevem para ela as notícias de jornal, as cartas ou os recados (Soares, 1998).Chassot (2000) considera inadequado o termo alfabetização, pois carrega a primazia da óptica ocidental da escrita alfabética, desconsiderando a linguagem de outras civilizações que adotaram escritas cuneifórmica, hieroglífica e ideogrâmica. Todavia, Chassot (2000), em sua obra, acaba adotando o termo alfabetização, mencionando que letramento não está
dicionarizado e que letrado apresenta conotações pernósticas. Krasilchik e Marandino (2004) entendem que o termo alfabetização científica já se consolidou na
prática social, apesar da distinção entre alfabetização e letramento. Nesse sentido, elas consideram que a alfabetização já engloba a idéia de letramento. Neste artigo, adota-se a diferenciação entre alfabetização e letramento, pois na tradição escolar a alfabetização científica tem sido considerada na acepção do domínio da linguagem científica, enquanto o letramento científico, no sentido do uso da prática social, parece ser um mito distante da prática de sala de aula.
Ao empregar o termo letramento, busca-se enfatizar a função social da educação científica contrapondo-se ao restrito significado de alfabetização escolar.
Nesse sentido, a conceituação apresentada por Krasilchik e Marandino (2004) para alfabetização como "capacidade de ler, compreender e expressar opiniões sobre ciência e tecnologia" (p. 26) corresponderia ao que se denomina aqui letramento científico. Note-se que essa caracterização é também muito próxima do que Chassot (2000) considerou alfabetização: "conjunto de conhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura do mundo onde vivem" (p. 34).
Deve-se observar que, enquanto a alfabetização pode ser considerada o processo mais simples do domínio da linguagem científica e enquanto o letramento, além desse domínio, exige o da prática social, a educação científica almejada em seu mais amplo grau
envolve processos cognitivos e domínios de alto nível. Shamos (1995) denominou letramento científico propriamente dito o processo que envolve um conhecimento mais aprofundado dos construtos teóricos da ciência e da sua epistemologia, com compreensão dos elementos da investigação científica, do papel da experimentação e do processo de elaboração dos modelos científicos. Letramento científico, nessa perspectiva, consiste na formação técnica do domínio das linguagens e ferramentas mentais usadas em ciência para o desenvolvimento científico. Para isso, os estudantes deveriam ter amplo conhecimento das
teorias científicas e ser capazes de propor modelos em ciência. Isso exige não só o domínio vocabular mas a compreensão de seu significado conceitual e o desenvolvimento de processos cognitivos de alto nível de elaboração mental de modelos explicativos para processos e fenômenos. Esse domínio do letramento
científico foi identificado por Shamos (1995) como "true" scientific literacy (letramento científico autêntico ou propriamente dito); por Laugksch (2000),
como erudição ou competência.
Letramento científico e a função social
O conceito de letramento no sentido da prática social está muito presente na literatura de educação científica. Shamos (1995) considera que um cidadão
letrado não apenas sabe ler o vocabulário científico, mas é capaz de conversar, discutir, ler e escrever coerentemente em um contexto não-técnico, mas de forma significativa. Isso envolve a compreensão do impacto da ciência e da tecnologia sobre a sociedade em uma dimensão voltada para a compreensão pública da ciência dentro do propósito da educação básica de formação para a cidadania (Santos Schnetzler,1997).
Consideramos esse domínio como letramento, pois, sendo o maior domínio na educação científica, ele confere capacidade cognitiva ao estudante de fazer uso social do conhecimento cien-tífico.
Laugksch (2000) define LC com função social como aquele que desenvolve a capacidade mínima funcional para agir como consumidor e cidadão. Isso
corresponderia à categoria cívica de Shen (1975), a qual se refere ao conhecimento essencial que as pessoas necessitam para compreender as políticas públicas, visando prepará-las para atuar na sociedade, quer
compreendendo os processos relativos ao seu cotidiano e os problemas sociais vinculados à ciência e tecnologia, quer participando do processo de decisão
sobre questões envolvendo saúde, energia, alimentação, recursos naturais, ambiente e comunicação. Prewitt (1983) considera que o letramento científico para cidadão tem origem nas interações entre a ciência e a sociedade e promove o que ele chama de savvy citizen ("cidadão prático"): aquele que, apesar de não ser cientista ou tecnólogo, é capaz de atuar na sociedade em nível pessoal e social, compreendendo com
perspicácia a profundidade, os princípios e as estruturas que governam situações complexas, compreendendo como a ciência e a tecnologia influenciam a
sua vida. Para Fourez (1997, p. 51),
[...] as pessoas poderiam ser consideradas cientifica e tecnologicamente letradas quando seus conhecimentos e habilidades dão a elas um certo grau de autonomia (a habilidade de ajustar suas decisões às restrições naturais ou sociais), uma certa habilidade de se comunicar (selecionar
um modo de expressão apropriado) e um certo grau de controle e responsabilidade em negociar com problemas específicos (técnico, mas também emocional, social, ético e cultural). (tradução livre)
Nesse contexto, o letramento dos cidadãos vai desde o letramento no sentido do entendimento de princípios básicos de fenômenos do cotidiano até a capacidade de tomada de decisão em questões relativas a ciência e tecnologia em que estejam diretamente envolvidos, sejam decisões pessoais ou de interesse público. Assim, uma pessoa funcionalmente letrada em ciência e tecnologia saberia, por exemplo, preparar adequadamente diluições de produtos domissanitários;
compreender satisfatoriamente as especificações de uma bula de um medicamento; adotar profilaxia para
evitar doenças básicas que afetam a saúde pública; exigir que as mercadorias atendam às exigências legais de comercialização, como especificação de sua data de validade, cuidados técnicos de manuseio, indicação dos componentes ativos; operar produtos eletroeletrônicos etc. Além disso, essa pessoa saberia posicionar-se, por exemplo, em uma assembléia comunitária para encaminhar providências junto aos ór-
gãos públicos sobre problemas que afetam a sua comunidade em termos de ciência e tecnologia.
O letramento como prática social implica a participação ativa do indivíduo na sociedade, em uma perspectiva de igualdade social, em que grupos minoritários, geralmente discriminados por raça, sexo e condição social, também pudessem atuar diretamente pelo uso do conhecimento científico (Roth Lee,2004). Isso requer também o desenvolvimento de valores (Santos Schnetzler, 1997), vinculados aos interesses coletivos, como solidariedade, fraternidade, consciência do compromisso social, reciprocidade, respeito ao próximo e generosidade. Eles estão relacionados às necessidades humanas e deveriam ser vistos como não subordinados aos valores econômicos.
Por exemplo: as pessoas lidam diariamente com dezenas de produtos químicos e têm que decidir qual devem consumir e como fazê-lo. Essa decisão poderia ser tomada levando em conta não só a eficiência
dos produtos para os fins que se desejam mas também seus efeitos sobre a saúde, seus efeitos ambientais, seu valor econômico, as questões éticas relacionadas à sua produção e comercialização. Por exemplo, poderia ser considerado pelo cidadão, na hora de consumir determinado produto, se na sua produção é usada mão-de-obra infantil ou se os trabalhadores são explorados de maneira desumana; se em alguma fase,
da produção ao descarte, houve geração de resíduos que agridem o ambiente; se ele é objeto de contrabando ou de outra contravenção etc.
Outro significado que tem sido atribuído à alfabetização/letramento científico é o cultural. Esse papel dado à educação científica está presente em muitos dos estudos sobre AC/LC, de tal modo que hoje a educação científica tem sido vista como processo de enculturação. Um recente trabalho do escritório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) no Brasil sobre edu-
cação científica intitulou-a cultura científica (Macedo,2003). Krasilchik e Marandino (2004) caracterizam a educação científica também como a capacidade de participar da cultura científica da maneira que cada
cidadão, individual e coletivamente, considera oportuno. Em sua tese de doutorado, Leodoro (2005) ressalta o aspecto valorativo da educação científica no sentido de ela ser assumida pelos educandos como cultura científica, não apenas no sentido da vulgarização de seu conhecimento mas também do exercício crítico de seu modo de pensar.
O entendimento do significado cultural da educação científica vem manifestando-se com diferentes conceituações. A partir do trabalho original de 1959 de Snow (1995), em que identificou a existência de duas culturas, a científica e a humanística, Shen (1975) identificou um tipo de letramento como LC cultural. Para ele, essa categoria de letramento significava o conhecimento que os indivíduos adquirem para transpor as diferenças entre as culturas científica e humanística. DeBoer (2000) apresenta, entre outros propósitos para o letramento, o ensino e a aprendizagem de ciências como uma força cultural no mundo moderno e a aprendizagem de ciências por seus apelos estéticos. Para Ramsey (1993), o letramento cultural lida com a compreensão da ciência como principal realização humana e como parte de nossa cultura geral.
Fleming (1989) considera que uma pessoa letrada é aquela que tem acesso à cultura e pode ser capaz de mover-se além dela para criar novas formas de cultura. Arons (1983) define LC como um processo que, além de considerar a ciência um corpo de conhecimento e habilidades, considera-a um produto da mente humana, de natureza experimental, que tem limites e que interage com a sociedade nos seus planos moral e ético. Já Driver e colegas (1994)3
consideram a educação científica um processo de enculturação em que o aluno aprende a linguagem, o modo de pensar, de expressar-se e de justificar os seus argumentos. Com essas perspectivas, deve-se considerar que o processo de letramento não deve ser tomado apenas
com um caráter prático, no sentido de ter uma aplicação imediata, o que Shen (1975) denominou LC prá-tico,4 afinal, o conhecimento científico faz parte da
cultura humana e possui valor por si mesmo. Nesse sentido, pode-se considerar que muitos conteúdos científicos se justificam não pelo seu caráter prático
imediato, mas pelo seu valor cultural. Contudo, não se quer com isso justificar conteúdos que aparecem como penduricalhos nos programas escolares, como classificações descontextualizadas sem qualquer significado no campo científico e vocábulos obsoletos.
Há de considerar-se, ainda, que conteúdos científicos com valor cultural, quando contextualizados, passam a ter significado para os alunos. Ocorre que a forma
descontextualizada como o ensino de ciências é praticado nas escolas faz com que muitos dos conceitos científicos se transformem em palavreados tomados
como meros ornamentos culturais repetidos pelos alunos sem qualquer significação cultural.
