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Lavrio, Ática, Grécia, próximo ao Cabo Sounion. 2018.

Depois disse Deus: "Haja entre as águas um firmamento que separe águas de águas".
Então Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam embaixo do firmamento das que estavam por cima. E assim foi.
Ao firmamento Deus chamou céu. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o segundo dia.
E disse Deus: "Ajuntem-se num só lugar as águas que estão debaixo do céu, e apareça a parte seca". E assim foi.À parte seca Deus chamou terra, e chamou mares ao conjunto das águas. E Deus viu que ficou bom.

Gênesis 1:6-10

POV Kanon

Kanon acordou em um pulo, assustado e suado, buscando por ar. Ofegava, seu peito subindo e descendo, enquanto tentava se lembrar do sonho que teve.

Mais uma vez, ele havia sonhado com a sereia. Ela atormentava seus sonhos, desde aquele dia.

Depois de se recuperar do susto, levantou e jogou o cobertor para o lado, e foi escovar seus dentes. Saga ainda não havia acordado, por conta do efeito dos remédios. Era bom que Saga dormisse, ele estava se queixando de insônia ultimamente, então achou melhor não incomodar o irmão.

Seu irmão Saga, seu gêmeo.

Saga era melhor do que ele em tudo.

Saga era 22 minutos e 36 segundos mais velho que ele. Saga, quando nasceu, era forte e gordo, pesando seus 3 quilos e 600 gramas de pura glória e luz, pronto para vir ao mundo. Ele, Kanon, nasceu mirrado e pequeno, com 2 quilos e alguma coisinha, e teve que ficar na UTI por uma semana. O crescimento de Saga na barriga da mãe atrapalhou o seu desenvolvimento, e por pouco não morreu antes mesmo de saber o que é a vida.

Isso não mudou durante o seu crescimento.

Saga sempre foi forte e com a saúde boa. Nunca teve problemas, era vigoroso e bem disposto. Praticou esportes desde pequeno, e era bom em todos eles. Fez judô e karatê, jogava futebol muito bem. No basquete, era genial, pois era alto mesmo na sua infância e adolescência e mesmo no vôlei ele ia bem, com todos o querendo para o seu time.

Já Kanon, devido as complicações do parto, ficou com sequelas no pulmão. Além disso, teve uma asma terrível na infância, o que o impedia de correr e praticar esportes. Na adolescência, graças a natação (o único esporte que era melhor que Saga) ele conseguiu melhorar a sua respiração, mas ainda assim era um verdadeiro desastre. Sempre trombavam com ele no basquete. No futebol, ele sempre tropeçava na própria bola quando ia correr e no vôlei, a bola sempre vinha em direção a sua cara. Ele nunca era escolhido para participar do time.

Saga era belo e sedutor. Na adolescência, as meninas (e alguns meninos também) literalmente brigavam por ele. Saga tinha longos e brilhantes cabelos azuis. Seus dentes eram brancos e grandes, retos, que davam a ele um sorriso lindo, capaz de derreter o coração de qualquer um. Suas sobrancelhas eram grossas, mas bem feitas, seus lábios eram rosados e bem delineados. Seus olhos eram enormes e cheios de bondade, com a íris azuis, levemente esverdeadas, com cílios cheios. Seu nariz era reto, sua pele era macia e sem espinhas, sua barba (quando ele deixava crescer, o que era raro) era vistosa e cheia. Durante a adolescência, já tinha um corpo atlético e saudável, com músculos bem delineados e abdômen definido.

Kanon só ficou bonito na idade adulta, pois ficou idêntico ao seu irmão, ao ponto de serem facilmente confundidos. Mas na infância e na adolescência, era bem complicado. Tinha os belos cabelos azuis de Saga, os olhos um pouco mais verdes, os lábios bem delineados e o nariz reto. Mas só. Seus dentes eram tortos, teve que usar aparelho durante a pré-adolescência (o que lhe rendeu muita gozação). Era magro, não tinha o corpo atlético de Saga. A pele também não colaborava, pois ele teve espinhas (E muitas. Até hoje agradecia ao dermatologista que fez o tratamento de sua pele, pois agora ela parecia que nunca tinha visto um cravo na vida). Sua barba, até hoje, não era tão bonita quanto a de Saga (e ele também não deixava crescer, só de raiva). A sua sorte é que isso era um trauma do passado, pois hoje em dia ele também tinha um corpo atlético, sua pele era maravilhosa e seus dentes eram retos, grandes e brancos, era tão belo quanto o irmão. Por isso, não se ofendia quando o comparavam ou o confundiam com ele, pois, pelo menos, ele era tão bonito quanto Saga.

Saga era inteligente e sagaz. Os professores o admiravam. Tinha talento para tudo, mas um gosto especial por exatas. Além disso, adorava o céu. Quase todas as noites ia admirar as estrelas, e sempre contava para Kanon sobre as constelações e suas histórias. Queria desvendar os mistérios do Universo, então foi fazer Física na Universidade de Atenas. Como se não bastasse, se tornou um PhD em astrofísica pelo MIT (com 100% de bolsa!), com direito de passar pela NASA e tudo e aos 30 anos já era professor na Universidade de Atenas, trabalhando no Observatório Nacional de Atenas.

Kanon era... esforçado. Convenhamos, ele era bom, muito bom. Ele estava acima da média. Só não era... Saga. Ele era o segundo da turma, pois o primeiro era sempre Saga. Ele não sabia bem o que queria. Mas ele gostava do mar, muito. Toda vez que seus pais falavam em se mudar de casa, que sempre foi perto do Cabo Sunion, Kanon abria o berreiro e chorava, pois, ele não queria, não podia viver longe do mar. Mas ele gostava de todas as matérias, pensou em fazer história, pensou em fazer direito, pensou em fazer física como o irmão. Mas queria algo diferente. Então fez biologia na Universidade de Atenas, e embora fossem da mesma escola, a Escola de Ciências da Universidade de Atenas, já não havia mais motivos para se comparar com Saga, embora morassem juntos em uma quitinete na tumultuada cidade, longe de seus pais, que alugaram a casa em Lavrio e se mudaram para Creta, ilha natal deles e lá faleceram. No mestrado, se separou de Saga, pois ficou na Universidade de Atenas, mas fez um "sanduíche" em Cambridge, onde conseguiu, sabe-se lá Deus como, ir para a Antártida pesquisar a fauna marinha e como era afetada pelo aquecimento global.

Foi lá que todo o inferno começou.

Logo após o encontro com a sereia, Kanon ficou doente durante semanas. A base britânica achou mais seguro mandá-lo para um hospital e assim, ele foi parar no Chile, enquanto seu irmão arrumava as malas para tentar se encontrar com ele. Chegando lá, Saga encontrou um irmão entubado, com vários problemas respiratórios causados pelo frio e pela falta de ar do afogamento e com febre, delirando sobre uma sereia, que ele implorava para voltar, implorava para o abraçar. Os médicos jamais tinham visto algo tão esquisito. Ele acordou e viu Saga, que explicou toda a situação para ele. E ele sentiu um enorme vazio no peito, inexplicável, pois nem sequer sabia o nome da mulher.

E ela persegue seus sonhos desde então. E ele nunca consegue alcançá-la, o que gera sua angústia e seu pesar.

Seus devaneios são interrompidos por Saga que acordou enquanto ele preparava café. Ele ainda estava lento, devido aos remédios, e enquanto se sentava, Kanon colocou a cartela do remédio da manhã na frente de Saga, para que ele tomasse após o desjejum.

- Não vou tomar – disse Saga – me sinto bem hoje. Dormi melhor nos últimos dias.

- O psiquiatra disse que você iria falar isso. Você disse que falaria isso. Por isso, me deu os remédios para que eu os administrasse, para que você não desistisse do tratamento – disse Kanon, incisivo – então toma os remédios agora.

Saga os tomou, a contra gosto.

- Abre a boca pra eu ver se você engoliu.

- Kanon, eu não sou criança.

- Abre a boca.

Não tinha remédios ali, nem debaixo da língua. Kanon estava satisfeito.

Saga poderia ser considerado um ser perfeito, e queria ser considerado assim, mas ele tinha um "problema". Ele era instável, muito instável emocionalmente. Isso não era um problema para Kanon, mas definitivamente, Saga o detestava, pois ele gostava de ser perfeito e ele sempre disse isso para Kanon, que considerava sua instabilidade um defeito.

Saga nunca teve namorados ou namoradas fixas. Uns casos ou outros, alguns namoradinhos, mas eles sempre se separavam, alegando que ele era inseguro, ciumento e por vezes, violento. Saga nunca se aproximava demais das pessoas, e embora não dissesse, Kanon era seu gêmeo, e conseguia perceber que ele só mantinha as amizades superficiais pois não queria estragar a sua imagem de perfeição que os outros tinham de si. Ele sofria muita pressão para ser perfeito, de colegas, pais, amigos e professores, e Kanon entendia isso, Kanon tentava aliviar, mas era impossível. Era um fardo que Saga carregava sozinho e não aceitava sua ajuda.

Então, as coisas desandaram e saíram de seu controle. Os pais faleceram, de forma muito rápida. Saga conseguira se tornar professor na universidade, mas o cargo exigia muitas responsabilidades, que o pressionavam. A vida pessoal também não ia bem, pois seu namoro estava terminado, não tinha amigos para desabafar e Kanon estava longe, morando em outra casa, no começo do doutorado. Não conseguia dormir direito e estava se tornando cada vez mais instável. Além disso, sua casa foi assaltada e a promoção, junto com a pesquisa e o laboratório que ele tanto sonhava, foram dados para um outro professor, menos competente, mas que tinha mais networking que ele. Tudo isso em poucos meses.

Saga começou a ter comportamentos estranhos e até mesmo autodestrutivos. Começou a frequentar bares e festas com muita frequência. Começou a utilizar substâncias, lícitas e ilícitas. Saía com muitas pessoas, que Kanon não conhecia, mas que ele tinha certeza de que lhe faziam mal. Teve comportamentos inconsequentes, chegou a bater o carro por conta disso. Se tornou um compulsivo por sexo e por prazeres pornográficos. Kanon falava e brigava, mas Saga afirmava que ele não era criança, que ele sabia cuidar da sua própria vida.

Foi quando, numa noite qualquer, Saga ligou para Kanon, chorando. Com a voz lenta, disse que tinha tomado várias pílulas de calmante, pois não aguentava mais tudo aquilo, aquela dor, aquele vazio. Kanon pegou a moto e apareceu na casa de Saga, vendo que o lugar estava uma bagunça, com Saga quase morrendo. Seus pulsos e braços estavam todos cortados. Saga havia tentado suicídio.

A notícia veio como um baque para Kanon, que não conseguia acreditar no que havia acontecido. O psiquiatra falou que Saga muito provavelmente estava depressivo. Após a alta no hospital, Saga começou o seu tratamento, mas cada médico falava que ele tinha algo diferente, receitavam remédios diferentes e dosagens diferentes, que nunca funcionavam. Cada psiquiatra falava uma coisa, Saga tinha depressão, Saga era bipolar, Saga tinha ansiedade. Saga teve que ser afastado da docência, mas não antes de ouvir comentários maldosos de seus colegas de trabalho, dizendo que ele era louco. No dia que ouviu isso, Saga tentou suicídio mais uma vez, e mais uma vez Kanon estava lá, por ele.

A situação se arrastou por meses. Kanon não imaginava que uma saúde mental comprometida poderia afetar tanto a saúde física de alguém. Saga tinha dores no corpo, falta de ar, dores de cabeça. Passava em vários médicos e todos falavam a mesma coisa: tudo isso ocorria por conta da saúde mental comprometida de Saga. Os efeitos colaterais dos remédios também não ajudavam. Os ansiolíticos o faziam ficar lento e aéreo e os antidepressivos o faziam ficar acelerado e com taquicardia.

Os remédios para insônia o permitiam ter um pouco de paz, mas não podíamos contar com Saga na madrugada. Deus sabe que esses remédios fariam qualquer universitário ficar com inveja dos efeitos e um Saga chapado era bem problemático.

Diante desse quadro, Saga achou melhor deixar toda a responsabilidade da sua vida para Kanon. Isso significava muito para ele, que sempre foi muito independente, mas era capaz de confiar em seu irmão a sua vida, e confiou. Assim, Kanon administrava até mesmo os remédios, para que ele, em um de seus impulsos, não desistisse do tratamento.

Durante um certo tempo, foi terrível. Saga não se levantava da cama, só para ir ao banheiro. O quarto ficava uma bagunça, com roupas e livros para todos os cantos. Ele quase não comia. Para tomar banho, Kanon precisava brigar com ele. Ia para a terapia arrastado, pois Kanon o obrigava. Nos dias muito ruins, Kanon até mesmo dormia com Saga, segurando sua mão, para que ele conseguisse provar que ele estava ali, que ele faria de tudo para salvá-lo, quantas vezes fosse necessário, que ele não se importava em sacrificar tudo para ver o irmão feliz. Ele jamais abandonaria o irmão, jamais o jogaria numa cela e o trataria como um problema.

Eles eram família.

No entanto, nas últimas semanas, Saga tem demonstrado melhora. Começou a sair mais do quarto, no qual ficava o dia inteiro. Começou a arrumar a casa e a demorar mais nos banhos, o que Kanon odiava, pois desperdiçava água, mas também amava, pois Saga amava banhos longos, e sabia que ele estava se sentindo melhor. Começou a comer mais. Até voltou com seus perfumes e cremes, pois Saga era muito vaidoso e gostava de ter um bom cheiro. Kanon sorria ao ver o irmão lavando a louça da manhã, enquanto colocava alguma música no Spotify e cantarolava baixinho.

Ele queria tanto mostrar para o mundo quem Saga era. Saga não é perfeito, um deus intocável, mas Kanon não conseguiria imaginar ele fazendo mal para alguém. Quando ele machuca alguém, ele também se machuca, e sofre muito com isso. E queria, quem sabe um dia, mostrar para Saga que ele não é perfeito mesmo, que está tudo bem, ele não precisa ser bom em tudo, ele não precisa carregar o mundo nas costas.

As coisas ficariam bem.