Retorno

II

Marin

O invólucro da armadura de Leão reluzia em sua tenda. Sua superfície majestosa causaria fascínio a qualquer um. Não havia sujeira ou arranhão visível que demonstrasse quanto tempo se passou desde a última vez que viu aquele objeto. Marin concentrou o olhar no brilho dourado tentando acalmar a náusea e palpitação que sentia.

As promessas da despedida, os pergaminhos nunca respondidos, o pedido de Sisifos… bastou uma troca de olhar com Aiolia para a confusão de sentimentos atingi-la. Percebeu que não eram as memórias cruéis que prevaleciam depois de tantos anos. Como a caixa da armadura de Leão, o poder de atração do rapaz continuou intocável pelo tempo.

Seiya informou Marin que os representantes do Norte foram convocados também para o encontro. Imaginava que, como antes, os dourados de Aquário seriam os representantes escolhidos para o encontro com Atena. Normalmente era assim, eles que retornavam daquela terra fria para receber ordens diretas da Deusa, acreditou que seria assim dessa vez… ou quis se proteger, sem criar expectativas. Agora, recordando o tom cauteloso do cavaleiro de bronze, tinha certeza que Seiya tentou avisá-la. Se Hilda foi convidada, fazia todo sentido que sua comitiva incluiria a de Aiolia.

Tola. Como pôde não se preparar melhor para esse momento?

Viu-se cumprindo friamente seu papel de amazona, de líder, de mãe; contudo a mulher por trás da máscara tremia. Se as jovens pupilas perceberam seu estado desnorteado, nada demonstraram. Como Régulus, ficaram hipnotizadas com a presença reluzente dos dois irmãos.

Piscou ignorando o brilho dourado e, finalmente, voltou-se para Aiolia. Analisou com mais cuidado os efeitos do tempo sobre seu belo rosto e, ironicamente, percebeu que as novas marcas de expressão conseguiram deixá-lo mais charmoso. Ele teria novas cicatrizes debaixo daquela armadura mundana? Oh, não... não era uma boa ideia pensar nisso agora. Estavam a uma distância segura, mas seu cheiro único, seu olhar intenso, já lhe desnorteavam ao ponto de sentir os lábios queimarem de desejo.

Agora que as amazonas e Sisifos abandonaram o recinto, ercebeu que havia uma pergunta oculta na expressão do loiro. Talvez o cavaleiro se lembrasse do que ocorreu entre eles, talvez já especulasse o que os traços do garoto desvendavam tão bem:

- Então, como você quer fazer isso? – Perguntou rapidamente dando uns passos para trás. O cavaleiro havia oferecido curar Régulus com seu cosmo, teriam mais um pouco de tempo juntos para que Marin analisasse o quanto ele se lembrava. - Quer uma cadeira?

- Ahm, não, não precisa, – disse sorrindo brevemente e se aproximado do garoto – mas talvez seja melhor você sentar, Régulus, o que acha?

- Não preciso, está tudo certo. – Marin reconhecia aquela voz, era o tom orgulhoso que o filho sempre usava quando estava inseguro.

- Bem eu vou sentar, tudo bem?

Propositalmente, a amazona colocou a cadeira ao seu lado, assim ficava mais próxima de seu rosto e o filho poderia se sentir reconfortado observando seus olhos. Marin não duvidou que Régulus estranharia ser curado por outra pessoa, ela nunca permitiu que isso acontecesse. O fato de deixar justamente um cavaleiro dourado fazer isso adicionava mais ansiedade a ocasião. Quando Aiolia se ajoelhou ao seu lado e passou a tirar as faixas de curativo, o filho a fitou apreensivo confirmando sua insegurança. Marin sorriu por trás da máscara, sabia que ele reconheceria as nuances de sua expressão naqueles dois vãos do metal. O garoto respondeu com um sorriso tímido:

- Não sei como você consegue andar por aí com esse ferimento assim… - o cavaleiro comentou enquanto terminava de tirar as faixas do braço de Régulus. - Há quanto tempo você está ferido?

- Faz uma semana.

- Dá para contar os dentes. - Aiolia murmurou olhando as marcas da mordida. O sangue já havia estancado, mas o machucado precisaria ser costurado novamente para garantir total cicatrização. Se fosse um leão adulto provavelmente Régulus já teria perdido o braço. - Por que você resolveu se aproximar de um leão?

Marin cruzou os braços ao ouvir a pergunta. Lógico que aqueles dois já haviam conversado sobre isso no trajeto até aqui. Régulus herdara também esse jeito espontâneo dos dourados de fogo:

- Ele não quis me machucar, estava aceitando bem minha presença, até que chegaram outras pessoas e ele se assustou e… - o menino interrompeu as falas aceleradas e crispou os lábios, como se percebesse que não estava respondendo a pergunta. Respirou fundo e recomeçou. - Eu sonhei com um leão.

A declaração a surpreendeu, essa era uma nova versão para a história e Régulus não ousou encarar nenhum dos dois enquanto continuava:

- Desde o último Equinócio, sonho com isso... então, fomos a uma feira promovida por Delfos e havia vários animais à venda. Pela primeira vez, trouxeram um leão. Quando vi, achei que era um sinal.

A ruiva empertigou o corpo na cadeira. Era ridícula a semelhança do garoto com Aiolia, observá-los lado a lado já deixava tudo muito mais difícil, ouvir uma declaração dessas só aumentava mais sua culpa por nunca ter se esforçado para aquela aproximação acontecer. Marin sabia que as amazonas mais novas desconfiavam que o garoto era filho de Sisifos e ela nunca fez questão de desmentir esses rumores. Prometeu-se que apenas citaria o nome de Aiolia, se Régulus lhe questionasse sobre a paternidade. Como normalmente acontecia com outros filhos das amazonas, ele nunca o fez, contudo, após o acidente com o animal, Marin sentia que essa conversa não demoraria a acontecer. Só não esperava que lidaria com o assunto na presença do próprio Aiolia:

- Entendo… Eu costumava sonhar com leões também, talvez faria a mesma coisa no seu lugar.

Aiolia a encarou serenamente e o ardor dos olhos esmeralda aqueceram seu peito. A náusea foi substituída pela vontade chorar. "Você… já sabe? " A pergunta silenciosa se dissipou quando ele desviou o olhar. Régulus o encarava sorridente:

- É sério?!

- Sim, mas onde eu cresci, em Delos, nós tínhamos leões, eu não achava que era algo especial sonhar com eles. - O loiro já havia começado a usar o cosmo aproximando sua mão do local ferido, olhava atentamente o braço como se analisasse o processo de cura. - Mas algo mudou em um dos sonhos. Acho que os leões começaram a aparecer em forma de fogo. Não lembro detalhes, faz muito tempo que não sonho. Apenas tenho a impressão de que sonhava mais antes de ir para o Norte.

- Você não se lembra direito? É pela luta contra Poseidon?

- É, bem, é complicado – Aiolia murmurou aumentando a eficiência de seu cosmo sobre o ferimento. O brilho jubiloso contrastava com a tristeza que Marin ouviu em sua voz. Ela quase lhe contou o que sabia, Aiolia sempre lhe relatava em cartas como que os leões de fogo eram avisos de Apolo. - Não me lembro de muita coisa, mas às vezes, com poucas informações, a memória do que eu sentia já completa umas lacunas.

O silêncio pairou na tenda. Foi isso que aconteceu quando a olhou com tanta paixão quando entrou? Uma mera sensação do que eles viveram? Agora seria o momento para ler qualquer tipo de expressão no rosto de Aiolia, mas o loiro manteve-se compenetrado em sua função ignorando o peso do acontecimento que mudou sua vida. Foi aquela luta que salvou o Norte da fúria de Poseidon e o consagrou como herói. Entretanto também foi a batalha que o deixou anos em recuperação e que anulou seu noivado com a herdeira daquelas terras.

Régulus pareceu que balbuciaria algo, mas desistiu e se manteve observando a ação dourada - reconstituindo sua pele por um bom tempo. Quando apenas uma vermelhidão fez-se visível, Aiolia interrompeu seu poder e o garoto, tateando o braço, murmurou:

- Isso foi ... incrível. Realmente sumiu tudo, nem sinto dor. – Encarou Marin com olhos esbugalhados, ela fez que sim com a cabeça e apontou para Aiolia. Um lembrete discreto para lembrá-lo que faltava um agradecimento. – Obrigado pela ajuda.

O leonino esticou o corpo e, antes de responder qualquer coisa, foi interrompido pela criança novamente:

- Você sabe que Régulus é uma estrela da constelação de Leão?

O loiro sorriu e seu olhar pareceu transmitir tamanho carinho que Marin não duvidou que ele já amava a criança:

- Sim, eu sei.

- Será que é por isso que eu sonho?

- Eu… - dessa vez ele acariciou os cachos revoltos de Régulus e fitou a ruiva - espero que sim.

Marin analisou-o com olhos de águia buscando indícios lógicos para o que seu coração gritava. "Sim. Ele já sabe. Sim, ele já o ama. ". A ruiva se levantou, impaciente com as dúvidas e lágrimas contidas. Tocou o ombro do filho, apressando Régulus, ele ainda tocava a pele avermelhada. Incrédulo com a cura imediata:

- Régulus, é melhor você ir se limpar e descansar um pouco. Aiolia também já precisa ir.

- Uhm... – a criança quase contestou e desistiu quando a fitou. Deu de ombros se dirigindo à saída da tenda – Está bem. Até mais, Aiolia.

- Até mais, tenta descansar mesmo. Poupe seu braço, está bem?

- Pode deixar.

Aiolia ficou ao seu lado, mais perto do que Marin gostaria naquele momento, e sussurrou:

- Ele é… incrível.

- Ele é inconsequente e curioso demais. Ele poderia ter perdido o braço. Obrigada pela paciência e por curá-lo. – Fitou-o e novamente sentiu os lábios arderem de desejo. Era perigoso manter a conexão daquele olhar e daquela proximidade, contudo não ousou se mover e declarou, sem pestanejar. – Nunca achei que veria vocês dois juntos.

O cavaleiro ficou sério e imitou a expressão conflitante que Régulus esboçava quando não sabia o que falar. Marin não esperou nenhuma sentença, ora, já havia esperado anos para vê-lo novamente, não deveria hesitar por medo de se machucar:

- Quando você voltar, eu quero conversar. Quero saber o que você se lembra.

Ele respirou fundo e rompeu a conexão estabelecida pelos olhos verdes. Atestou com a cabeça murmurando "sim" e saindo de seu lado. Porém, subitamente, virou o corpo e colocou-se mais próximo do que antes, logo a sua frente. O movimento fez Marin reclinar o corpo:

- Nós vamos conversar sim, mas não com você usando esse metal – ele sussurrou estudando sua máscara – Eu lembro da nossa despedida. Há 9 anos. Lembro do que senti quando te beijei pela última vez. Seu rosto... seus lábios. O peso do seu corpo... Eu lembro o suficiente, Marin, sei que tenho o direito de pedir que você tire essa máscara na nossa conversa.

Surpresa, a ruiva engoliu em seco. Uma voz fora da cabana salvou-lhe do desejo de tocar o rosto do leonino.

- Aiolia, Sisifos já está aqui te esperando! – Subitamente Régulus entrou no recinto e ambos se afastaram. Desconcertado perante o olhar indagador da criança, o cavaleiro murmurou sua despedida e saiu a passos largos do recinto. Marin ignorou o filho e se virou para o amontoado de pergaminhos, eles ocupavam a única mesa do local. Fingiu se interessar pelo mapa da região, torcendo para que Régulus fosse embora. Outro guerreiro sairia ao vê-la perturbada. Claro que a criança não o fez:

- Mãe, você está chorando?

O menino tocou seu braço e Marin manteve a frieza controlando-se para a respiração não denunciar seu choro. Manteve sua encenação fitando o mapa, porém inclinou o rosto evitando que as lágrimas caíssem da máscara. Era uma atuação inútil perante a uma criança que sabia que aquele silêncio atestava sua confusão. Se falasse qualquer coisa, sua voz confirmaria aquela pergunta. Então ele simplesmente abraçou sua cintura e a amazona se permitiu aproveitar aquele afeto. Porém sem retirar a face metálica, sem perder também a postura impassível de líder. Conteve-se em envolver os ombros da criança e trazê-lo para si, deixando as lágrimas caírem nas mechas que tanto se pareciam com as do pai.

Por onde começar a lhe contar sobre sua descendência?


Obrigada pelos comentários de todos. Quem não leu as demais "franquias" da Saga, não precisa se preocupar,eu vou descrever bem os personagens que vão aparecer (mas aos poucos, então, por exemplo, no caso do Sisifos, vai ter bastante coisa dele depois para quem nunca o viu, ter uma referência do jeito, personalidade, etc)