Lavrio, Ática, Grécia, próximo ao Cabo Sounion. 2018.

Rock on gold dust woman
Take your silver spoon
Dig your grave

Saga POV

Saga tomava seu café expresso distraidamente, com o olhar desfocado, sem muita coisa passando pela sua cabeça. O que era um milagre, pois Saga sempre estava pensando em alguma coisa, gerando angústia a si. Levantou o olhar e focou em seu irmão Kanon, que digitava em seu laptop, extremamente concentrado no que deveria ser a sua trigésima tentativa de escrever alguma parte da sua tese de doutorado. Sua testa estava franzida, com as sobrancelhas azuis juntas, e Saga sabia que ele estava muito concentrado, pois os cabelos estavam levemente amarrados e ele estava mastigando a própria língua, um hábito curioso que ele tinha desde pequeno quando esforçava o seu intelecto durante muito tempo.

Saga achou a cena muito reconfortante e deu um leve sorriso.

Saga sempre admirou Kanon pelo seu esforço. As coisas nunca vieram fáceis para o seu irmão, mas isso nunca o impediu de tentar. Sua velha avó, que faleceu quando eles ainda eram crianças, dizia que o destino gostava de pregar peças, e fazer com que as pessoas sejam guiadas por estrelas de sorte ou de azar.

Kanon era a estrela de azar, ele tinha certeza.

Mas era justamente isso que Saga admirava tanto no gêmeo. Mesmo quando todos o diziam que ele não era capaz, que ele seria uma mera sombra do irmão, Kanon ia e fazia, reunia toda determinação que ele tinha, só para provar que sim, ele era capaz. Às vezes Saga tinha medo, pois a determinação de Kanon poderia se transformar em ódio, e Deus sabia o que acontecia quando alguém despertava a fúria do irmão.

Desde criança Kanon era frágil e mirrado. Todos o comparavam com Saga, todos diziam que ele era o exemplo, enquanto Kanon ficava de lado, como uma sombra que acompanhava um corpo cheio de luz.

E Kanon se tornou alguém que não tem nada a perder, e tudo a ganhar. E isso é perigoso.

Kanon sempre foi ambicioso. E esperto. Tinha uma língua ferina e um humor ácido para a pouca idade. As professoras do primário diziam que ele era "respondão", pois sempre tinha um argumento na ponta da língua. Mesmo com os pais, Kanon sempre tinha bons argumentos para tudo. A adolescência chegou e ele não somente continuou com a língua ferina, como também se tornou um, com todo respeito ao irmão, malandro de primeira categoria. Enganava fácil colegas e professores. Toda vez que se metia em uma encrenca, sempre se usava da sua lábia para se safar. Mesmo com os pais, ele sabia jogar mentirinhas e manipulações, e conseguia alcançar seus objetivos.

Não que Kanon fosse malvado. Ele não era uma pessoa má e era muito doce e gentil com quem sabia lidar com ele. O problema é que, em uma boa parte da vida, essa pessoa era somente Saga. Por isso, Kanon poderia passar a perna em todo mundo e fingir que ele tinha o controle de tudo, mas Saga sabia quando ele falava a verdade e quando ele mentia.

Saga o admirava, pois, diferente dele, Kanon tinha coragem de enfrentar os problemas. Saga sabia que ele gostava de ser perfeito, e tinha uma mania terrível de pensar que sempre tinha que seguir as regras, todas certinhas. Saga achava que assim, as pessoas o aceitariam, o amariam e o tratariam bem. Então ele se esforçou para ser o mais perfeito possível, o melhor possível, pois aquilo era necessário, pois ele queria ser relevante, ele queria a glória. Quem não queria? Então ele fazia tudo do jeito que todos acreditavam que deveria ser feito, para ganhar a admiração de todos.

Só que Kanon não era assim, Kanon ria das regras. Sempre foi muito questionador. Não entendia e não aceitava um "porque não" como resposta. Na escola, ele sempre perguntava o motivo dele estar aprendendo aquilo, se aquilo seria útil para a vida dele. Não entendia as posições hierárquicas e não via motivos para respeitar alguém somente pelo fato de que era seu superior. Kanon tinha amor pelo debate e, apesar de ser contraditoriamente tímido, tinha uma eloquência que ele nunca viu em ninguém, sempre tirando notas muito boas em simulações e discussões orais.

E ainda tinha mais uma: às vezes Kanon quebrava regras pelo simples prazer que aquilo lhe dava.

Uma vez, Kanon e ele viram um tio deles pescar quando eram crianças. O tio pegou um peixe, que ficou se debatendo no chão e Kanon chorou, pedindo para que ele soltasse o peixe no mar de volta. E veja, Kanon era criança, e crianças geralmente são delicadas sobre essas coisas. Era só explicar para Kanon que a morte era um processo da vida, e que o peixe não morreria em vão, mas seria o alimento deles.

Mas não.

Seu tio não somente riu da cara dele como o humilhou (pelo menos, era assim que Kanon via), alegando que ele seria um homem fraco, pois não sabia pescar, pois nunca seria macho. Ali, Saga viu a força do ódio do irmão pela primeira vez, quando o viu de olhos secos e duros contra o tio, e os punhos fechados. Naquele dia em diante, Kanon nunca mais colocaria uma colher de carne na boca, não importasse o quanto a mãe deles implorasse ou o quanto o pai brigasse. E todos sabem como mães e pais rígidos são, eles encaravam o vegetarianismo do Kanon como uma afronta, alguém que desperdiça comida enquanto tem pessoas que passam fome. Mas isso não impediu o Kanon de fazer greve de fome, de chorar, de espernear e aceitar todas as consequências.

Ele irritou os pais, o dito cujo tio, a tia (que era esposa do tio) e os primos. E ele fez isso só para chegar nas festas de família e mostrar para o seu tio que ele não era fraco, apesar de não comer carne. E ele fazia questão de lembrar de falar mal do tio para todos, na frente do próprio parente, que acordo com ele mesmo, o traumatizou pelo resto da vida e que é claro que todos os filhos do tio Yiorgos são todos desviados, olha o pai que tem. Toda. Santa. Festa.

E havia vários outros exemplos.

Na adolescência, Kanon era bem rebelde. Atormentava as primas, falando que elas eram feias e fúteis. Nas reuniões de Natal, gostava de contrariar o típico conservadorismo dos familiares pelo simples e puro prazer. Teve amizades com homossexuais, lésbicas, prostitutas, boêmios e desempregados, na época em que ter amizade com tais pessoas faria uma mãe ortodoxa como a deles chorar e faria o pai arrancar os pelos do bigode de tanta raiva. E por dentro, Saga o apoiava, pois ele bem que queria ter coragem que Kanon tinha e bom... Parentes conservadores eram meio chatos, de qualquer forma.

E para piorar, quando chegou na faculdade, Kanon se meteu com política.

Saga achava política algo interessante, mas só. Gostava de ler sobre táticas de guerras, alguns filósofos, mas nada demais, era só pelo fato de que ele era um homem culto que se orgulhava de ter nascido na pátria que era a mãe da democracia. Tinha a sua opinião política e seus candidatos, é claro, mas era reservado e não levava as discussões para outros lugares além do seu círculo pessoal.

Mas não Kanon.

Era de se esperar, que alguém com a lábia e a esperteza de Kanon, mais cedo ou mais tarde se meteria com esse tipo de gente. Saga não imaginaria que alguém tão arisco, mas tão eloquente, gostaria tanto de se meter nesse tipo de confusão. Mas Kanon gostou, e muito. Quando Saga menos viu, seu irmão estava distribuindo folhetos de partidos de posições políticas que Saga considerava perigoso pela faculdade e arrumando confusão com a reitoria. Isso quando ele não inventava de ir para atos políticos e tomava surra da polícia. Mais uma vez, Kanon se rebelando, sua mãe chorando, seu pai arrancando os bigodes e Saga exasperado, mas ainda assim, o ajudando com o maldito tiro de bala de borracha que ele tinha levado em um dos protestos.

Quando chegou o mestrado, Kanon sossegou um pouco. Era o que ele pensava.

Afinal, Kanon era – heh – famoso.

Não dos tipos que quando saem na rua, tem milhões de paparazzi o seguindo, ou mulheres loucas correndo atrás dele, pelo fato dele ser tão bonito. Mas eles não podiam revelar a localização da sua casa, pois Kanon corria perigo.

Até nisso Kanon tem de azar.

No fim do mestrado, Kanon descobriu que algumas jazidas de petróleo no Mar Mediterrâneo estavam com vazamentos, prejudicando a fauna e flora marinha da região. Obviamente, nem ele e nem a equipe de trabalho do qual ele participava estavam preocupados com os danos econômicos que as grandes empresas sofreriam e sim, em tentar salvar o máximo de espécies que eles conseguiriam.

Então Kanon descobriu, e sabe-se lá Deus como, que a Fundação Graad estava envolvida no vazamento de petróleo da região. A fundação queridinha da Grécia, que com toda a sua benevolência ajudava os mais pobres e necessitados, que amparava os oprimidos e que até mesmo tinham campanhas de conscientização sobre o meio ambiente, estavam envolvidos no vazamento de petróleo, até o pescoço.

Seu irmão já não gostava da Fundação Mais Querida da GréciaTM, e gostava menos ainda da empresária que comandava a Fundação, a socialite Saori Kido, pois ele, com toda a sua rebeldia, considerava Saori uma exploradora que era uma loba vestida em pele de cordeiro ao ajudar os mais necessitados, sendo que ela era na verdade podre de rica e se ela era podre de rica, tinha que ter explorado muita gente para conseguir tanto dinheiro.

Então obviamente, Kanon jogou a merda no ventilador e mostrou os documentos para a mídia, no estilo mais Edward Snowden possível. Claro que, diferente do próprio Edward Snowden, ele teve a inteligência de não mostrar a cara, o que lhe poupou muitas confusões. Até que, alguns meses atrás, todos conheceram o seu rosto. E bom, ainda bem que foi só o rosto, pois Kanon detestaria ter que se mudar do Cabo Sounion por causa de uma socialite.

A opinião pública acreditou em Kanon no começo. Mas depois, ele foi visto como um conspiracionista, alguém que está tentando acabar com os empresários e com a economia do país, um aliado da extrema-esquerda, um comunista que deseja matar criancinhas etc. Não colaborava o fato de que Kanon, de fato, estava mais lá do que cá mesmo, e que ele realmente não se importava com as empresas, visto que o mais importante, para ele, era salvar a vida da região. E ele sempre falou sobre isso abertamente.

Também não ajudava o fato de que estávamos vivendo em tempos estranhos. Pelo menos, era isso que Saga pensava, pois via pessoas não acreditando no aquecimento global e na mudança climática. Ou pior, não acreditavam que a Terra era esférica e sim, que ela era plana (para os últimos, todas as noites Saga planejava inúmeros métodos de tortura até provar, que não, a Terra não era plana).

Assim, as pessoas deixaram de acreditar nele, e quando ele mostrou o rosto ao público, foi recebido com, digamos... opiniões negativas. Mas isso era Kanon, um questionador natural, alguém que seguiria seus princípios até se provar o contrário, um teimoso de natureza que vive por aquilo que acredita.

Kanon tem necessidade de se provar, de provar o valor dele, do que ele acredita e do que ele pode fazer o tempo todo. Saga queria tirar esse peso dele, dizer que ele não precisa se preocupar com isso, que ele tinha valor mesmo sem precisar se provar para ninguém, muito menos para ele. Observe-me Saga. Era a frase que ele mais dizia na infância e na adolescência. Ele nunca disse nada, mas a vontade de dizer era: não é necessário. Você não precisa provar nada para ninguém.

Era noite. Saga caminhou para a varanda, de frente para a praia. Aquela casa era a casa dos pais, a única coisa que sobrou para eles. Era extremamente doloroso conviver com a lembrança deles, mas Kanon fazia tudo se tornar mais leve. Pegou seu telescópio e olhou para os céus, admirando as estrelas. Era de se impressionar como aqueles pontinhos de luz eram na verdade, bolas de plasma que se mantinham por meio da gravidade e da radiação, e sua luz atravessa o universo, que é tão grande, mas tão grande, que provavelmente, quando a luz se tornou observável aqui na Terra, a estrela já deixou de existir, não importasse a quão alta fosse a velocidade da luz. Mesmo o caos do universo tinha regras.

Mirou o telescópio na sua constelação favorita. Gêmeos.

O que mais intrigava a Saga além do Universo, era a mente humana. Como as pessoas olharam para o céu e identificaram padrões em meio ao caos das estrelas? A partir da abstração, criaram formas concretas, desenhos traçados na abóbada celeste e não só isso, como criavam histórias sobre os desenhos que viam no céu. Foi o que aconteceu com a sua constelação favorita.

Ele tinha muitos motivos para gostar daquela constelação. Não era somente pelo fato de que ele tinha um irmão gêmeo ou pelo fato de que eles eram regidos pelo signo de Gêmeos. Mas também gostava da história dos gêmeos que abençoavam a constelação.

Castor e Pollux.

Zeus, em determinado momento, se disfarçou de cisne para tentar seduzir Leda, que era esposa de Tíndaro. Nisso, nasceram dois meninos, mas com pais diferentes: Pollux era filho de Zeus e, portanto, agraciado com a imortalidade. Já Castor era filho de Tíndaro, e assim, um mortal. Tinham uma enorme amizade entre eles e eram inseparáveis. Mas um dia, eles desafiaram Idas e Linceu, que eram outros gêmeos, e Castor morreu. Pollux desejava morrer junto com Castor, mas não podia, pois era imortal. Zeus se apiedou da tragédia dos dois e, para homenagear o amor fraterno, os eternizou na constelação de gêmeos.

- Perdido de novo no céu, Saga?

Saga se assustou e olhou para trás, vendo seu irmão entrando na varanda, com um leve sorriso triste e cansado nos lábios.

Ele caminhou até a varanda, olhou o céu, olhou o mar e suspirou. Seus olhos sempre se direcionavam ao mar de forma melancólica, como um marujo que perdeu um bem precioso para o oceano. Seus olhos esverdeados viam as ondas do Mediterrâneo e Saga se perguntava por que o irmão tinha tanta tristeza. Os sorrisos do irmão nunca mais foram felizes depois que a sereia desapareceu da vida dele. Saga imaginava como deveria ser terrível viver com a dúvida se o ser mais belo que já viu na vida era real ou não, se o evento mais marcante da história realmente aconteceu ou se foi invenção da sua cabeça.

Se a sereia o amava ou se ela apenas o enfeitiçou.

Saga prometeu acreditar mais nas histórias de pescadores desde então.

- Terminou o capítulo, Kanon? – disse Saga, tentando distraí-lo.

- Terminei, mas provavelmente vou reescrever tudo amanhã de novo.

Os dois sorriram. Kanon olhou para o céu.

- Constelação de Gêmeos? – perguntou Kanon.

- É. As estrelas estão bonitas hoje.

Kanon sorriu mais uma vez e disse:

- Lembra quando a gente era moleque e a gente leu aquele livro de mitologia grega na escola...

- E a gente passou semanas brigando pra ver quem era o Castor e quem era o Pollux? – terminou Saga.

- Sa, você nunca me deixava ser o Pollux!

- O Pollux era o mais velho!

- Você tirou essa informação da bunda! Eles nasceram de um ovo!

- Mas o Castor era legal também!

- Então por que você não era o Castor?

- Na minha cabeça, fazia muito sentido que você fosse o Castor. Você adorava o mar e Poseidon era seu deus favorito. Poseidon era o deus dos cavalos, e o Castor era a melhor domador de cavalos que existia. Eu gostava de ler livros sobre estratégias de guerra, minha deusa favorita era Atena, e Pollux era um bom guerreiro.

- Essa sua ligação não faz sentido, me parece desculpa esfarrapada pra não admitir que você sempre só quis ser o mais forte.

- Faz sentido sim.

- Os dois eram chamados de Dióscuros! Filhos de Zeus! Não tinha nenhuma ligação com esses deuses que você tá falando.

- A gente era criança Kan! Criança! Não era para ter lógica!

Os dois riram novamente.

- Tem assunto que não tem como a gente parar de brigar né? – disse Saga.

- Certas mágoas não se resolvem nunca – respondeu Kanon.

Saga balançou a cabeça, ainda sorrindo.

As coisas ficariam bem. Ele acreditava nisso.

E esse foi o capítulo do nosso Gold Dust Man! Eu amo essa música da Stevie Nicks e acho que ela se encaixa no Saga que vou construir.

Bom vamos lá. Algumas observações.

Eu me lembro de ter feito um texto enorme explicando o lado mais "político" da série, dando as justificativas. A real é que esse texto não será postado pois: a justificativa não existe (ainda). Ela vai se apresentar ao longo da série, não se preocupem.

"Mas Dragão Marinho, minhas opiniões políticas são diferentes do personagem!" Olha, é só respeitar, e tá tudo bem, ninguém sai ferido. Esse espaço pode sim, ser para esse tipo de discussão, desde que não tenha brigas nem confusões.

Ah, e eu não poderei ser neutro, sinto muito. Não existe neutralidade aqui.

Eu peço desculpas pelo tom mais "firme" é só para assegurar que ninguém vai me encher o saco pq "o personagem tal é de esquerda/direita!".

E no mais, espero que gostem e que comentem!