Currículos de ciências e letramento científico
A educação científica na perspectiva do letramento como prática social implica um desenho curricular que incorpore práticas que superem o atual modelo de ensino de ciências predominante nas escolas. Entre as várias mudanças metodológicas que se fazem necessárias, três aspectos vêm sendo amplamente considerados nos estudos sobre as funções da alfabetização/letramento científico: natureza da ciência, linguagem científica e aspectos sociocientíficos.
Natureza da ciência
Aprender ciência significa compreender como os cientistas trabalham e quais as limitações de seus conhecimentos. Isso implica conhecimentos sobre história, filosofia e sociologia da ciência (HFSC).
A introdução de conteúdo de HFSC no ensino de ciências está presente em pesquisas em ensino de ciências já há algum tempo, como discutem Matthews
(1992,5 1994) e Gil-Pérez (1993). Todos esses estudos apontam para a necessidade da compreensão da natureza da ciência nesse ensino (Barra, 1998; Nascimento, 2004; Peduzzi, 2001; Ryder, 2001), o que é
essencial para a compreensão das implicações sociais da ciência, uma vez que o aluno passa a entender a ciência como atividade humana e não simplesmente como atividade neutra distante dos problemas sociais (Stiefel, 1995). Solomon (1988) discute que, ao
apresentar-se o caráter provisório e incerto das teorias científicas, os alunos podem avaliar as aplicações da ciência, levando em conta as opiniões controvertidas dos
especialistas. Ao contrário, com uma visão de ciência como algo absolutamente verdadeiro e acabado, os alunos terão dificuldade de aceitar a possibilidade de
duas ou mais alternativas para resolver um determinado problema.
Cachapuz e colegas (2005) apresentam resultados de pesquisas sobre visões de ciência no ensino de ciências que evidenciam o que eles denominam visão
deformada de ciências. Segundo eles, o ensino de ciências tem veiculado uma imagem reducionista e distorcida da ciência, visão que a apresenta como sendo
descontextualizada, individualista e elitista, empíricaindutivista e ateórica, rígida, algorítmica e infalível, aproblemática e anistórica e acumulativa. Isso está
relacionado à forma como esse ensino vem sendo abordado na escola em um modelo por transmissão em que não há reflexão epistemológica. Nesse sentido, para que ocorra o letramento científico torna-se fundamental uma mudança de abordagem no ensino de ciências, de forma que os estudantes desenvolvam estudos de HFSC, compreendendo a natureza da atividade científica.
Linguagem científica
Um clássico estudo dos lingüistas Halliday e Martin (1993) demonstra que a linguagem científica apresenta características próprias que a distingue da linguagem cotidiana. Mortimer (1998), explorando esses trabalhos e de Bakhtin (1992, 1997), demonstra que a linguagem científica é um gênero de discurso que foi construído socialmente pelos cientistas em sua prática. Para Mortimer (1998), enquanto a linguagem científica é estrutural e aparentemente descontextualizada, sem narrador, nominalizando processos, a linguagem cotidiana é linear, automática, dinâmica, geralmente produzida por um narrador em uma seqüência de eventos. Destaca ainda esse autor que a peculiaridade do gênero de discurso científico o torna estranho e pouco acessível aos alunos. Halliday e Martin (1993) apontam ainda que, além da estrutura semântica, o discurso científico busca organizar os fenômenos por meio de classificações e de apresentação de relatórios, que constituem um gênero de discurso marcado pelo uso de diagramas, esquemas, gráficos e ilustrações.
Ensinar ciência significa, portanto, ensinar a ler sua linguagem, compreendendo sua estrutura sintática e discursiva, o significado de seu vocabulário, interpretando suas fórmulas, esquemas, gráficos, diagramas, tabelas etc. Além disso, Newton, Driver e Osborne (1999) consideram que o ensino de ciências
deve ajudar o aluno a construir um argumento científico, o qual é diferente da argumentação do senso comum. Como demonstram Osborne, Erduran e Monk
(2001), a linguagem escolar geralmente é fundamentada mais em argumentos de autoridade do que em justificativas assentadas em valores científicos, e,
dessa forma, o ensino de ciências deveria dar maior atenção ao desenvolvimento da argumentação científica.
Ainda nesse sentido, Brown, Reveles e Kelly (2005) afirmam que alfabetização/letramento científico corresponde ao uso de termos técnicos, a aplicação de conceitos científicos, a avaliação de argumentos baseados em evidências e o estabelecimento de conclusões a partir de argumentos apropriados. Ocorre que a escola tradicionalmente não vem
ensinando os alunos a fazer a leitura da linguagem científica e muito menos a fazer uso da argumentação científica. O ensino de ciências tem-se limitado a um processo de memorização de vocábulos, de sistemas classificatórios e de fórmulas por meio de estratégias didáticas em que os estudantes aprendem os termos científicos, mas não são capazes de extrair o significado de sua linguagem.
Norris e Phillips (2003) enfatizam a necessidade de mudança de sentido dessa alfabetização. Eles comentam que muitas discussões em torno do papel da
alfabetização/letramento científico têm enfatizado as questões sociais e dado pouca prioridade ao ensino da linguagem científica. Segundo eles, mesmo o ensino tradicional de ciências não está preparando os estudantes para compreender o significado do conhecimento científico. Um cidadão, para fazer uso social da ciência, precisa saber ler e interpretar as informações científicas difundidas na mídia escrita. Aprender a ler os escritos científicos significa saber usar estratégias para extrair suas informações; saber fazer
inferências, compreendendo que um texto científico pode expressar diferentes idéias; compreender o papel do argumento científico na construção das teorias; reconhecer as possibilidades daquele texto, se interpretado e reinterpretado; e compreender as limitações teóricas impostas, entendendo que sua interpretação implica a não-aceitação de determinados argumentos (Norris Phillips, 2003). Ainda nesse sentido, Wellington e Osborne (2001) apresentam sugestões de estratégias de trabalhar a linguagem científica a partir de textos científicos de jornais, assim como Norris e Phillips (2003) discutem as implicações da leitura desses textos para o ensino. Em outro trabalho, Ogborn (2003) apresentou como no curso de física "Advancing Physics" se exploram imagens modernas da ciência, como fotos de satélites e imagens de microscópio de tunelamento eletrônico, e como se ensina os alunos a
interpretar gráficos, esquemas e diagramas, relacionando-os à observação de fenômenos. O que se conclui de todos esses estudos é que, mais do que ensinar a ler vocábulos, os professores deveriam estar preocupados em ensinar os alunos a ler e compreender textos científicos.
Aspectos sociocientíficos
Outra orientação que tem sido proposta para o LC é a inclusão de aspectos sociocientíficos (ASC) no currículo; esses aspectos referem-se às questões ambientais, políticas, econômicas, éticas, sociais e culturais relativas à ciência e tecnologia (Santos, 2002). Eles têm sido amplamente recomendados no ensino de ciências com diferentes objetivos (Kolstø,
2001; Ramsey, 1993; Ratcliffe, 1998; Ratcliffe Grace, 2003; Rubba, 1991; Zeidler et al., 2005), os quais podem ser agrupados nas seguintes categorias:
1) relevância – encorajar os alunos a relacionar suas experiências escolares em ciências com problemas de seu cotidiano e desenvolver responsabilidade social;
2) motivação – despertar maior interesse dos alunos pelo estudo de ciências; 3) comunicação e argumentação – ajudar os alunos a verbalizar, ouvir e argumentar;
4) análise – ajudar os alunos a desenvolver
raciocínio com maior exigência cognitiva;
5) compreensão – auxiliar na aprendizagem de conceitos científicos e de aspectos relativos à natureza da ciência (Ratcliffe, 1998).
A introdução de ASC, inicialmente proposta em currículos de CTS, tinha a função de problematizar questões sociais. Mais recentemente, os ASC têm sido abordados na perspectiva de propiciar a compreensão da natureza da atividade científica e da argumentação (Zeidler et al., 2005). Além desses propósitos, a inclusão de ASC no currículo tem-se dado no sentido de possibilitar uma reflexão crítica de valores (Santos, 2002). Com essa perspectiva, pode-se afirmar um currículo que tenha a perspectiva de letramento científico
implica a ressignificação dos saberes científicos escolares que estão sendo abordados de forma descontextualizada, com uma linguagem hermética, repro-
duzindo uma falsa imagem de ciência. Enquanto não se caminhar na superação dessa abordagem, a educação científica continuará restringido-se a uma precária alfabetização.
