Universidade Nacional Capodistriana de Atenas, Zografou, Atenas, Grécia. 2018
POV Aiolia
Por que ele havia escolhido aquele curso? Por quê? O que passou na cabeça dele, quando, com seus 20 anos de idade, prestou seus exames pan-helênicos para passar na Universidade de Atenas? E pior, por que tinha que ser aquele curso?
Era isso que Aiolia pensava enquanto tentava prestar atenção numa aula de direito civil. O professor era mais velho, a aula era monótona, ele tinha acordado cedo para ir para a aula, quase perdeu o ônibus e agora estava tentando ao máximo não dormir na aula do professor, que tinha uma voz tão suave que funcionava como um sonífero para ele. Se seu irmão tivesse ali, provavelmente o repreenderia, por estar quase babando na frente do laptop de tanto sono. Aiolos era sempre certinho, o infeliz.
Ah, era por isso que ele estava fazendo aquele curso. Aiolos.
Ele e Aiolos nasceram em Tessalônica. E desde pequenos, tanto Aiolos quanto Aiolia tinham um grande senso de justiça. Eles sempre defendiam aqueles que mais precisavam na escola, gostavam dos debates e eram extrovertidos. E ambos concordavam que nem sempre fazer o justo era seguir a lei: as regras poderiam ser injustas, às vezes.
Por isso, Aiolia se metia em muitas brigas na escola, pois, diferente do seu irmão, ele não era tão paciente com quem machucava aqueles que não poderiam se defender. Se quisessem se resolver com ele, Aiolia resolvia no braço. Era chamado várias vezes na escola pelo seu mau comportamento, mas mesmo seus professores admiravam a inteligência e o grande coração dele. Aiolia é que nem o irmão, só é mais esquentado, os familiares e professores falavam e ele não ligava. Gostava de ser uma versão impaciente do irmão.
E daí, Aiolos partiu para Atenas, para cursar direito, na Universidade de Atenas. Aiolia tinha 14 anos quando isso aconteceu, e apesar de ter chorado um pouco e de ter ficado doente (ele tinha vergonha daquilo até hoje), ele também decidiu o curso que queria. Pretendia fazer a justiça, que nem o seu irmão.
Quando chegou a sua vez de pisar os pés na faculdade, já se deu de cara com uma surpresa e uma indignação. O diretor de sua faculdade recebeu os alunos calouros com a seguinte frase: "aqui não se faz justiça, se faz direito". Aiolia se lembra de ter ficado tão bravo ao escutar aquilo. Ele não entrou ali para ser capacho de papelada não! Ele entrou ali pois queria fazer justiça, queria ajudar as pessoas, defender os mais fracos.
Se mudou para o mesmo apartamento que o irmão, em Atenas. Logo quando chegou em casa, discutiu com Aiolos sobre aquilo que o diretor havia lhe dito, pois estava indignado.
- Olia, lembra quando eu te disse que fazer o justo, o certo, às vezes significava ir contra as regras?
Aiolia tomou um susto.
- É sobre isso Aiolia. Muitos dos seus colegas irão se tornar meros burocratas, agentes da lei, e obedecerão calados os poderosos sem pensar se aquilo pode gerar consequências ruins para as pessoas ou não. Uns covardes, eu diria.
Aiolos olhou para ele, no fundo dos olhos.
- Mas você não será assim, não é Olia?
Aiolia sentiu o peso da responsabilidade. Mas sorriu e afirmou que não seria assim. Lutaria pela justiça. O problema é que, naquela aula de direito civil em específico, ele estava mais a fim de tirar uma soneca do que lutar por algum tipo de justiça.
O sinal tocou e ele suspirou de alívio. Pelo menos não cairia mais de sono na aula do professor chato de direito civil.
- Aiolia. Comida. Precisamos de comida – disse Adonis, seu companheiro de restaurante universitário. Adonis tinha um amor incondicional pelo restaurante universitário, o que Aiolia nunca entendia, pois para ele o restaurante universitário era somente um dos nove círculos do inferno do qual era composta a faculdade, pois só vendendo a alma para o diabo para conseguir engolir a comida. O outro círculo eram as aulas de direito civil. E o banheiro masculino.
- Precisamos de café, isso sim. Não vou aguentar mais estudar sem um pouco de cafeína no meu organismo – respondeu Aiolia. Ele havia prometido que não tomaria mais café, depois que tomou a conhecida mistura de café e Coca-Cola para aguentar a semana de provas. O problema é que ele quase não dormiu, ficou uma semana com taquicardia e tremeliques, e quando acabou a semana de provas, dormiu por quase 16 horas. Se, desde pequeno, Aiolos o apelidara de "leão preguiçoso", pois seu cabelo curto parecia uma juba, imagina o quanto que ele riu depois das dezesseis horas de sono de Aiolia.
Assim que acabaram de almoçar, foram ao café. Lá encontraram Dimitris, que também estudava no mesmo curso que eles, na mesma sala. Sentaram-se os três nos banquinhos.
- Cigarro? – ofereceu Adonis.
- Cigarro – disse Aiolia, pegando um do maço de Adonis. Era um cigarro comum mesmo. Maconha não tinha mais lugar na sua boca desde que Aiolos, sabe-se lá Deus como, descobriu que ele estava fumando. Aiolos tinha um dom especial de saber qualquer coisa errada de quem fazia, com direito a pegar o deliquente no flagrante. E ele não queria mais ouvir três horas de um Aiolos revoltado, brigando com ele pelo fato de que ele estava usando drogas ilícitas. Achou melhor parar por um tempo.
Aliás, esse era o problema de Aiolos. Ele era sete anos mais velho que Aiolia mas agia como um pai. E as vezes ele ficava feliz por isso, pois, de fato, eles não tiveram um pai, e Aiolos sentiu que deveria tomar essa responsabilidade para si. E ele tinha um respeito enorme pelo irmão mais velho, como um pai mesmo. Mas incomodava a maneira como ele era pai demais (e nisso inclui as horrorosas piadas). Mas Olos era caso perdido.
- Vai na festa de sexta Aiolia? – perguntou Dimitris.
- Tua menina vai tá lá hein... – zombou Adonis.
- Qual das meninas? – perguntou Dimitris, rindo.
Esse era o outro problema de Aiolia. As pessoas diziam que ele era, digamos, mulherengo, mas na verdade, é que ele não conseguia ter um relacionamento fixo com ninguém. Ele sentia que tinha uma pessoa certa na vida, só que nunca achava a tal pessoa. E ele era muito específico com a mulher que ele considerava ter um relacionamento fixo. Pelo menos era o que o seu cérebro insistia em teimar, ao criar em seus sonhos a memória de uma mulher com cabelos ruivos e ondulados, magra, alta e forte, com belas curvas. Mas o rosto era sempre disforme.
Por isso, ele ficou famoso por ficar com muitas meninas na faculdade, a maioria ruivas. Ele tentava preencher aquele rosto disforme dos sonhos com o rosto de alguma menina. Mas era como se ele estivesse tentando montar um quebra-cabeça que só falta uma peça, que ele nunca consegue encaixar. E bom, era frustrante.
E não era difícil para Aiolia conseguir as meninas, o que piorou a sua má (ou boa) fama. Principalmente pelo fato de que ele era muito bonito, e isso não era invenção de seu ego leonino. Ele tinha cabelos loiros curtos e ondulados, olhos verdes, e até seus cílios tinham um brilho dourado no sol. Ele também tinha barba e bigode loiros, que davam o ar de universitário desleixado, mas bonito. E além de tudo, era alto e atlético. Bom, ele esperava ser bonito o suficiente no dia que a ruiva dos seus sonhos aparecer na sua vida.
Suspirou.
- Acho que vou trocar por uma noitada de estudos mesmo.
O resto do dia foi entediante e maçante. Mais estudos, mais café, mais cigarro. Pegou o ônibus, voltou para casa. Chegou no apartamento no qual ele e Aiolos moravam, e foi recebido por uma bola de pelos laranja se esfregando em suas pernas e miando feito um alarme de emergência.
- Simba! – exclamou Aiolia – espera, papai já vai te dar comida, mal cheguei em casa!
Simba era "o gato da casa", pelo menos era assim que Aiolos chamava. Nem ele e nem Aiolos tiveram animais na família durante a infância e a adolescência, pois a mãe não gostava. Não importasse o quanto Aiolia implorasse para a matriarca da família por um gatinho, o "não" era sempre uma resposta concreta. Aiolos também não colaborava, já que ele não fazia muita questão de ter animais dentro do lar.
Mas um dia, voltando da faculdade, ele viu um filhote de bichano laranjinha abandonado na rua. Existem muitos gatos de rua na Grécia e, no geral, eles sabem se virar. Mas o gatinho em questão ainda era um bebê, estava sozinho, sujo, magro e faminto. Além disso, o dito cujo tinha uma manchinha na testa, mais avermelhada que o resto dos seus pelos. Aiolia não resistiu, e levou o gato para casa. Brigou com Aiolos, brigou com a vizinha, brigou com o síndico. Mas o gato ficou.
- Simba! – disse Aiolia – o seu titio não colocou comida para você! Por isso você está miando desse jeito!
Simba miou alto de volta, como se dissesse "OBVIAMENTE, HUMANO".
Aiolia colocou a ração para Simba, que devorou a comida. Também trocou a água do bichano, e foi tomar banho. Quando saiu do banho, viu que Aiolos havia chegado em casa. Ele havia chegado mais cedo, é fato, mas ainda estava com a cara de cansaço dos últimos dias. Por isso, Aiolia não puxou muito papo e foi tentar preparar algo para os dois jantarem.
Aiolos era um advogado que ajudava organizações e ativistas de direitos humanos. Ajudou a proteger muitas pessoas e organizações que realmente estavam fazendo algo por aí. Trabalhar com algo que acreditava era o que Aiolia queria, e ver seu irmão fazendo justiça era sim, inspiração para ele.
Estavam jantando. Aiolia estava usando o celular enquanto Aiolos terminava sua janta. Ele estava vendo uma live no Instagram de um ato que ocorria em Atenas, no qual um jornal alternativo entrevistava Kanon, um biólogo e ativista que protestava contra as petroleiras do Mediterrâneo que derramavam óleo e sujeira no mar.
- Tira o fone que eu quero ouvir – disse Aiolos, com o seu faro para encontrar gente em apuros. Aiolia tirou e mostrou para Aiolos, que observava Kanon, na frente de uma câmera de celular, usando os fones de ouvido como microfone, enquanto a jornalista o gravava e o entrevistava.
"- A gente tá aqui agora tomando as ruas de Atenas, num ato de repúdio aos petroleiros. As diversas empresas da Europa e dos EUA estão subornando o governo nesse exato momento pra poder abafar o caso do vazamento que teve aqui no Mar Mediterrâneo.
- Kanon, e por que você acha que essa investigação tá sendo boicotada?
- Não é do interesse desse governo que está no poder de investigar as empresas, pois elas colaboram e incentivam essa política de austeridade absurda que vem sendo imposta pela União Europeia e que só prejudica o povo grego. E o governo, como sempre, é covarde demais para peitar a EU e as petroleiras.
- Você acredita que a Fundação Graad está envolvida nisso?
- Com certeza. A Fundação Graad não só tá metida nisso, como também tá encobrindo toda a investigação."
- Cara, ou ele é muito corajoso, ou é muito doido – afirmou Aiolia – Esse aí tá levando a sério aquela tua frase lá de que fazer o justo não significa seguir as leis. Pelo menos ele acha que é justo.
- Ele tem causado muita balbúrdia nos jornais – disse Aiolos – Tem boas intenções, mas não sei se consegue levar nas costas o que tá passando. Estourado demais.
- Ele ainda não procurou o escritório de vocês?
- Não, e nenhum escritório que eu saiba também. Ele também não tem uma organização muito forte por trás. Isso é um risco pra vida e pra reputação dele.
- Oferece tua ajuda ué.
- Se a gente conseguisse encontrar o maluco...
Aiolia riu.
- Mas ele é bom – disse Aiolia. Aiolos concordou – O cara tá batendo em muito político poderoso, o que ajuda muito.
-Ele tá. Só me preocupo se ele tá fazendo isso do jeito certo. Não se sabe quando vão querer calar a boca dele – disse Aiolos.
- Acha que querem matá-lo?
- Ou pior. Além de matá-lo fisicamente, podem matar sua memória, sua reputação. Manchar o seu nome, fazer as pessoas acreditarem que você fez algo errado – disse Aiolos, sombrio.
Aiolia sentiu um frio na coluna. Um deja-vu.
- Aiolia, aquilo é a polícia?
Aiolia, que não estava olhando o celular no momento, virou o rosto e viu na live. A jornalista falava.
"- A tropa de choque acabou de chegar no local. Não sabemos como será a partir de agora. Qualquer movimento que a polícia considerar suspeito pode acarretar um confronto sério. Kanon, tem algo a dizer sobre isso?
- Isso mostra que, apesar de ser um ato pacífico, o governo grego não está interessado em negociar com os manifestantes nem apresentar propostas de solução para o problema que estamos apontando.
- Eles podem estar aqui pois você é o líder. Vários congressistas consideram você "um terrorista" e uma "ameaça ao povo grego".
- Os congressistas podem enfiar a opinião deles no orifício que considerarem adequado"
Uma bomba explodiu em algum canto e dava para ver que tanto Kanon quanto a jornalista ficaram assustados. As pessoas começaram a correr em tumultos, tornando mais difícil a gravação da live. Aiolos pegou a calça e a camisa social, se enfiou em segundos e vestiu seu blazer por cima.
- Vai sair? – disse Aiolia.
- Claro. Vou defender o meu futuro cliente.
- AGORA? – exclamou Aiolia.
- Esse é o melhor momento para conseguir clientes, Olia. Quando eles mais precisam.
- Você vai para o meio do confronto dos policiais, defender um estranho que nem sabe se vai aceitar a sua ajuda ou não, correndo o risco de ser preso junto?
- É o preço que se paga para fazer o que é justo, não é? – disse Aiolos.
Aiolia sorriu.
- É o preço que se paga para fazer o justo – Aiolia completou.
